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2.2 O Que é Um Crime? Algumas Questões

2.2.3 O Crime como Problema Social e Comunitário Enfoque Criminológico

2.2.3.6 O Controle Social

titular não é a pessoa física, porque transcendente a esta. Refuta, portanto, a comum afirmação de que existam delitos "sem vítimas". Ao contrário, o que ocorre nesses campos de criminalidade – a criminalidade financeira, a do 'colarinho branco', etc. – é que a acepção tradicional de vítima, assim restritiva, carece de operatividade, em razão do processo de despersonalização, anonimato e coletivização da vítima que neles se produz.

O autor ressalta um dado vitimológico de primeira magnitude: a progressiva despersonalização, coletivização ou anonimato que parecem caracterizar as relações entre delinqüente e vítima em uma significativa parcela de criminalidade de nosso tempo. Cita os crimes financeiros, os de 'colarinho branco', os numerosos delitos cometidos em nome de pessoas jurídicas ou em prejuízo destas, as fraudes ao consumidor, os crimes cometidos por meio dos computadores ou da internet. Para GARCÍA-PABLOS238, esse processo de despersonalização, de coletivização ou de anonimato da vítima tem sua origem nas complexas relações da sociedade pós-industrial (como já explicamos no capítulo I, item 1.2.4, o indivíduo se diluiu na sociedade de massas). Da mesma forma, as vítimas se despersonalizam nos crimes de nossa época. Portanto, uma prevenção eficaz do delito precisa levar em conta os efeitos e as conseqüências derivados de dito anonimato, da coletivização e da despersonalização.

Também, nos delitos financeiros, o anonimato e o caráter coletivo ('difuso') da vítima (a própria ordem econômica, a sociedade) limitam ao máximo a visibilidade social desses crimes. O delinqüente aproveita a psicologia especial da vítima-massa (que nada mais é do que o homem-massa, referido por ORTEGA Y GASSET - conceito exposto no capítulo I, item 1.2.4), indiferente e pouco motivada, principalmente quando os prejuízos concretos que sofreu não compensam os gastos e os transtornos de um processo judicial239. Essas considerações nos parecem perfeitamente adequadas em relação às vítimas do delito de lavagem de dinheiro.

Uma última palavra a respeito da idéia de controle social.

2.2.3.6 O Controle Social

238 GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia, p. 130-131. 239 GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia, p. 131.

Tratando do controle social, AZEVEDO240 detalha seus dois níveis de atuação: o ativo ou preventivo, representado pelo processo de socialização; e o reativo ou estrito, que pode se expressar por meios informais (de natureza psíquica, física ou econômica) ou formais (lei penal, polícia, tribunais, prisões, manicômios, etc.).

Para o autor, embora sujeitas a descontinuidades, a interrupções ou a interferências quanto à sua aplicação (nível de eficácia) as normas processuais e penais configuram o sistema de controle jurídico-penal. Se, de um lado, a concentração de poder está nas mãos do Estado, a complexificação da sociedade e a regulamentação cada vez maior de amplos setores da vida social culminam com a crise de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurídico esvaziado; de outro, as mudanças sociais ocorridas durante o século XX foram enfraquecendo os mecanismos de controle comunitário sobre o comportamento, aumentando os focos de conflito e a violência como um todo.

Nesse panorama, o Estado já não é mais capaz de cumprir integralmente a promessa de proteção da sociedade, e fica sem o apoio dos mecanismos de controle informal, naturalmente complementares ao controle jurídico-penal.

O problema se acentua porque, como afirma GARCÍA-PABLOS241, já se sabe, hoje, que a intervenção penal é traumática; negativa para todos, quer por seus efeitos, quer por seu elevado custo social. Na falta de outros instrumentos, a pena pode ser imprescindível, mas não é uma estratégia racional para resolver conflitos sociais: não soluciona nada. Ao contrário, acentua e potencializa, estigmatiza o infrator, desencadeando sua carreira criminal, consolidando seu status de desviado. Para o autor, a suposta eficácia preventivo-geral da pena não é provavelmente mais do que uma pálida e ingênua imagem da realidade, à luz dos conhecimentos empíricos atuais.

Contudo, a prevenção eficaz do delito é um dos objetivos prioritários da criminologia; a mera repressão chega sempre demasiadadamente tarde e não incide diretamente nas chaves últimas do fato criminal.

240 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalização da Justiça e Controle Social, p. 92, 94, 98, 101. 241 GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia, p. 241-242.

GARCÍA-PABLOS sustenta então que qualquer aproximação científica ao crime sugere sua conceituação como problema social e comunitário. Assim, o crime não é um tumor, nem seqüela, nem epidemia ou câncer social; tampouco estatística, um simples dado, uma cifra. Nem castigo divino, como para alguns sociólogos que postulam que 'cada sociedade tem os crimes que merece'. Não é também o suposto de fato de uma norma jurídica, injusto culpável ou lesão a bens jurídicos. O delito não é uma mera 'etiqueta', como defendem os teóricos do labeling approach, mas

El crimen es, ante todo, un problema 'de' la comunidad, que surge 'en' la

comunidad, y debe resolverse 'por' la comunidad. En tal sentido – y no en el

'axiológico', ni en el meramente estadístico – se trata de un fenómeno 'normal',

inseparable de la convivencia, inextirpable, que la sociedad debe asumir. La paz de una sociedad sin crimen, por tanto, es una paz ficticia e intolerante: es la paz de los cementerios o de las estadísticas falsas. Asumiendo el legado incuestionable del pensamiento estructural-funcionalista, no cabe ya calificar el delito de 'cuerpo extraño' al sistema social. Todo lo contrario: acompaña inexorable e

ininterruptamente al ser humano cualquiera que sea la concreta forma histórica en que éste organice la convivencia. Hunde sus raíces en la propia naturaleza humana y en los procesos y conflictos inherentes a toda sociedad. Tiene, pues, faz humana,

casi doméstica, como tantas otras realidades inseparables de la vida diaria y

cotidiana. Hemos convivido y convivimos siempre con él242.

A caracterização do crime como problema social e comunitário representa, para o autor, poderoso limite a tresnoitados objetivos político-criminais:

Los problemas sociales no se erradican, se controlan razonablemente...Pretender, pues, la total erradicación del crimen de la faz de la tierra, es una peligrosa e ilegítima quimera cuyos elevados costes no debe asumir una sociedad sana y libre, ni siquiera en nombre de una mal entendida utopía243.

Ou seja: o crime é um problema de todos e não apenas do 'sistema legal'. Nesse 'combate', qualquer idéia de 'vencer' uma 'luta' contra o fenômeno criminal está, inevitavelmente, destinada ao fracasso. O máximo que se pode aspirar (e já é muito) é, através da prevenção e da repressão dos delitos, alcançar, tanto quanto possível, um controle da criminalidade.

242 GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia, p. 103. 243 GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia, p. 105.

3 REGIME GLOBAL E REGIME LOCAL DE PROIBIÇÃO