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Capítulo 2 Na Quinta do Mocho

2.2 Imigração em Loures

De acordo com um documento elaborado e publicado pelo GARSE da CML (s.a.) os imigrantes de Loures, com base nos Censos de 2001, representavam cerca de 7% do total da população do concelho, distribuindo-se tanto pelas zonas mais rurais da autarquia como pelas mais urbanizadas. A publicação demonstra, recorrendo à mesma fonte, que a origem dos imigrantes tem vindo a diversificar-se, embora os moradores de ascendência africana sejam em maior número (cerca de 80% dos recenseados), especialmente os provenientes de Cabo Verde e de Angola. Nos últimos anos registou-se também um aumento de imigrantes brasileiros e do leste da Europa, motivado por questões económicas e políticas. Ao nível da distribuição por género, o estudo não ressalta grandes diferenças, apontando o agrupamento familiar e a antiguidade dos imigrantes no concelho como causas prováveis para a distribuição equitativa. O mesmo não acontece com os imigrantes de leste, essencialmente homens e na maioria recém-

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chegados que à data ainda não se tinham reunido com as suas famílias em Portugal.

De acordo com o vereador autor do editorial da referida publicação, a multiculturalidade do concelho motivou a criação de espaços onde estes moradores pudessem ativar a sua cidadania mais eficazmente. Assim, o GARSE foi denominado como responsável pelo desenvolvimento desta dimensão da vida dos estrangeiros residentes em Loures com o objetivo último de melhorar a sua qualidade de vida e de aproximar as condições de vivência dos cidadãos estrangeiros à dos nacionais, no que à participação cívica diz respeito. Através da organização de eventos, do apoio a associações locais direta e indiretamente, mas também na celebração de parcerias com universidades e na publicação de relatórios científicos, o GARSE tem vindo a destacar-se enquanto meio interposto destas dimensões da vida concelhia.

O documento referido ressalta ainda a representação da diversidade cultural e social de Loures em todo o território concelhio (embora com maior incidência na zona oriental) através da presença de um elevado número de associações locais, as quais funcionam como intermediários entre as populações que representam e os órgãos administrativos. No total existiam à data vinte e oito associações, que o estudo procurou ajudar a divulgar também, entre as quais se encontrava a PROSAUDESC, destacada junto de outras oito associações ativas na mesma localidade.

Na zona de Sacavém, composta por sete freguesias distintas, encontra-se mais de 50% do total da população imigrante censeada em Loures, num total de 87.362 moradores. Especificamente em Sacavém, a freguesia onde se localiza a antiga Quinta do Mocho e atual Urbanização Terraços da Ponte, habitavam à data de publicação do estudo 17.659 moradores, sendo que 14,9% correspondiam a imigrantes. Destes, 2.497 eram de origem africana, num total de 2.626 imigrantes, sendo a razão apontada pela publicação a presença do bairro de realojamento e a proximidade a Lisboa, a qual permite a deslocação diária de trabalhadores para o centro da cidade. Os imigrantes provêm essencialmente de Angola (852), de São Tomé e Príncipe (817), da Guiné-Bissau (406) e de Cabo Verde (395). Apesar de ser a freguesia com mais angolanos e santomenses - como se verifica pela presença e participação associativa -, é também nesta freguesia que curiosamente mais imigrantes chineses se encontram a habitar no território de Loures.

No dia 17 de novembro de 2001, a CML promoveu um encontro através do GARSE, para debater as comunidades imigrantes em Loures, o que originou a publicação de um estudo

81 com as atas do encontro, a qual deu também nome à mesma publicação. Este encontro realizou- se quando o processo de realojamento na Urbanização Terraços da Ponte se encontrava na fase final. Foram assim organizadas várias mesas de debate onde os funcionários do GARSE se reuniram num ambiente familiar e informal com os representantes das associações locais e cultos religiosos sob o mote do convite endereçado pelo Vereador a todos: “a aceitação da diversificação das práticas culturais, de culto e de cidadania, [a qual] permitirá usufruirmos de um conjunto de saberes plurais do qual resultará, por certo, o enriquecimento coletivo.” (CML, 2001: 4).

O encontro iniciou-se com o painel 1, no qual se discutiu “A aceitação das diferenças e a universalidade dos direitos humanos”. Começou com a intervenção de Cristina Santinho, antropóloga, na altura funcionária do GARSE, a qual apresentou a sua comunicação sobre diversidade cultural e igualdade na cidadania com respeito pela diferença. Exortou a que cada indivíduo fizesse uma autorreflexão para compreender os seus próprios limites e pré-conceitos, mas pediu também que a escola ajudasse na tarefa de educar para estas questões mais abrangentes. Na mesma medida elogiou o trabalho das associações locais, sem antes alertar para que estas não se apoiassem demasiado na CML que amiúde não dispunha nem das competências nem das responsabilidades muitas vezes exigidas pelas instituições referidas. Apelando a que as associações trabalhassem em parceria e contribuíssem para a melhoria das condições de vida dos imigrantes, elogiou a comunidade católica da Quinta do Mocho, a Associação Templo de Shiva e a comunidade islâmica por servirem de bastiões de preservação de conhecimentos e valores tradicionais, educando positivamente os seus membros. Referiu ainda o alheamento que muitos jovens sentem face aos referentes culturais dos pais e do país onde vivem, apelando a que os primeiros se dediquem mais à educação dos filhos para evitar que estes incorram em atos marginais.

Ao nível da autarquia, a antropóloga destacou a disponibilidade demonstrada pela CML em fornecer a sua população com as infraestruturas necessárias à melhoria das suas condições de vida de maneira a que esta possa também participar na construção da sua cidadania. Através dos projetos de intervenção comunitária, a CML dispunha-se assim a intervir diretamente no sentido de

dar voz e dar poder ao morador anónimo ao líder da associação, para que ele possa apontar alternativas para o seu próprio mal-estar social ou da comunidade que representa e ser ele, juntamente com os parceiros,

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a estabelecer o caminho que há a percorrer e a tornar-se assim o principal ator nos processos de mudança. (GARSE, 2001: 13)

No segundo painel do mesmo evento, desta vez subordinado ao tema “Contributos para a integração das comunidades imigrantes na sociedade de acolhimento” reuniram-se líderes de organizações locais, entre os quais o Sr. Cristiano, à data representante da Associação Unida e Cultural da Quinta do Mocho, uma organização à qual presidiu antes da PROSAUDESC. Esta associação resultou da criação de comissões por etnias na antiga Quinta do Mocho para que os habitantes melhor pudessem reivindicar infraestruturas e condições de vida adequadas nesse bairro. As principais ações organizadas prenderam-se com a valorização do núcleo residencial através da ação social, cultural e dinamização desportiva, mas também a consolidação do saneamento básico, eletricidade e água canalizada. Atuando sempre em parceria com a CML e com outros órgãos administrativos centrais, a Unida e Cultural auxiliou na legalização extraordinária nos anos noventa e encontrava-se na altura em vias de implementar projetos de intervenção local.

Sustentando o elevado grau de vulnerabilidade dos habitantes a que esta associação dava apoio, o Sr. Cristiano apontou o desemprego e a falta de documentação como fatores determinantes causadores de instabilidade entre as famílias moradoras, as quais se sentiam assim abandonadas pelos órgãos competentes que poderiam ajudar a nivelar estas desigualdades. Este panorama levou-o a questionar que futuro efetivamente poderia a Quinta do Mocho ter. “Fala-se efetivamente da inserção, mas para que haja inserção é necessário, do meu ponto de vista, que haja um enquadramento, para que as pessoas possam sentir bem-estar.” (2001: 69). A inexistência de condições após o realojamento, na sua perspetiva, não permitiria que houvesse uma mudança da anterior imagem da Quinta do Mocho ou oportunidades concretas para quem habitaria no novo bairro. No fundo, uma integração real à imagem das expetativas projetadas pelos órgãos autárquicos.

De acordo com a comunicação em jeito de resposta da coordenadora do GARSE, este gabinete dependia diretamente do executivo da CML, tendo sido criado em 1993. No entanto, devido à importância que questões de saúde se revestiam nas comunidades imigrantes e religiosas com as quais o GARSE lidava, o Gabinete de Saúde, inaugurado em 1990, encontrava-se à data sob a tutela da mesma coordenadora e os esforços eram empreendidos em conjunto. Tendo desenhado o objetivo de melhorar as condições de vida das populações locais

83 através da intervenção comunitária junto de grupos específicos, este gabinete dirigiu a sua ação para dois eixos, o do desenvolvimento local e o de estabelecimento de parcerias a nível económico, político, social, cultural e ambiental.

Neste sentido a coordenadora exortou novamente para a necessidade de interajuda e que cada indivíduo atuasse enquanto agente de mudança, não delegando na autarquia toda a responsabilidade dos resultados auferidos. Destacou ainda que a questão da acessibilidade aos serviços de saúde não era específica da comunidade imigrante, mas um problema geral do concelho. Referiu que tanto o Centro de Saúde de Sacavém como o de Loures tinham cinco mil inscritos sem acesso a médico de família. Apontou esse problema ao facto da democracia portuguesa ser muito jovem, não conseguindo distribuir equitativamente os bens e serviços pela população. Para a coordenadora do GARSE,

os imigrantes não podem pensar no seu caso como sendo dos imigrantes, há muitos portugueses a viver mal, há muitos portugueses sem acesso à saúde, há muitos portugueses que não conseguem pagar os estudos dos seus filhos nas universidades, e quando estamos a trabalhar em conjunto, e quando estamos a fazer parcerias, estamos a sentar-nos à mesa para termos consciência que há problemas, e que este problemas são da competência de um quadro legal do serviço a, b ou c, mas também da competência de todos nós cidadãos, com os nossos saberes, as nossas experiências, com a nossa capacidade para tentarmos obter outras respostas e outros compromissos por parte daqueles a quem confiámos mandatos aos diferentes níveis, do local e do central. (2001: 121)13

13 No decorrer do meu trabalho de campo tive oportunidade de me encontrar com alguns membros do GARSE

que se encontravam presentes neste evento (em 2010 a Doutora Cristina Santinho já não era funcionária deste gabinete). O motivo da reunião agendada surgiu após a D. Virgínia ter demonstrado interesse em efetivar uma parceria entre a PROSAUDESC, o Grupo de Imigração e Saúde (GIS) e o GARSE. O GIS manifestara desejo em desenvolver junto dos técnicos da CML workshops e formações no âmbito da sensibilização cultural para a saúde em conjunto com associações locais e a autarquia. Quando, na referida reunião, referi o intuito deste projeto, as funcionárias do GARSE avisaram que já tinham sido realizadas várias intervenções e que os imigrantes também se encontravam devidamente informados, pelo que nesse âmbito já não havia muito mais a fazer. Ao nível do acesso aos cuidados de saúde, repetiram o que se encontra também nas atas do evento já citadas: o problema não é específico dos imigrantes, é da população em geral. Embora não se negue este problema e as falhas do SNS, no entendimento do GARSE a questão pareceu já se encontrar devidamente encaminhada. Quando referi especificamente questões de saúde mental que necessitariam de ser abordadas cuidadosamente por profissionais formados neste sentido, nomeadamente o internamento compulsivo de uma moradora dos Terraços da Ponte, o qual será abordado no sexto capítulo, responderam-me: “Ainda bem que o Centro de Saúde não internou quando o problema não passava de solidão e saudades da família.”

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A análise destes dois documentos publicados pela CML permite alcançar algumas conclusões provisórias para este estudo. Se por um lado existia interesse em dialogar e cooperar com as comunidades migratórias - depois de devidamente identificadas e classificadas mediante estudos estatísticos… -, bem como divulgar a existência de associações presentes na zona que poderiam servir de intermediárias entre o poder local e os imigrantes, por outro os representantes associativos requeriam mais intervenção da parte da autarquia na defesa dos interesses das comunidades. Nem sempre os interesses de ambas as partes pareciam encontrar- se sincronizados e nesse sentido a responsabilidade era invariavelmente devolvida aos principais visados.

Novamente parece útil interromper aqui a narrativa e dar a palavra a Foucault para que se consiga uma reflexão aprofundada dos dados etnográficos e se perceba qual o alcance e a motivação por detrás dos testemunhos presentes nas atas deste encontro. Antes de passarmos ao exemplo específico da Quinta do Mocho e da ideologia por detrás da edificação deste bairro, relembramos a definição do conceito de governamentalidade enquanto arte do governo composta por estratégias e táticas para melhor administrar a população e de criar sujeitos mais facilmente geríveis por si. Foucault, a respeito desta temática, afirmou:

A população representa agora mais o objetivo do governo do que o poder do soberano; a população é o alvo das atenções, das aspirações, mas também é o objeto nas mãos do governo, consciente, face ao governo, do que pretende, mas ignorante do que lhe está a ser feito. Interesse ao nível da consciência de cada indivíduo que faz parte da população, e cujos interesses se consideram ser os da população independentemente dos interesses particulares e aspirações de cada indivíduo que a compõem, este é o novo alvo e o instrumento fundamental do governo da população: o nascimento de uma nova arte, ou a qualquer custo de um conjunto de novas táticas e técnicas. (Burchell, Gordon e Miller, 1991: 100)