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Do Mocho para os Terraços da Ponte: diferentes perspetivas do realojamento

Capítulo 2 Na Quinta do Mocho

2.6 Do Mocho para os Terraços da Ponte: diferentes perspetivas do realojamento

Os recortes de jornais referentes ao realojamento na nova urbanização relatam um processo de transição para as novas moradas envolto em reivindicações e conflitos entre as autoridades locais e moradores. O jornal O Público (Alemão, 2001)17 anunciava o início do

processo de realojamento a 28 de fevereiro de 2001, expondo as situações de moradores que dificultavam a mudança motivados por conflitos com a autarquia de Loures. O mesmo artigo aponta para casos pontuais de difícil resolução, à semelhança de outros jornais que expõem a

17 Informação consultada no sítio https://www.publico.pt/local-lisboa/jornal/realojamento-da-quinta-do-mocho-

101 mesma situação. O blogue “Jugular”,18 (Anon, 2008) expõe numa reportagem detalhada

publicada na altura na “Notícias Magazine” os confrontos entre realojados e autoridades locais. Com base em testemunhos recolhidos pelos jornalistas, vários periódicos apresentavam a versão dos moradores, a maioria destes expressando a injustiça face ao processo de atribuição de casas.

Novamente pegando no exemplo etnográfico da Quinta da Vitória por motivos de comparação, Cachado (2013a), apoiando-se na teoria do “registo escondido” de James Scott, defende que os moradores deste bairro resistiram subtilmente à aplicação do PER, até ao momento em que publicamente lhes foi dada voz através do apoio de movimentos ativistas pelo direito à habitação condigna. As práticas hegemónicas aplicadas pelas diretrizes do PER, o excesso de burocracia que limitava a atuação dos próprios técnicos autárquicos, bem como mudanças estruturais inerentes às políticas nacionais que se refletiam nos ciclos de realojamento a que este bairro foi sujeito, foram subvertidas e anuladas em surdina pelos moradores da Quinta da Vitória durante os longos anos em que este processo decorreu. O registo escondido transformou-se em registo aberto encontrando meio e eco nos canais de comunicação, como foi o caso dos media, quando a altura se revelou propícia à revelação deste tipo de resistência, outrora menos explícita.

Estes recortes de jornais selecionados para exemplificar as mudanças estruturais na Quinta do Mocho aquando do realojamento apresentam ainda os critérios aplicados pela autarquia para conduzir e mediar o processo de realojamento. Em declarações aos jornais citados, a vereadora do pelouro da habitação da CML sublinhou a importância de determinar as fronteiras entre quem poderia ou não usufruir deste programa. O processo de atribuição das novas casas na urbanização dos Terraços da Ponte assentou sobre princípios equitativos: apuraram-se e contabilizaram-se rendimentos familiares e número de menores a cargo e foram também tomados em consideração o imposto sobre o rendimento de pessoas singulares e o último recibo de vencimento. Do ponto de vista qualitativo, para garantir que o máximo de pessoas merecedoras de casa seria abrangido, não foram determinantes sinais exteriores de riqueza como critério para atribuir habitação ou a existência de um fiador. Para além da despesa com a renda apoiada, também ela determinada em função dos mesmos critérios quantitativos

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para a atribuição de casa, os moradores foram alertados para que cumprissem com os pagamentos de água, luz, gás, tendo-lhes sido para o efeito fornecido um dossier onde os recibos dessas contas deveriam ser guardados, para além da chave da casa no momento efetivo do realojamento.

De acordo com a mesma vereadora atendeu-se também a que questões como a não separação das famílias e a incompatibilidades étnicas e culturais estivessem refletidas na atribuição das novas habitações. No entanto, as associações de moradores alertaram na altura que existiriam vários problemas por resolver no momento do realojamento e que os cerca de 680 núcleos familiares abrangidos excluíam situações de imigrantes ilegais ou indivíduos sem contratos de trabalho, os quais face aos despejos e à destruição das antigas torres não teriam outro local onde morar.

A preocupação em garantir casas para todos os moradores recenseados no decorrer do PER apresentou-se acompanhada da necessidade de demolir as antigas habitações, condição imposta pelo Estado no financiamento aos municípios. No dia marcado para a entrega das novas casas as autoridades policiais apresentaram-se na Quinta do Mocho com o intuito de garantir que a demolição das antigas construções decorresse pacificamente. O contingente policial armado apresentou-se, o que muitas descrições transmitem como sendo não apenas característica deste dia, mas parte integrante do retrato diário da Quinta do Mocho. Esperando resistência por parte dos moradores - tanto daqueles a quem lhes fora atribuída uma nova habitação, mas também dos que se sentiram excluídos do processo de recenseamento de 1993, o qual determinou o direito a alojamento para os anos seguintes - o contingente policial apresentou-se no local devidamente armado e preparado para atuar caso surgissem os conflitos que já se adivinhavam tendo em conta o longo, moroso e precário processo de recenseamento e realojamento da população.

Estes testemunhos demonstram ter havido uma perpetuação de estruturas já existentes e que os contornos do realojamento - presença de um forte contingente policial, acareações entre moradores e técnicos da autarquia… - viessem favorecer o aparecimento de um ambiente propício a manifestações públicas de desagrado, à semelhança do que acontecera na Quinta da Vitória e que Cachado (2013a) analisou à luz da teoria do “registo escondido” de Scott. Por outras palavras, os jornais mostram a lógica subjacente a quem seria merecedor ou não de apoio estatal numa habitação de renda controlada, estabelecendo-se assim os pressupostos de um tipo

103 de economia moral (Fassin 2005) que diferenciava aqueles dignos de tratamento compassivo daqueles para quem uma abordagem mais despiedosa estava destinada, ao mesmo tempo que se desenhavam novos mapas de exclusão e inclusão.

O reflexo dos imigrantes e moradores clandestinos alojados sob o escrutínio de um forte contingente policial e autárquico que se propagou nas notícias é ainda hoje constantemente reproduzida nos meios de comunicação, influenciando a imagem que os moradores acabam por ter de si e do seu bairro, e reproduzindo também sentimentos de insegurança entre quem lá não mora. O medo dos imigrantes (Bastos, 2009), alimentado por “narrativas de crime”, reais ou imaginárias (Caldeira, 2000), reforçam a imagem do corpo do imigrante enquanto personificação da doença ou do mal a ser erradicado. Desprezando as causas estruturais que conduziram a problemas pessoais e sociais e omitindo completamente a importância do corpo do migrante enquanto força de trabalho barata e precária que alimenta a máquina económica nacional (e que foi essencial nos anos de grandes obras), geraram-se contradições que propagam uma moral dupla na sociedade produzindo “pânicos sociais” (Goode e Ben-Yehuda, 1994). Estes justificaram a edificação de muros simbólicos, mas também reais, como os enclaves fortificados de São Paulo objeto de estudo de Caldeira (2000), que supostamente ajudariam a diminuir o medo criado pelos marginais e excluídos, mas a mesma lógica pode ser encontrada nos relatos e registos passados e contemporâneos relativos à antiga Quinta do Mocho. Esta racionalidade permite que se distraia simultaneamente não só do problema real como de outro tipo de medidas repressivas que o estado possa direcionar para classes mais desfavorecidas, funcionando estas como eficazes bodes expiatórios de situações criadas por outrem (Bastos 2009). Procura-se assim conter o que a lei excluiu, incorporando sem reconhecer os direitos dos imigrantes (exceto por razões humanitárias, como veremos abaixo), enfatizando a retórica da ameaça e o aumentando a culpa associada, em prol de interesses económicos. Esta medicalização social e clínica permite conter as margens de onde se propaga a ameaça, mas de cujas medidas a manutenção do poder estatal também depende para reforçar o seu poder.

Na antiga Quinta do Mocho o processo de despejo e de realojamento obrigou a que as casas situadas do topo dos prédios fossem desocupadas em primeiro lugar e imediatamente seladas para evitar que novas famílias aí se instalassem. A demolição total das antigas torres, garantia de que mais ninguém voltasse a instalar-se naquele local, permitiu assim que a Câmara

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de Loures cumprisse com o compromisso de erradicar as construções clandestinas e assegurasse uma das condições do financiamento público garantido pelo PER. Os antigos terrenos abandonados foram adquiridos por uma empresa construtora com o intuito de aí construir habitações para venda, conseguindo várias décadas depois concluir o projeto de edificar uma urbanização no local, mas destinada à classe média e média alta. Esta mesma empresa comprometeu-se também a erigir o novo bairro onde os moradores da Quinta do Mocho vieram a ser realojados. Ambas as urbanizações foram erigidas simultaneamente, como duas faces da mesma moeda, partilhando entre si apenas o nome e o usufruto de supermercados, lojas e equipamentos que mais tarde vieram a surgir naquele local para servir populações tão distintas.

O jornal O Público19 (Alemão, 2000) relatava também problemas de articulação entre

os esforços da autarquia e da Administração Central na finalização dos novos Terraços da Ponte, nomeadamente o número elevado de imigrantes em situação irregular e a falta dos referidos equipamentos, como uma escola, uma esquadra da polícia e um centro de saúde. À data do início do realojamento a inexistência destes espaços condicionava o normal funcionamento do novo bairro, promovendo a sua exclusão em moldes semelhantes aos que determinaram o abandono da população da Quinta do Mocho, como alguns indivíduos dos dois lados da barricada descreviam a situação. Os testemunhos no jornal destacam que estes equipamentos ajudariam a evitar a exclusão social do novo bairro, que se pretendia que fosse erigido tentando evitar os erros do passado. Porém não apenas a população realojada, mas também a restante população de Sacavém, carecia destas estruturas.

O centro de saúde, uma escola e uma esquadra da polícia, os quais se encontravam ainda fora dos projetos de financiamento da administração central, levaram a que a vereadora do pelouro da habitação de Loures temesse vir a comprometer o trabalho realizado pela autarquia no sentido de garantir que o realojamento da população da antiga Quinta do Mocho fosse algo mais do que dar novas chaves de casa às pessoas que anteriormente habitavam nas torres degradadas. Como se verifica pelos testemunhos no artigo, o espírito de renovação social através da habitação que alimentava o decreto que inaugurou o PER mantinha-se presente no discurso público desta autarca, mesmo vários anos depois da sua instituição. Agir sob a

19 Informação consultada no sítio https://www.publico.pt/local-lisboa/jornal/estado-esquece-equipamentos-da-

105 habitação equivalia a atuar sobre os males que afligiam a população, remendando o tecido social.

Encontra-se também ausente nos documentos oficiais e nos testemunhos públicos informação que pudesse levar a crer que os moradores tivessem em algum momento sido consultados relativamente aos moldes em que a urbanização onde estariam destinados a habitar no futuro seria construída. Foram assumidos determinados pressupostos, estabelecidos parâmetros quantitativos e qualitativos, ignorados “sinais exteriores de riqueza” e o novo bairro desenhado e erigido de acordo com estas premissas. Aos moradores, apenas recipientes das novas políticas, bastaria no dia mudarem-se e considerarem-se devidamente emponderados com as novas casas que lhes estavam a ser atribuídas.