• Nenhum resultado encontrado

Processos de fronteira e tecnologias de gestão da imigração na Europa

Capítulo 1 Uma abordagem antropológica à saúde mental dos imigrantes em Portugal

1.5 Processos de fronteira e tecnologias de gestão da imigração na Europa

O trabalho dos autores acima citados contribui para uma melhor perceção de como o conceito de “homo sacer” se traduz na realidade dos refugiados e dos imigrantes ilegais na Europa. Uma absorção acrítica da perspetiva de Agamben sobre biopolítica e produção de

“homini sacri peca por desconsiderar outras organizações de poder e agenciamentos possíveis

que os indivíduos consigam gerar, mesmo face a situações extremamente constrangedoras. Shinkel (2009) demonstrou como num mundo globalizado, marcado pelo declínio da importância da noção de espaço e do estado-nação, os imigrantes ilegais se encontram reduzidos a esta instância. Tentando redefinir-se nesta nova realidade, as nações tentam desvincular-se das suas funções sociais, transformando-se em estados penais que encarceram imigrantes porque se encontram indocumentados nos seus territórios. No seio da “crise identitária atual em que se encontra”, como Balibar defendeu (cit. in Schinkel, 2009: 799), a Europa produz um coletivo de vidas inúteis e desperdiçadas que armazena em não-lugares, os já conhecidos campos de detenção. Embora esta situação tenha as suas vantagens do ponto de vista económico para os estados europeus - mão de obra barata, flexível e legalmente invisível - estes imigrantes incorporam a ausência de estado dentro do próprio estado. A vida dos imigrantes cumpre assim uma função política, se aceitarmos a tese de Agamben que defende que a política moderna ocidental se funda sobre a ideia da exceção. Esta matriz escondida permite não só um maior controlo territorial, mas também o avanço de medidas predatórias sobre alguns indivíduos. A questão que Schinkel levanta prende-se com a tentativa de perceber

61 se este tipo de imigração ameaça efetivamente os estados-nação, ou se permite que estes se reafirmem e justifiquem as medidas penais adotadas. O autor conclui que esta maneira de endereçar os imigrantes ilegais, acima de tudo, outorga a que a identidade nacional saia reforçada da equação e o estado revigorado pela maneira como manipula a dicotomia da inclusão/exclusão.

Tentando avançar um pouco mais o argumento de Agamben, Shinkel apropria o conceito de heterotopia de Foucault. Para o filósofo francês, as heterotopias são locais onde a ordem normal do dia a dia é invertida. Não só existem em todas as culturas como cumprem com funções específicas.

Pressões globais sobre o estado e sobre as relações económicas globais são comprimidas e representadas no centro de detenção, porém são invertidas marcando uma reversão heterotópica da ordem, uma vez que o estado de exceção que refletem, na formulação paradoxal de Agamben, é o exterior do estado que se encontra no interior. (2009: 799)

Esta transversão das normas permite que se realize não só uma depuração e a produção de uma imagem ilusória da união nacional, como que o estado de exceção se mantenha invisível nas malhas sociais. Igualmente também se reforça a noção do imigrante legal, documentado e cumpridor. Embora Balibar (2010) sugira que a solução para esta situação em que a Europa se encontra deva ser encontrada numa identidade comunitária fluida e não estanque e classificatória, os países têm optado sucessivamente por medidas mais repressivas (que a recente crise terrorista tem agravado…), funcionando refugiados e imigrantes como bodes expiatórios das crises sociais e económicas dos últimos anos. Assim a Europa tem-se consolidado cada vez mais como uma fortaleza com elevados custos humanos ao nível do controlo das fronteiras (Spijkerboer, 2007), ao mesmo tempo que os estados-nação não abdicam da sua superioridade moral na exclusão de imigrantes do seu território sagrado.

Por seu lado, Inda (2006) procurou debruçar-se sobre como o policiamento das fronteiras tem funcionado enquanto tecnologia profilática na medida prevenindo que os imigrantes indocumentados se tornem problemas sociais, impedindo à partida a sua entrada em território norte-americano. O autor defende que, desde o 11 de setembro, os imigrantes são governados através de uma lógica penalizadora com o objetivo último de guiar a conduta dos outros. Não só se propaga a mentalidade de que os indivíduos irresponsáveis devem ser

62

responsalizados pelos seus atos, como que os indivíduos “normais” devem proteger-se e ser protegidos destes “anti-cidadãos”. Consequentemente, ao nível da fronteira com o México, tem havido um aumento sucessivo da vigilância e um investimento acentuado em muros e proteções justificada pela guerra ao terrorismo e à imigração ilegal.

Embora o contexto geográfico não seja o mesmo, podemos encontrar uma mentalidade semelhante aplicada no contexto da “Fortaleza Europeia”. Na Europa medidas semelhantes são adotadas, embora atualmente o objetivo seja impedir à partida que os imigrantes deixem os países origem através da deslocação das fronteiras europeias para países africanos, os quais são motivados a evitar ativamente a saída de imigrantes.

Servindo-se da noção foucaultiana de tecnologia e do aprofundamento deste conceito por Rose (1999), Inda defende que estas tecnologias se dispersam não só através do aumento de conhecimento prático, proliferando também através de arranjos arquitetónicos, tipos de autoridades e instrumentos com o objetivo calculado de conduzir o comportamento humano para determinados resultados. Por outro lado, estas tecnologias procuram moldar a conduta dos indivíduos e das populações aumentando o risco social e a insegurança, justificando a adoção de medidas preventivas destinadas a combater estas ameaças, sejam elas reais ou imaginárias.

Sob a máxima “Liberdade, Segurança e Justiça”, introduzida pelo Tratado de Amesterdão em 1997, a União Europeia definiu como sendo o seu objetivo assegurar a livre circulação de pessoas conjugada com o controlo das fronteiras, asilo e imigração. Com o intuito de prevenir e combater a criminalidade, a Europa delimitou o seu espaço de cidadania e valores a manter e a proteger. Face às falências económicas dos últimos anos motivadas pelo modelo neoliberal e pela globalização que resultaram no enfraquecimento do contrato e do estado social, a responsabilização foi atribuída gradualmente aos indivíduos, a insegurança aumentou e a atribuição da culpa devidamente explorada e alocada a bodes expiatórios externos.

Em 1999 o Conselho Europeu reuniu-se extraordinariamente em Tampere, na Finlândia, para discutir a criação deste espaço, o qual procurava gerir mais eficazmente os fluxos migratórios, combater a imigração clandestina na fonte e o tráfico de seres humanos, mas também incrementar os serviços de controlo de fronteiras e possibilitar o retorno voluntário. Procurava-se construir assim uma comunidade imaginada em solo europeu produzindo um inimigo comum - o imigrante ilegal - sem se refletir sobre os processos e efeitos das práticas que criaram esta condição. Estas decisões políticas permitiram tanto a seleção

63 como a filtragem de imigrantes, mas especialmente a delimitação da fronteira enquanto espaço de produção de classificações hierárquicas e de categorias morais, criando um discurso de verdade sobre a realidade da imigração que apaga as condições e os interesses que esta alimenta. Estas margens onde as práticas do estado (Das e Poole, 2004) se encontram excessivamente presentes através de dispositivos legislativos, administrativos, burocráticos e de segurança, produzem ativamente a alteridade e tentam encapsular a subjetividade dos indivíduos em categorias naturalizadas por estes mesmos aparatos. Revisitaremos este tópico mais à frente na etnografia.