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CAPÍTULO 5 – EDUCAÇÃO AMBIENTAL: PRESSUPOSTOS, CONCEPÇÕES

5.4 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DO COTIDIANO ESCOLAR

Já há algum tempo perspectivas pedagógicas trabalhavam com o cotidiano, mas não se falava em educação ambiental. Segundo Oliveira (2007, p.47), para se ampliar o entendimento do mundo seria necessário compreender “os processos cotidianos de aprendizagem produzidos pelos diferentes modos de inserção dos sujeitos nos diversos espaços-tempos de interação social”.

Para Lopes (1999) o conhecimento cotidiano é a soma de nossos conhecimentos sobre a realidade, que usamos de modo efetivo no dia a dia. Seria um conhecimento que guia nossas ações, conversas e decisões. Para a autora nosso próprio processo de vivência e sobrevivência constitui a vida cotidiana. Afirma que a relação que temos com o conhecimento cotidiano é determinada pelas relações sociais nas quais estamos entranhados. O conhecimento cotidiano faz parte da cultura, assim como os demais saberes sociais, sendo a escola um dos canais dessa transmissão cultural. “O papel da escola é preponderante na constituição desse conhecimento, pois, por interações contínuas, elabora um habitus comum a todos os indivíduos” (LOPES, 1999, p.137).

Para melhor entender os conceitos a respeito do cotidiano, considera-se importante realizar uma breve retrospectiva sobre autores que discutem o tema. Segundo Alves (2003), o estudo do cotidiano aparece na discussão sobre o currículo a partir do referencial dos filósofos da Escola de Frankfurt, onde se originou a chamada corrente crítica do pensamento.Tal Escola, que surgiu antes da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, com a participação de personalidades filosóficas marcantes, tais como Theodor Adorno e Walter Benjamin, propiciou a criação da chamada Pedagogia Crítica. São diversas as ideias defendidas nessa Pedagogia, mas com um objetivo comum, que seria buscar a transformação das desigualdades e injustiças sociais por meio da educação, fortalecendo aqueles sem poder e esclarecendo sua compreensão da realidade (por meio do entendimento do cotidiano). Quanto ao currículo, essa teoria questiona:

[...] como e por que o conhecimento é construído da maneira como é e como e por que algumas construções da realidade são legitimadas e celebradas pela cultura dominante, enquanto outras claramente não são. A pedagogia crítica questiona como nossos entendimentos de senso comum diários – nossas construções ou subjetividades – são produzidos e vividos. Em outras palavras, quais são as funções sociais do conhecimento? (MCLAREN, 1997, p.202).

Atualmente nos Estados Unidos as ideias da Pedagogia Crítica fazem novas incursões na educação, “fornecendo uma teoria radical e análise da escolarização, enquanto conquista novos avanços na teoria social e desenvolve novas categorias de investigação e novas metodologias” (MCLAREN, 1997, p.192).

Pesquisadores que se debruçaram sobre as ideias da Escola de Frankfurt, de acordo com Alves (2003), encontraram fortes relações com as ideias de Paulo Freire sobre a importância do cotidiano (do entendimento da realidade) na educação. Para Freire (2005), é importante que o educando entenda sua realidade próxima e sua inserção na sociedade mais ampla, para perceber-se enquanto autor de sua própria história e tornar-se um sujeito político.

Michel de Certeau foi outro autor que se debruçou sobre o cotidiano. No final da década de 1970, junto a um grupo de pesquisadores, interessou-se em investigar as práticas cotidianas a partir do uso de narrativas. Considerava importante entender não os produtos culturais oferecidos no mercado de bens, mas as práticas cotidianas que se encontram apagadas no fundo das atividades sociais. Buscava investigar as operações de seus usuários, entendendo que as operações culturais são movimentos dos praticantes culturais, que aparecem como resistências em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural (CERTEAU, 1994).

Segundo o autor, existem sistemas de produção cultural que criam maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. Para ele o interesse se centrava em entender o uso que os sujeitos fazem desses produtos culturais difundidos ou impostos pelas elites produtoras. Apenas a presença ou circulação de um produto cultural não indica o que ele é para seus usuários. É preciso analisar sua manipulação pelos praticantes que não a fabricaram. “Só então é que se pode apreciar a diferença ou semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização” (CERTEAU, 1994, p. 40).

Outra autora que se destaca entre os que discutem o cotidiano, segundo Patto (1993), é Agnes Heller. Ela buscou avançar o pensamento marxista, resgatando a subjetividade no centro do processo histórico, entendido como expressão do homem em busca de sua humanização. Traz contribuições ao marxismo contemporâneo inserindo a temática do indivíduo no centro das reflexões. Esse indivíduo não é um ser abstrato, mas um indivíduo da vida cotidiana, voltado para as atividades necessárias à sua sobrevivência (PATTO, 1993).

Segundo a autora, a obra de Heller é uma referencia teórica para a reflexão sobre a escolarização das classes subalternas nos países de terceiro mundo, pois se atenta para as relações entre a vida comum dos homens e os movimentos da história e destaca as particularidades dos sujeitos envolvidos nas ações da vida cotidiana. No Brasil, as contribuições de Heller foram percebidas como uma perspectiva inovadora e promissora para a pesquisa sobre a escola (PATTO, 1993).

Outro movimento sobre cotidiano escolar foi iniciado pelo americano Robert Stake, analisado por Alves (2003). Ele afirma a necessidade de cruzar fontes a partir da observação diária da escola e argumenta sobre a impossibilidade de generalizações das conclusões nesses estudos, iniciando com essas ideias uma forma de se pensar o cotidiano da escola. A partir de seus trabalhos são desenvolvidas pesquisas do cotidiano no Brasil por Menga Ludke e Marli André. Esses trabalhos entendem ser importante “a incorporação da ideia da multiplicidade e da complexidade nos processos do cotidiano escolar” (ALVES, 2003, p. 64).

Para Alves (2003), com os estudos de Stenhouse, que desenvolve a ideia de professor-pesquisador, pode-se entender que o conhecimento das tantas escolas existentes só é possível se forem incorporados, nos processos necessários a esse conhecimento, os sujeitos do cotidiano escolar. Nesse caso, estuda os professores, argumentando que à medida que “vão questionando suas diversas práticas, identificadas, conhecidas e analisadas através de processos de pesquisa, são os que podem efetivar intervenções no cotidiano das escolas, desenvolvendo alternativas às propostas oficiais” (ALVES, 2003, p. 64). Essa possibilidade é percebida a partir da compreensão das diferenças culturais existentes.

A autora afirma que no México, em especial nos trabalhos desenvolvidos por Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell, mais do que identificar os aspectos negativos sobre a escola,

apontando o que não há nela, o importante era compreendê-la em sua realidade, sem julgamentos de valor, entendendo que o que há nela se faz e se cria por meio de práticas culturais.

Alves (2003) argumenta que, no Brasil, quando foram sendo introduzidos autores que se debruçam sobre os estudos culturais, ampliou-se a visão sobre o cotidiano, buscando-se compreender as relações que os múltiplos cotidianos de cada um mantém entre si, considerando também os artefatos culturais que se relacionam com os praticantes desse cotidiano.

A partir desses estudos sobre o cotidiano, fundamenta-se uma crítica ao modelo da ciência moderna, que para se construir teve a necessidade de considerar os conhecimentos cotidianos como senso comum a serem superados pelos conhecimentos científicos, entendendo-os como menores ou equivocados, sem compreender os múltiplos sentidos e usos que tinham para os praticantes do cotidiano (ALVES, 2003).

As formas de ver o mundo são desenvolvidas a partir das experiências sociais. Isso não tem ganhado o devido aprofundamento quando se quer compreender “em que condições concretas de possibilidades se inscrevem os diferentes fazeres docentes e discentes nos cotidianos das diferentes e incontáveis escolas” (OLIVEIRA, 2007, p.49). As políticas de educação e aquelas voltadas ao currículo negam a existência de diferentes leituras de mundo e se descompromissam com as aprendizagens cotidianas e experiências de vida, “desenvolvendo propostas fechadas em generalizações fundamentadas no pensamento cientificista que restringe o conhecimento àquilo que, supostamente, é universal e formalmente explicitado e desenvolvido” (OLIVEIRA, 2007, p.49).

A sociedade moderna universaliza seu tipo de civilização e de compreensão de mundo, eliminando e marginalizando práticas e grupos sociais entendidos como ameaça à expansão capitalista. Por isso a dimensão político-ideológica do estudo do cotidiano é importante, já que é determinado por diferentes entendimentos de mundo (OLIVEIRA, 2007).

Seguindo essa dimensão da discussão política e ideológica do cotidiano, Lopes (1999) afirma que existe um mínimo de saber cotidiano para todos os sujeitos, que são aqueles conhecimentos que devem ser interiorizados para podermos existir e nos mover em nosso ambiente. Entretanto, não necessariamente todos os sujeitos detêm esse mínimo. Para

ela a posse desse mínimo diminui paralelamente ao desenvolvimento da divisão de trabalho:

O processo de divisão social do trabalho engendra o processo de divisão social do conhecimento, que por sua vez se constitui em eixo mantenedor do trabalho dividido. Da mesma maneira ocorre com a divisão do conhecimento cotidiano, que estabelece esse mínimo de saberes cotidianos de cada grupo social (LOPES, 1999, p. 153).

A soma de saber de cada grupo, segundo a autora, cresce ou diminui de acordo com as necessidades sociais dominantes das respectivas gerações.

A mobilização da cultura de massas se relaciona a esse mínimo de saberes. Sua penetração inquestionável, ditada pela crença na objetividade científica, está associada ao fato de transmitir sua cultura diretamente ao senso comum, na aparência de uma democratização cultural, informando e negando a possibilidade de se questionar a informação recebida e a competência do sujeito em analisar o que foi transmitido. Isso fortalece a divisão social do conhecimento, em que “existem os que sabem, que detêm o poder de dizer, traçar diretrizes, e os que não sabem, que executam, consomem o saber dos primeiros” (LOPES, 1999, p. 154).

Dessa forma o conhecimento escolar tem por objetivo socializar o conhecimento científico (necessário à ampliação cultural das massas) e mobilizar e conferir destaque ao conhecimento cotidiano, já que “[...] uma sociedade de classes, priva as classes sociais exploradas de seu próprio saber; trata-se de um senso comum mínimo, ideologicamente constituído” (LOPES, 1999, p. 154).

As mudanças históricas são traçadas no nosso dia a dia de modos não detectáveis no momento de sua ocorrência. Os trabalhos sobre cotidiano escolar (e as produções culturais presentes), afirmam que é nesse processo “que aprendemos a ler, a escrever, a contar, a colocar questões ao mundo que nos cerca, à natureza, à maneira como homens/mulheres se relacionam entre si e com ela” (ALVES, 2003, p.66). Assim, reproduzimos o que aprendemos com outras gerações e com as linhas do poder hegemônico, criando no dia a dia novas formas de ser e fazer, que nebulosamente se integram ao nosso contexto, “antes de serem apropriadas e postas para consumo, ou se acumulem ou mudem a sociedade em todas as suas relações” (ALVES, 2003, p.66). Devemos estar atentos, neste processo, às

tentativas de nos aprisionarem em saberes ditados pelo poder da sociedade hegemônica, que são violentas e moralistas e, também, às maneiras de contradizermos o que eles querem que esteja estabelecido.

A partir desse breve apanhado sobre o estudo do cotidiano podem ser construídas algumas relações com a educação ambiental.

Existe o predomínio de um modelo de sociedade, aqui já discutida, que se organiza a partir do princípio econômico, criando modos de ser e estar a partir dos valores de mercado. Essa sociedade hegemônica, por meio dos meios de comunicação e da escola, seleciona e determina os saberes culturais que ela considera importantes para toda a sociedade; para que ela se mantenha e continue exercendo seu poder. Com isso ela abafa outros saberes constituídos na prática cotidiana dos sujeitos, que não são menos importantes. Além disso, no processo de transmissão da cultura nos meios de comunicação e na escola, não é interessante para a sociedade dominante que sejam criados mecanismos para se questionar o que está sendo transmitido. Pensando nisso, é possível observar muitas escolas amarradas em práticas educativas tradicionais que apenas transmitem informações, sem criar estratégias para que os alunos reflitam criticamente sobre esses conhecimentos e até mesmo sobre a sociedade na qual estão inseridos, assim como estabeleçam conexões com seu cotidiano.

A educação ambiental crítica tende a buscar, por meio de seu processo educativo, entender essa sociedade hegemônica e suas implicações em termos ambientais; entender esses processos de supressão dos saberes cotidianos e imposição dos saberes hegemônicos; vem desvendar toda essa ideologia por meio do entendimento do cotidiano, usando-o como um elemento problematizador nas práticas pedagógicas. Além disso, busca fazer com que os educandos façam uma reflexão no sentido de buscar outras formas de se organizar em sociedade, que não hierarquizem saberes e culturas.

No cotidiano da escola circulam esses saberes impostos pela sociedade hegemônica, sendo esta regida por valores econômicos, assim como circulam saberes populares e cotidianos, numa teia de relações no interior da escola e entre essas e outras relações exteriores. O mercado se impôs como forma inevitável de viver a vida, em que se busca “impor a lógica do mercado no local, incorporá-la em todos os poros de nossa pele e de nossa subjetividade” (LEFF 2010, p. 26). O estudo do cotidiano na escola vem justamente

romper com essas idéias globalizadas e abstratas impostas pelos valores de mercado e valorizar as culturas locais. Convergindo com tais afirmações, Freire (1979, p. 142) discute a importância do debate sobre a democratização da cultura, dizendo que temos “que partir do que somos e do que fazemos como povo. Não do que pensam e do que queiram alguns para nós”. É justamente com essa ideia que o estudo do cotidiano vem contribuir com a educação ambiental, essa valorização da cultura local em contraposição a cultura global imposta.

O estudo do cotidiano deveria levar em consideração o desafio posto na educação ambiental e na formação de professores que é o de articular o local com o global. Guimarães e Sánchez (2011) consideram importante que a educação ambiental lance um olhar atento às particularidades culturais e socioambientais de cada local, porém compreendendo as conexões entre o global e o local. O cotidiano teria que ter isso em vista para não ficar com o olhar só na proximidade, mas também considerar o contexto social, político, econômico, cultural e ambiental mais amplo, e assim realizar uma discussão sobre articulação entre o cotidiano local e as questões globais.

Ademais, o educador pode se apropriar do cotidiano como uma questão metodológica, como por exemplo, quando ele toma a realidade do estudante no processo ensino/aprendizagem. Em simetria a essa ideia, Amaral (2003) entende que uma educação ambiental crítica deve aproveitar as concepções prévias dos alunos no processo ensino- aprendizagem e incorporar o cotidiano do estudante, em termos temáticos e metodológicos, já que dele “emergem conceitos, valores, informações, situações acerca dos ambientes natural, transformado pelo ser humano e cultural” (AMARAL, 2003, n.p.). Além disso, o autor afirma que no processo de formação docente deve-se buscar um contínuo entrelaçamento com o cotidiano escolar em suas diversas manifestações e dimensões.

Pode-se agregar a essas ideias à corrente crítico-social da educação ambiental de Sauvé (2005), em que a proposta seria calcada em projetos interdisciplinares que visam a composição de um saber ação em resposta a um problema local. Nesta corrente, dá-se ênfase na “contextualização dos temas tratados e na importância do diálogo de saberes: saberes científicos formais, saberes cotidianos, saberes de experiência, saberes tradicionais, etc.” (SAUVÉ, 2005. p. 31). A partir desse diálogo de saberes é que se realiza uma análise das realidades e problemáticas ambientais, levando em conta a análise “de intenções, de

posições, de argumentos, de valores explícitos e implícitos, de decisões e de ações dos diferentes protagonistas de uma situação” (SAUVÉ, 2005. p. 30).

A partir dessa discussão destaca-se a importância do uso do cotidiano como elemento problematizador das práticas pedagógicas, desencadeador de temas e questões que podem ser destrinchadas para discutir a complexidade da crise ambiental. Assim temos, na presente pesquisa, o Parque, componente do cenário dos professores e alunos da escola estudada, como um relevante elemento do cotidiano que pode se tornar um elo problematizador das práticas pedagógicas desses sujeitos, ajudando-os na leitura de mundo e da realidade próxima que os cercam, ao mesmo tempo em que pode se constituir em ponto de partida para uma compreensão de questões socioambientais mais abrangentes.