• Nenhum resultado encontrado

Saúde e desenvolvimento: uma perspetiva histórica e antropológica

Capítulo 2 Na Quinta do Mocho

3.3 Saúde e desenvolvimento: uma perspetiva histórica e antropológica

Como Keshavjee (2014) afirmou na sua etnografia focada numa ONG cuja principal missão se prendeu com o apoio ao povo afegão em medicamentos e alimentos após décadas de conflito, o objetivo do etnógrafo a trabalhar junto de uma organização deste cariz não se prende com a emissão de julgamentos nem com a diminuição do valor ou da validade dos esforços empregues pelas associações que atuam em condições complexas. O objetivo do investigador, esse sim, implica perceber como as necessidades urgentes acabam enquadradas em objetivos maiores com motivações económicas (e morais), infiltrando-se assim nos programas de desenvolvimento no terreno. “Estas forças não são sempre más: frequentemente tomam a forma de indivíduos bem-intencionados, organizações bem-intencionadas, caridades, grupos religiosos e grupos solidários. Muitas vezes as decisões são tomadas por razões meramente pragmáticas.” (2014: 82), afirmou o autor. Porém, analisar as forças que atuam por detrás destas decisões ajuda a perceber como um discurso se assume como dominante e também como lógicas de “mercado se tornam o nivelador de todas as coisas sociais e morais” (2014: 279).

O interesse que estas dinâmicas poderão ter na formação dos recipientes de cuidados de saúde conduziu Keshavjee a uma análise histórica das condições económicas que as produziram. Analisando como as teorias dos prémios Nobel Milton Friedman e de Friedrich von Hayek influenciaram o pensamento económico mundial, Keshavjee percebeu como estas

129 definiram e influenciaram determinantemente a vida política. Os autores defenderam que a democracia só seria possível de alcançar quando o mercado fosse livre de maneira a permitir que os atores económicos agissem racionalmente, como se esperava que o fizessem, pelo que a interferência do estado na economia era desprezada e equiparada ao socialismo e totalitarismo que marcaram o conflito da 2ª Guerra Mundial. Esta teoria situava-se em oposição direta ao pensamento do economista John Maynard Keynes, o qual defendeu a importância da interferência do estado na estabilização económica de maneira a alcançar os objetivos comuns determinantes em sociedade. A eficácia do mercado e a relevância do consumo individual conduziu à privatização de bens do estado, uma vez que estes passaram a ser entendidos como sendo capazes de se autorregular. Os indivíduos, vistos agora enquanto seres racionais capazes de escolhas ponderadas, indiretamente influenciariam as leis da oferta e da procura, conduzindo assim a um equilíbrio ótimo entre ambas as forças, de acordo com as teorias económicas defendidas por Friedman e von Hayek.

Baseando-se no conhecimento dos paradigmas económicos apresentados, Keshavjee analisou em detalhe as condições históricas que permitiram a materialização deste pensamento em leis que moldaram o mundo de acordo com as premissas neoliberais. Apoiando-se na teoria da mudança social de Gramsci - na qual o filósofo defendeu que as mudanças no campo económico só se tornam eficazes e efetivas mediante a transformação da dimensão psicológica (nomeadamente, alterações nas rotinas, o seu impacto nas publicações de jornais, universidades, etc.), naturalizando-as na ordem social - Keshavjee refletiu no papel protagonista que a Sociedade de Mont Pèlerin25 teve na implementação destes princípios

neoliberais. Esta ideologia envolveu a disseminação dos valores de mercado a todas a instituições e imiscuiu-se na ação social, influenciando a arquitetura dos ajustamentos estruturais adotados a partir da década de oitenta pelo Banco Mundial e por outras estruturas

25 Esta sociedade foi fundada numa estância na Suíça onde se encontravam os dois prémios Nobel acima citados

juntamente com cerca de trinta políticos e intelectuais. Estes membros reuniram-se em abril de 1947 no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, numa altura em que se refletia sobre o rescaldo do conflito. Procuravam defender e debater os valores ocidentais que, acreditavam, se encontravam em declínio. Urgia protegê-los e para alcançar tal efeito definiu-se rigorosamente o papel que o estado deveria ter na intervenção económica. Ou seja, o mínimo possível, deixando que o mercado se tornasse o principal protagonista. A sociedade foi assim organizada de acordo com os princípios neoliberais que sustentavam o projeto político, social e económico defendidos pelos membros deste encontro.

130

de poder, as quais, por sua vez, influenciaram as instituições criadas após o conflito bélico. Citando Ong, Keshavjee afirma que o neoliberalismo pode redefinir as relações entre cidadão e estado, organizando os indivíduos de acordo com a sua capacidade de participar no mercado. A rentabilidade de cada indivíduo, despido da sua dimensão moral, torna-se num dos princípios organizadores desta ideologia. Esta produção de sujeitos, de formas de cidadania e de comportamentos reformula a organização social, um princípio avançado pelo filósofo Michel Foucault nas suas palestras no Collège de France. A institucionalização das normas e das regulações conduzem a alterações na conduta dos sujeitos. O estado controla e dirige os indivíduos sem ser responsável por estes - o mercado e as suas escolhas tomam aqui o protagonismo. Esta crença na racionalidade dos indivíduos estende-se a todas as decisões, desde o que consomem ao tipo de cuidados de saúde que adotam.

O FMI adotou esta ideologia e, na distribuição de fundos para recuperar economias nacionais falidas, como foi o caso português já por duas vezes, obrigou os países a introduzir também a mesma racionalidade na repartição do capital que lhes foi atribuído pelos diferentes programas apoiados pela instituição. A ideia de que os cuidados de saúde, para serem sustentáveis, teriam de ser vendidos como comodidades ou mercadorias, e que mesmo os indivíduos mais pobres teriam de ser responsáveis financeiramente pelos que adquiriam (de maneira a não abusarem também dos seus direitos), infiltrou-se por todo o mundo, especialmente em locais que requereram ajuda estrutural. Fazer com que os pobres gerissem a sua doença, não abusassem dos serviços públicos e pagassem pela sua saúde, cedo se tornou numa norma difundida por muitos países, especialmente entre aqueles que dependeram da ajuda financeira destas instituições mundiais.

Baseando-se na premissa que a saúde gera riqueza, o compromisso moral com a primeira intensificou-se nos programas do pós Segunda Guerra Mundial onde o mundo, sob a égide dos EUA e em vésperas da Guerra Fria, era fortemente influenciado pela hegemonia deste país tanto a nível económico como institucional. Então acreditava-se que o planeta podia ser dividido em módulos e que soluções técnicas poderiam ser aplicadas para resolver problemas complexos. A importância de alcançar objetivos tangíveis e de medir os indicadores de progresso moldaram a maneira de aplicar no terreno a visão da ONU. Este mundo, agora tornado legível através de estatísticas e de quantificações, viu-se alvo de programas inspirados numa racionalidade técnica que o dividiu em desenvolvido e subdesenvolvido. Os responsáveis

131 por estas ingerências preocuparam-se apenas em ler os números e desprezaram as diferenças locais. A pobreza, apontada como causa para o subdesenvolvimento impedia os países de serem considerados modernos, e os países pobres foram reunidos em grupos que permitissem que as grandes instituições os gerissem mais eficazmente (Basilico et al., 2013).

Diferentes programas foram implementados na segunda metade do século XX - Plano Marshall, “The Basic Needs Approach”, “Primary Health Care Movement”, “Selective

Primary Health Care”... - os quais, articulados com os apoios financeiros do Banco Mundial

que procuravam promover estabilidade através de empréstimos com a contrapartida de ajustes estruturais, originaram um foco na saúde tão redutor como o DALY (“Disability Adjusted Life

Years” ou Anos de Vida Ajustados para a Incapacidade), o qual define a carga global da

doença. Por outras palavras, esta métrica calcula os efeitos da doença na qualidade de vida dos indivíduos e das populações, bem como a perda da sua produtividade. Aqui a moeda prevalecente é a do valor económico dos indivíduos, criando uma desumanização do direito à saúde e uma distribuição dos recursos de acordo com a importância dos indivíduos na economia global.

De acordo com Biehl e Petryna (2013) a saúde enquanto valor essencial para o desenvolvimento tornou-se assim uma prerrogativa a partir do ano 2000 quando as Nações Unidas estabeleceram os seus objetivos para o desenvolvimento. Esta reordenação veio substituir a tendência do século anterior em que os planos eram implementados pelos estados- nação articulados com a OMS e estabeleceram novas formas de colaboração entre os diferentes intervenientes. A partir do momento em que a ONU tomou o protagonismo foram estabelecidas cooperações e articulações públicas e privadas entre diversas entidades para alcançar os referidos objetivos. Nos últimos anos estas parcerias têm vindo a crescer e a moldar as intervenções de saúde sob a égide do humanitarismo, do desenvolvimento e da segurança.

Com o intuito de analisar as implicações destas decisões em ação, Keshavjee investigou a atuação de uma ONG sob a tutela da Fundação Aga Khan na província afegã de Badakshan26.

26 O programa introduzido no Badakshan pela ONG que procurava fornecer medicação a uma população

malnutrida inspirou-se num projeto conhecido por Iniciativa Bamako. Este remonta a 1987, quando os representantes da UNICEF e da OMS se reuniram em Bamako, no Mali, com os ministros da saúde africanos cujos países se encontravam em crise financeira. Estes foram encorajados, apesar da sua situação já bastante precária, a aderir a um pacote de cuidados de saúde para os pobres em que o consumidor pagaria por esses mesmos cuidados quando se encontrasse doente. O objetivo seria recuperar os custos e financiar os cuidados de saúde

132

Destruída por uma série de conflitos militares, as populações desta localidade encontravam-se sem acesso a cuidados de saúde e a bens essenciais quando a organização iniciou o seu trabalho. Depois do colapso da antiga União Soviética em 1991, os serviços de saúde públicos que chegavam ao Afeganistão, apesar de não serem perfeitos, desapareceram por completo. O hiato causado pelo fim do socialismo e as necessidades urgentes desta população motivaram a chegada de organizações como esta tanto ao Badakshan como a outros locais. Nestes locais limítrofes estas ONGs substituíram o estado providenciando bens essenciais e cuidados de saúde a uma população bastante fragilizada pela guerra, pobreza e doenças. Como afirma Keshavjee, “as ONGS transformaram-se nos veículos preferidos para a provisão de serviços, o que os especialistas do desenvolvimento Edwards e Hulme referem como sendo “substitutos deliberados do estado” (2014: 267).

Para além dos cuidados de saúde Keshavjee verificou que existia outro motivo por detrás da missão destas organizações: uma mudança de mentalidades no acesso aos cuidados de saúde. O autor verificou existir uma relação entre a propagação das ONGs e uma nova agenda económica e política. Influenciadas pela lógica neoliberal que equipara a participação no mercado a uma prática democrática e que defende que os interesses privados funcionariam melhor na oferta de serviços sociais, estas organizações servem de instrumento na obtenção destes resultados. Os pilares dos planos de atuação destas ONGs financiadas por doações internacionais concentram-se em torno da necessidade de instaurar taxas de utilização que garantam a sustentabilidade dos serviços e que transformam os pacientes em consumidores. Por outro lado, o facto destas ONGs atuarem de uma posição supraestatal permite que alguns observadores afirmem que conseguem ser mais eficazes a alcançar as populações vulneráveis, como Keshavjee observou através da sua investigação. Todavia, os donativos dos quais dependem e que financiam os planos aplicados no terreno retiram a componente democrática ao fornecimento dos seus serviços, funcionando como jugos - conscientes ou não - da mentalidade que se procura difundir. As ONGs aproximam-se assim mais da ideologia dos dadores do que das necessidades das comunidades que servem. A emergência desta nova lógica, a qual se impõe como ideologia dominante, permite que as práticas sejam codificadas

através da participação de todos. Estes programas seriam assim considerados sustentáveis e, apesar dos resultados não terem sido os mais famosos, acabaram replicados em vários países em situações económicas semelhantes, desprezando as suas diferenças locais.

133 através dos projetos suportados financeiramente. Para o antropólogo esta mentalidade torna-se irresistível em parte por ser invisível tanto aos recetores como aos mediadores, os quais, mesmo bem-intencionados, desconhecem os motivos impulsionadores destes programas. Por outro lado, devido a um exercício já conhecido de governamentalidade que tem como objetivo último a produção de sujeitos, são formados os cidadãos e as instituições que os servem.

Influenciado por Ferguson (1994), um dos principais investigadores do desenvolvimento em Antropologia, Keshavjee propõe-se assim analisar as falhas e os insucessos destes programas, os que chama de seus efeitos colaterais ou “cegueira programada”. No caso do Badakshan o antropólogo verificou que o insucesso do programa implementado, mais especificamente, a ineficácia dos medicamentos chegarem aos pacientes que deles necessitam, pode ser visto como um sucesso ideológico para um doador: a penetração do pensamento neoliberal num contexto remoto, o qual subverte assim a relação dos indivíduos com o estado. Para Keshavjee é esse o verdadeiro objetivo destas iniciativas, as quais visam aplicar globalmente uma retórica que visa impor-se como discurso dominante, anulando todos os outros possíveis e uma multiplicidade de vozes.

Com as ONGs a funcionar como mecanismos de transplante, nenhum local é tão remoto que não possa cair sob o alcance ideológico neoliberal ou sentir o seu impacto. (…). Em várias maneiras, o discurso do desenvolvimento internacional - rigorosamente ligado à ideologia do neoliberalismo na última parte do século XX - está na vanguarda da globalização. E com isso chega uma mudança cognitiva significativa que está a ser formada primeiramente por um contexto mais lato de certos sistemas de valores, crenças, aspirações que procuram manter uma determinada ordem mundial. É na transformação do sistema de valores - na calibragem do mundo moral e dos enquadramentos éticos que o governam, que os pacientes se tornam consumidores e os mercados os distribuidores de bens sociais - que as subtilezas do discurso neoliberal têm o maior impacto no Badakshan. (Keshavjee, 2014: 250-251)

Será relevante inaugurar aqui algum espaço de debate crítico sobre o neoliberalismo. Apesar das inúmeras falências já apontadas a este sistema económico e enumeradas também as diversas maneiras evasivas em que se imiscui, moldando as subjetividades, não é aceite sem reservas nem todas as suas potencialidades podem ser consideradas apenas pelo seu lado negativo.

Ferguson (2009), antropólogo que se destacou pela sua investigação sobre desenvolvimento e as implicações do neoliberalismo no sul do continente africano, alertou

134

recentemente para os perigos de uma leitura muito rígida dos riscos desta ideologia. Os seus trabalhos recentes analisam os programas de apoio social instaurados em países onde estes se encontram nas mãos de grandes organizações, como por exemplo a Gates Foundation, responsáveis por programas de intervenção em locais onde os estados estão tão fragilizados que se substituem totalmente a estes no que à distribuição de subsídios sociais diz respeito (Ferguson, 2010). Conclui assim que uma leitura desta situação que o equipara a novas formas de imperialismo ou o condena por destruir cegamente a soberania dos governos africanos não é de todo construtiva. Ferguson apela a que a reflexão antropológica discorra para além da dicotomia trabalhador/estado-nação ou mesmo que não se posicione sempre contra práticas neoliberais, as quais esta procura incessantemente denunciar.

Para Ferguson o neoliberalismo surge frequentemente nas discussões académicas através da inclusão de alguns elementos:

a valorização da iniciativa privada e a desconfiança face ao estado, a par do que por vezes é chamado de “fetichismo do mercado-livre” e uma advocacia da eliminação de taxas, desregulação da moeda, e o desenvolvimento de “modelos de iniciativa” que permitiriam que o próprio estado fosse “gerido como um negócio” (2010:170).

O antropólogo propõe que se façam leituras mais aprofundadas de um fenómeno tão complexo como este. Para Ferguson uma análise do neoliberalismo que se alinhe com a ideia de que este se equipara a uma força exterior que irrompe sobre os modos de vida locais, destruindo-os, ou que a iguale a uma espécie de racionalidade que através de mecanismos específicos governamentais se dedica unicamente à produção de sujeitos, é extremamente redutora. Nesse sentido o autor apresenta o exemplo por si estudado em África, em que os pacotes de ajuda estrutural conduziram estes estados fragilizados a alterações económicas, mas não necessariamente à produção de sujeitos no sentido foucaultiano que autores, como por exemplo Rose (1999), utilizam.

Ferguson transporta o seu argumento para a temática do rendimento básico, o qual desvirtua os argumentos da direita política, baseados na premissa de que subsídios sociais criam obrigatoriamente dependência do estado. A narrativa que apoia esta iniciativa baseia-se no princípio de que tornar acessível este subsídio a todos permitirá que os pobres se transformem em verdadeiros sujeitos neoliberais, empreendedores, e em que a renda lhes

135 permita tomar riscos. Por exemplo, os defensores do rendimento básico afirmam que o serviço social sul africano propaga julgamentos morais acerca dos pobres não merecedores dos apoios concedidos, exigindo em troca que estes sejam policiados e inseridos nas normas sociais, estigmatizando-os. O rendimento básico seria, por outro lado, entregue a todos, não discriminando, não emitindo julgamentos de valor, não escrutinando as motivações pelas quais cada um concorre, nem orientando sobre como esse capital deveria ser investido. Estes defensores são da opinião de que quem recebe estes subsídios sabe melhor do que um burocrata como gastá-los e por isso fá-lo em consciência. O estado deixaria assim de ter de dar a mão porque cada um seria capaz de melhor se ajudar a si próprio.

Por outro lado, estes subsídios não seriam também utilizados como suporte para alturas em que os indivíduos mais necessitassem, nomeadamente quando se vissem desempregados. Pelo contrário, o rendimento básico é visto como uma condição normal num mundo onde o emprego como o conhecíamos deixou de ser uma realidade. Marcado por uma extrema flexibilidade e precariedade, o rendimento básico permitiria suprir as carências que estas situações provocam e que, aparentemente, não são temporárias. Estes apoios serviriam para impulsionar a produtividade e empreendedorismo dos indivíduos, orientados para as reais necessidades de quem mais deles precisa e desmistificando a ideia do “neoliberalismo que adoramos odiar” (2010: 178).

Ferguson nota ainda que estes exemplos não são necessariamente bons nem maus, uma vez que todos requerem situações de não intervenção do mercado, mesmo que servindo fins positivos para os pobres, mas também em que o estado intervenha como distribuidor de rendimentos. Ferguson afirma que a relação entre política e economia pode ser mais polimórfica do que as ciências sociais a têm colocado, e que o neoliberalismo interage com as normas locais de maneiras mais frutuosas do que apenas destruindo-as à sua passagem.

Por outro lado, Han (2012) procurou perceber como no rescaldo da reconstrução do Chile após a ditadura de Pinochet são organizadas as relações no quotidiano. A investigação de Han concentrou-se no bairro pobre de La Pincoya na periferia urbana de Santiago do Chile. Quando nos anos noventa se começou a transição para um regime democrático, o novo projeto de estado manteve a ideologia neoliberal aplicada ao mercado, mas assumiu uma dívida face à sociedade, esperando recuperar socialmente um país destruído por quase vinte anos de uma ditadura violenta marcada por desaparecimentos sucessivos dos opositores do poder. O estado

136

assumiu-se assim como devedor dos pobres, os quais foram os mais atacados pelas desigualdades criadas pelo regime ditatorial. Procurou-se assim expandir os programas contra a pobreza e fazer um investimento na recuperação da imagem face às sucessivas violações de direitos humanos. Tornou-se essencial no alcance destes objetivos uma reconciliação com o passado da nação, produzindo-se assim novas subjetividades políticas e morais.

Han verificou durante a sua pesquisa que os valores neoliberais acima identificados