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Capítulo 1 Uma abordagem antropológica à saúde mental dos imigrantes em Portugal

1.1 O contributo da Antropologia Médica

A Antropologia Médica, ou a disciplina que “indaga os processos através dos quais fenómenos socioculturais, políticos e biológicos se determinam reciprocamente” (Pereira e Pussetti, 2009: 17) surgiu apenas como disciplina autónoma no final dos anos setenta. Até esta altura as preocupações com corpo, doença e saúde não tinham ainda despertado o interesse isolado dos cientistas sociais, embora aparecessem nas suas teses. Convém, todavia, excluir desta afirmação o contributo notável de Marcel Mauss quando em 1934 (1974) apresentou à Sociedade de Psicologia o seu ensaio sobre “As técnicas corporais”. Neste tratado o antropólogo debruçou-se sobre os modos culturalmente aprendidos que permitiram aos indivíduos servir-se dos seus corpos como instrumentos. Apesar do objetivo universalista e

35 comparativista da sua investigação, que procurava conhecer as referidas técnicas em todos os contextos até alcançar o princípio abstrato organizador desta instrumentalização, o seu contributo foi relevante na medida em que demonstrou uma preocupação incipiente com o corpo, não o assumindo apenas como unidade passiva e imutável aquém de questionamento antropológico.

Décadas mais tarde, pela mão do antropólogo e psiquiatra Arthur Kleinman (1978) da Universidade de Harvard, o foco incidiu sobre a problematização da biomedicina. A sua contribuição ajudou a que a medicina ocidental começasse a perder o seu estatuto hegemónico no seio da Antropologia, passando a ser entendida como mais uma das presentes no leque farto das etnomedicinas. Identificou a sua principal característica com a preocupação que esta reservava às dimensões biofísicas da doença. Entender este sistema médico enquanto sistema cultural, de acordo com Kleinman, permitiria compreender não só a saúde, mas também a doença e a cura enquanto elementos pertencentes a um conjunto sociocultural distinto passível de ser comparado transculturalmente. Os sistemas médicos encontrar-se-iam deste modo carregados de valores simbólicos, significados e normas de comportamento elaborados de acordo com um idioma cultural específico. O antropólogo não entendia a doença apenas enquanto realidade natural, mas como um conjunto determinado de regras culturais inserido no idioma dos problemas médicos.

Partindo destas premissas, Kleinman distinguiu dois modelos explicativos: “disease” (a patologia física8 que corresponde às alterações orgânicas) e “illness” (a experiência pessoal

e culturalmente construída de não estar bem, onde se inclui o sofrimento sentido pelo indivíduo). O problema surgiria no decorrer do encontro clínico, altura em que estes dois modelos explicativos entrariam em conflito. Para Kleinman, cabia ao antropólogo médico a função de mediar este momento crítico através da promoção de um terreno comum onde o diálogo fosse alcançado e a terapia se tornasse assim eficaz, promovendo deste modo a competência cultural tão necessária para alcançar a cura.

Uma vez reduzida à condição de mais uma etnomedicina, a eficácia da biomedicina poderia idealmente ser equiparada à das restantes. Todavia, como estas se dedicavam exclusivamente à “illness”, ou seja, à reorganização da experiência de sofrimento para

8 Os termos “illness”, “disease” e “sickness” foram propositadamente não traduzidos para enfatizar as nuances

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alcançar a cura, à biomedicina seria reservada a dimensão patológica da doença, o que criava conflitos no encontro médico e a inevitável ineficácia terapêutica. Por outras palavras, a eficácia dos outros sistemas estaria reservada ao cuidado que empregariam no tratamento da

“illness”, enquanto que à biomedicina continuaria reservado o campo do corpo físico e da “disease”.

No entendimento de Kleinman, “illness” permitia a reorganização da experiência do sofrimento, uma postura que valeu à Escola de Harvard críticas por continuar a ser muito influenciada ainda pela proeminência da biomedicina e por um culturalismo marcado pela omissão da importância das forças sociais, económicas e políticas enquanto componentes essenciais a um eficaz entendimento de saúde, doença, corpo e sofrimento. Embora Kleinman tenha sido pioneiro na crítica à biomedicina, especialmente no que respeita à sua proposta de comparação entre diferentes sistemas médicos (em que saúde, doença e cura seriam analisadas enquadradas no contexto histórico-social em que emergiram), acabou por repetir a antiga fórmula que epistolava a sua soberania e, consequentemente, foi também visado por não problematizar a “disease”. Entendida enquanto entidade natural, objetiva e pré-social, a ausência de questionamento desta dimensão da doença impediu que a própria Escola de Harvard ultrapassasse as premissas da própria biomedicina, de acordo com as principais vozes críticas que se ergueram em oposição a esta postura epistemológica.

O paradigma na Antropologia Médica que se impôs em oposição à Escola de Harvard centrava-se na análise de uma terceira categoria, a “sickness”, tendo sido Allan Young (1982, 1997) um dos percursores desta perspetiva.

“Sickness” é redefinida enquanto o processo através do qual a comportamentos preocupantes e sinais

biológicos, em particular os originados por doença física [“disease”], são atribuídos significados sociais, i.e., são transformados em sintomas e resultados sociais significativos. Cada cultura possui regras para traduzir sinais em sintomas, para relacionar sintomatologias com etiologias e intervenções, e para usar as evidências providenciadas pelas intervenções para confirmar traduções e legitimar resultados. O caminho que uma pessoa segue da tradução para o resultado social significativo constitui a “sickness”. A “sickness” é, assim, um processo para socializar “disease” e “illness”. (Young, 1982: 270)

Propondo uma análise das relações sociais de produção do saber e das práticas biomédicas, Young avançou uma análise arqueológica dos conceitos de normal e patológico

37 de inspiração marcadamente foucaultiana. O antropólogo focou-se nas relações de poder que distinguem as formulações saudável e doente para enfatizar como estas são produzidas em contexto social, impostas até serem naturalizadas por forças institucionais.

Conrad e Schneider (1992) explicaram como se estabelece a supremacia do diagnóstico no ato clínico e como este define e se impõe na interação médico-paciente, o qual permite demarcar as fronteiras profissionais e institucionais onde opera o controlo social realizado através das práticas médicas. O diagnóstico permite assim que normal seja distinguido de desviante, as fronteiras entre quem cura e quem necessita de tratamento sejam definidas e também que o controlo social se imponha, especialmente entre aqueles que mais dificilmente conseguem resistir a estas imposições de poder.

A partir de uma análise das perturbações mentais classificadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM), os autores tentaram destrinçar como são produzidas culturalmente as categorias das doenças mentais. Conrad e Schneider defenderam que a terceira edição desta obra é de inspiração claramente biomédica e baseada na psiquiatria defendida por Emil Kraepelin, o qual defendia que as doenças mentais possuem todas uma razão biológica ou genética. Por outro lado, o diagnóstico permitiria ainda que as empresas farmacêuticas identificassem as doenças comparticipáveis financeiramente, o que causou um aumento exponencial do volume do referido manual nas edições posteriores. A perceção de como é produzida esta obra permite entender como a atividade psiquiátrica, as suas categorias e classificações resultam mais de processos e pressões sociopolíticas do que propriamente de demarcações naturais e orgânicas de determinadas doenças. Uma vez que a biologia, as práticas sociais e os significados culturais interagem no processo de construção da doença, este resulta de diversas relações de poder.

No caso das doenças mentais, a divisão entre “illness” e “disease” perde também a sua importância uma vez que não existem provas de que as perturbações psiquiátricas possuam uma componente biológica. Devido à ausência de estatuto ontológico, aplicam-se modelos com o intuito de descrever comportamentos específicos em contextos socioculturais determinados. Não existindo testes ou marcadores biológicos, orgânicos ou analíticos, as doenças mentais assentam nas interpretações dos psiquiatras que assistem os pacientes, podendo mesmo ser equiparadas a juízos de valor. Assim, conclui-se que os sintomas não são entidades objetivas ou indissociáveis dos contextos culturais que os produzem, adquirindo um significado através

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da classificação nosográfica incorporada e partilhada pelos médicos e outros profissionais de saúde.

Esta razão demonstra como é importante realizar um trabalho arqueológico de mapeamento das condições de produção históricas dos diagnósticos de maneira a que se consiga perceber como estes ganharam autoridade e predominância face a outras interpretações da realidade. As relações de poder responsáveis pela produção tanto dos diagnósticos, como do conhecimento médico e da interpretação de sintomas que posteriormente são codificados em doenças, não podem ser alienadas de uma abordagem antropológica da medicina, uma vez que esta permite descodificar as intenções inerentes e em constante mutação. Não sendo as categorias psiquiátricas emanações de distúrbios orgânicos, determinados comportamentos assumidos como psicóticos, errantes ou desviantes poderão ter interpretações diferentes consoante o enquadramento interpretativo em que o indivíduo que os demonstra se encontra.

Em contexto migratório, como veremos, esta interpretação implica consequências por vezes bastante complexas que nem sempre correspondem à eficácia terapêutica expectável, cumprindo antes outro tipo de funções de controlo social ou de normalização de comportamentos que, à falta de melhor palavra, poderiam ser apenas qualificados como diferentes e não necessariamente perigosos ou desviantes. Este discurso classificatório ou nosológico corresponde ao que Foucault definiu como sendo a base para distinguir normal de patológico e para diferenciar os comportamentos subversivos, os quais necessitariam igualmente de contenção e intervenção técnica.

Em cada um destes movimentos de emancipação, Foucault descobriu um processo que apelidou de “normalização”, um estreitamento e empobrecimento das possibilidades humanas. Embora um efeito primário das instituições que analisou nos seus trabalhos seja a exclusão social de determinados indivíduos nos asilos, prisões e categorias de desvio, o principal objetivo destas instituições seria a vinculação de homens e mulheres a um aparato de normalização. O propósito das análises genealógicas de Foucault permitia revelar que, apesar da sua aparente necessidade e naturalidade, estas instituições nasceram de contingências históricas específicas. Mostrou que estas não são o único modo de lidar com o conflito social e abriu a possibilidade de novos modos de interação humana.” (Bernauer e Mahon, 2003: 151)

Este sistema classificatório permite não só aumentar a cientificidade do discurso psiquiátrico, mas também assumi-lo enquanto garantia de verdade pela sua conexão a alegadas entidades naturais, objetivas e reais. As condições de produção destas categorias eludem a uma

39 análise do DSM como a realizada por Conrad e Schneider, os quais alternativamente as colocaram nos seus contextos histórico, económico e político de produção. Ao serem assumidas enquanto universais, as categorias psiquiátricas - que nas últimas décadas, como vimos, parecem esforçar-se por medicalizar todos os comportamentos disfuncionais, como se o sofrimento não fosse parte integrante da vida humana - despolitizam os comportamentos, retirando-os das condições que os produziram.

Uma maneira eficaz de perceber como os diagnósticos se manifestam resulta de uma arqueologia da classificação das doenças mentais, à semelhança da investigação realizada por Young sobre a síndrome pós-traumática. Young (1997) mostrou como, face à impossibilidade de encontrar marcadores biológicos ou mesmo testes clínicos que comprovem a existência das doenças mentais, o diagnóstico se baseia nos sintomas apresentados pelos pacientes. Esta aferição carrega consigo uma forte carga de subjetividade e de variabilidade. Uma análise da construção do diagnóstico permite perceber como o conhecimento biomédico condiciona e limita assim a nossa interpretação da realidade social, o que tem efeito não apenas ao nível do encontro clínico, mas também nas maneiras como os indivíduos se relacionam. A doença impõe-se assim em sociedade como facto natural, disruptivo e desordenador face à qual apenas a biomedicina parece dispor das armas indicadas para combater e restaurar a normalidade. Com o intuito de desmistificar as construções médicas, a introdução da categoria “sickness” permitiu aos antropólogos analisar os processos de construção do saber e das patologias, a qual inclui uma particular atenção aos interesses políticos e económicos envolvidos.

Porém, também este paradigma revelou limitações. A preocupação com os processos e relações sociais de produção dos saberes médicos impediu que os antropólogos dedicassem tempo e energia à análise das dimensões pessoais do sofrimento. A “disease” também não foi problematizada, assumindo-se o corpo única e exclusivamente enquanto entidade biofísica e natural e, novamente, aquém da análise antropológica.

Da Universidade de Berkeley começaram a surgir as primeiras críticas, especialmente pelas mãos das antropólogas Lock e Scheper-Hughes (1987, 1990) inspiradas pelos escritos de Csordas (1990). De acordo com o novo paradigma emergente problematizava-se o corpo, o qual não mais era entendido enquanto mero recipiente onde a cultura seria plasmada acriticamente, mas impunha-se enquanto entidade consciente, relacionando-se ativamente com o mundo social. Neste encontro a doença surgiria enquanto forma de resistência, o modo

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encontrado corporalmente para exprimir o descontentamento com a realidade. O sofrimento, na perspetiva da incorporação, representava uma forma de crítica à hegemonia dominante e a doença apresentava-se como único instrumento de denúncia dos politicamente débeis.

Tentando ultrapassar a dicotomia cartesiana corpo/mente, mas também o binómio

“disease/illness”, as autoras afirmaram que a medicação resultaria da tentativa da biomedicina

em confundir corpo individual com social, substituindo assim o domínio do social pelo do biológico. O paradigma da incorporação propôs resolver estes dilemas, inclusivamente a interpretação somatológica do sofrimento. A somatização, apesar de tentar superar a dicotomia corpo/mente, reproduz essa mesma distinção na medida em que se funda sobre a ideia de que o corpo seria uma base natural sobre o qual se manifestam os sintomas psicológicos. No paradigma da incorporação todas as doenças seriam assim psicossomáticas, por se fundarem na unidade indistinguível entre corpo e mente e na capacidade do corpo em produzir experiências e significados. De acordo com as autoras, uma análise apropriada do corpo não se cingiria à sua dimensão natural, prestando-lhe atenção enquanto produto social também ele fruto de processos de construção. Tentando romper com a noção de que possuímos um corpo, Lock e Scheper-Hughes defenderam que acima de tudo somos corpos que vivem e se relacionam com o mundo através de dispositivos culturalmente produzidos.

As autoras (1987) defenderam a existência de três corpos na análise antropológica ao longo dos tempos: 1) o individual, aquele que é experienciado por si só, a matéria; 2) o social, o qual funciona como símbolo para refletir sobre a natureza, sociedade e cultura; 3) e o político ou politizado, em que este é entendido enquanto objeto de regulamentação e controlo. De acordo com este nível de análise, o corpo encontra-se sujeito a relações de poder, podendo ser controlado de modo a cumprir determinados propósitos políticos. Por exemplo, se no passado o corpo alheio era explorado pela escravatura, atualmente as políticas relacionadas com sexualidade, questões de género e controlo da natalidade podem ajudar-nos a perceber como essas práticas se exercem. Apoiando-se em Foucault, Lock e Scheper-Hughes explicam como nos dias de hoje o poder exercido sobre os corpos é mais subtil e procura promover a produção de corpos dóceis, ao contrário das técnicas empregues no passado que se baseavam na ostentação de atos de violência empregues com o intuito de desmotivar comportamentos desviantes.

41 às mesmas, permitiu uma abordagem inovadora aos “ataques de nervos” estudados por Lock e Scheper-Hughes (1987). As antropólogas perceberam como algumas mulheres da classe trabalhadora manipulavam o significado e os proveitos que poderiam retirar deste mal-estar. Estas estratégias serviam para legitimar a sua condição de vítimas através do consumo de fármacos e para expressar emoções socialmente condenáveis numa explosão incontrolável de nervos. Para Scheper-Hughes, perceber o alcance destes ataques, isto é, tomar em consideração as três dimensões em que se apresenta o corpo socialmente, levou-a a concluir que os parâmetros em que se move a medicina ocidental não lhe permitem responder adequadamente a este fenómeno. Assim, apelou a uma Antropologia Médica que desnaturalizasse o corpo, investindo-o de novos significados e percebendo as políticas a que este está sujeito.

Low (1981) partilha da preocupação de Lock e Scheper-Hughes, defendendo as antropólogas em uníssono a importância do estudo das emoções numa nova abordagem ao corpo. As primeiras, porque comportam sentimentos e conhecimentos, mas também ideologias morais e culturais, repartem-se entre o domínio público e privado, o coletivo e o individual, podendo ser expressas ou reprimidas.

Enquanto que as emoções acarretam tanto sentimentos como orientações cognitivas, moral pública e ideologia cultural, sugerimos que elas fornecem um importante elo perdido capaz de aproximar corpo e mente, indivíduo, sociedade e corpo político. Como Blacking (1977: 5) referiu, as emoções são o catalisador que transforma conhecimento em entendimento humano, e que trazem intensidade e compromisso à ação humana. (Lock e Scheper-Hughes, 1987: 2 8-29)

Ao contrário de Kleinman, que alguns anos antes afirmara que as crenças criam, mas também matam, as autoras postularam uma alternativa ao modelo psicossomático advogado pelo psiquiatra americano: “As emoções matam, as emoções curam.” (1987: 29).

O paradigma da incorporação remete as relações de interpretação do sofrimento para um lugar de destaque, não relegando a importância da experiência histórica das relações sociais e de poder. A doença, neste caso, funcionaria enquanto saber incorporado e, portanto, a pesquisa antropológica deveria procurar compreender os seus sentidos através da análise da realidade histórica expressa através dos corpos das pessoas em sofrimento.

Recentemente as neurociências têm avançado propostas que enriqueceram o paradigma da incorporação. A obra do neurocientista António Damásio, O Erro de Descartes (1994)

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revisitou a dicotomia cartesiana propondo a existência de uma mente incorporada e de uma continuidade entre processos fisiológicos, emocionais e cognitivos permitindo uma compreensão holística do organismo. Ao passo que as antropólogas de Berkeley e restantes construcionistas não validaram o alcance dos aspetos biológicos das emoções nas suas formulações, as neurociências permitiram avançar na compreensão dos mecanismos bioquímicos responsáveis pelo controlo das respostas emocionais, defende Pussetti (2015).

Esta abordagem baseia-se na noção de que o cérebro humano constituiu uma entidade dinâmica moldada não apenas pelo ambiente, mas também pela experiência individual capaz de criar diariamente novas conexões neuronais. Sendo caracterizado pela sua especificidade e plasticidade, pesquisas recentes sobre o cérebro humano permitiram ultrapassar não só a dicotomia natureza e cultura, mas também o binómio corpo/mente, com o qual as ciências se têm vindo a debater há décadas.

Sem especificidade, conceito que designa ao nível ontogenético o processo de desenvolvimento invariante do cérebro dentro de um ambiente flutuante, o cérebro não seria capaz de desenvolver no momento certo os próprios circuitos neurais. Sem plasticidade, isto é, as variações que se desenvolvem como adaptação a contingências ambientais, o sistema nervoso em desenvolvimento não seria capaz de modular a sua resposta aos aspetos mutáveis do mundo, de forma a criar no cérebro uma representação deste mundo e um plano sobre como agir e interagir com ele. (2015: 25)

Este cérebro plástico, capaz de se adaptar dinamicamente ao ambiente e à experiência individual criando novas configurações, é também incompleto à nascença necessitando destas interações para se formar. Porém, como existem demasiadas variáveis na formação encefálica de cada indivíduo, o processo de incorporação cultural é extremamente complexo. Isto permite que os humanos se tornem não apenas recetores de conteúdo cultural, mas também produtores ativos de significados, construindo ativamente os ambientes que necessitam para se completar. As neurociências propõem assim uma dialética eficaz entre seres construídos (processos antropopoiéticos) e a capacidade de se construir a si próprio (processos autopoéticos), dirimindo umas das questões que o paradigma da incorporação não conseguiu satisfatoriamente resolver.

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