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1.2 Contornos das Idéias e dos Valores na Sociedade Ocidental Contemporânea

1.2.3 A Crise dos Valores na Modernidade

O século XX trouxe consigo o “fim das certezas” e o “fim das ilusões”. RAUX27 considera-o um dos piores em termos de barbárie - da Primeira Guerra Mundial aos mais recentes confrontos étnicos ou religiosos, os mortos contam-se aos milhões.

BAUMER28 relaciona esse quadro às enormes transformações ocorridas no pensamento a partir da primeira metade do século XX: depois da revolução científica e da revolução cristã, que transformaram o mundo antigo, uma nova revolução veio para destruir os “ídolos” construídos pelos tempos modernos. Segundo ele, a “nova” modernidade afastou o ser e deixou os homens sem pontos de referência, colocados à deriva num mar infinito de devir.

Os horrores da Primeira Guerra Mundial trouxeram à tona a natureza primitiva do homem. Questões teológicas começaram a parecer sem sentido para um número significativo de pessoas, incluindo alguns teólogos. É preciso lembrar que, desde a Reforma de Lutero, o Estado cristão havia se transformado em Estado individual, e a religião era vivida dentro da consciência de cada cristão, individualmente29.

Cientistas sociais lutavam com uma nova ciência política e social desprovida de valores. Nada de permanente existia; os valores haviam desaparecido e o homem foi deixado frente a frente com o Absurdo, que provocava sentimentos de ansiedade e de alienação30.

O homem tornou-se problemático, e, por várias razões: não havia mais uma religião, uma metafísica ou ciência capaz de fornecer uma estrutura de referência; mudavam as formas de abordagem do conhecimento e, com isso, as respostas a essas questões. Além disso, o

27 RAUX, Jean-François. “Elogio da Filosofia para Construir um Mundo Melhor”. In: A Sociedade em Busca de

Valores, p. 12.

28 BAUMER, Franklin. L. O Pensamento Europeu Moderno, v. II, p. 167.

29 DUMONT, Louis. Essais sur L’individualisme - Une Perspective Anthropologique sur L’idéologie Moderne,

p. 36 e 95.

homem perdeu sua imagem tradicional do universo, sentia-se inseguro e desamparado. Perdeu também as velhas formas orgânicas de comunidade - sua “segurança sociológica” - sendo atirado à solidão.

A antropologia relativista destruiu o antigo ponto de vista de uma natureza fixa ou do ideal do homem, para afirmar que este é, em grande parte, o que os outros fazem dele: a sociedade, o ambiente em que vive, a educação que recebe. Não é uma coisa, mas varia de acordo com o tempo, o lugar, a cultura.31 ROMAN32 mostra o que o indivíduo passou a ter como tarefa: produzir-se a si mesmo. Sua principal finalidade é ser o autor de sua própria individualidade - é um trabalho infinito, que nunca acaba completamente. Cada um passa a ser o herói de sua própria vida.

BRUCKNER33 aponta o preço a pagar pelo individualismo: o homem das sociedades tradicionais não tinha a liberdade de que gozamos hoje, mas contava com um determinado número de solidariedades que hoje já não existem. Se não era um homem livre, era um homem com laços, protegido. Hoje, ao contrário, pagamos o preço do individualismo com uma insegurança crescente, uma vulnerabilidade constante. Desde o nosso nascimento, temos que nos fazer a nós próprios, e existir é difícil. A liberdade é um fardo pesado.

ROMAN34 mostra como o ganho de liberdade traz sofrimentos psíquicos e sociais. A partir do momento em que o indivíduo não mais se submete a uma ordem exterior, precisa assumir, pessoalmente, opções de vida, opções existenciais que, em momentos passados, não teria de fazer. Elas lhe eram ditadas pela estrutura social. Agora, ao assumir essas escolhas, passa também a ser responsável por elas, a sofrer suas conseqüências. A liberdade do indivíduo moderno é também sua grande exposição. Quanto maior a liberdade, maior o número de obrigações que surgem em decorrência dela35.

31 BAUMER, Franklin. L. O Pensamento Europeu Moderno, v. II, p. 187.

32 ROMAN, Joel. “Autonomia e Vulnerabilidade do Indivíduo Moderno”. In: A Sociedade em Busca de Valores,

p. 39-49.

33 BRUCKNER, Pascal. “Filhos e Vítimas, o Tempo da Inocência”. In: A Sociedade em Busca de Valores, p. 51-

62.

34 ROMAN, Joel. “Autonomia e Vulnerabilidade do Indivíduo Moderno”. In: A Sociedade em Busca de Valores,

p. 39-49.

35 Tem razão SIMMEL quando afirma não existir liberdade absoluta. Não podemos nos livrar completamente de

contingências ou constrangimentos, mas podemos trocar uns por outros, escolher a quais constrangimentos nos submeteremos: é a liberdade possível, os espaços de movimento, ou “Handlungsspielräume” (SOUZA, Jessé; ÖLZE, Berthold, (Org.). Simmel e a Modernidade, p. 11).

Mas o homem passou a ser responsável, ainda, por seu mundo interior. O surgimento da psicanálise revelou a importância dos sonhos e a existência do inconsciente – ir para dentro para encontrar o ego ou a si próprio. A literatura que trata do “homem” é enorme em todos os níveis. Discute-se “a natureza do homem”, “a condição humana”, “a estatura do homem”, “o homem moderno à procura de uma alma”, entre outras semelhantes36.

Então, o homem é problemático também porque, mesmo não sabendo bem o que é, não gosta do que vê em si. A autodesvalorização do homem confronta-o não só com sua ambigüidade e sua relatividade mas também com sua insignificância no esquema das coisas, sua bestialidade e sua infelicidade. FREUD destruiu as ilusões que o homem tinha a respeito de si próprio. COPÉRNICO destruiu a ilusão cósmica de que o homem estava no centro do universo. DARWIN destruiu a ilusão biológica de que o homem era um ser essencialmente diferente e superior aos animais. A psicanálise desferiu o golpe final, o de que o homem nem sequer era o dono de sua própria casa, que o ego (razão) não dirigia a vontade e todo o trabalho do espírito, como sempre se pensara37.

Depois do “fim das ilusões”, o “fim das certezas”: o grande desenvolvimento da física ocorreu com o nascimento da teoria quântica de PLANCK e com as teorias da relatividade especial e geral de EINSTEIN. Elas fizeram desmoronar as certezas absolutas de Newton, tornando a física mais abstrata. EINSTEIN deslocou toda a percepção de tempo e de espaço, ao demonstrar que suas medidas variavam com o movimento do observador, e, portanto, não havia simultaneidade absoluta de acontecimentos. O Princípio da Indeterminação de HEISENBERG introduziu a incerteza no coração da física. Para MORIN, a grande descoberta deste século é que a ciência não é o reino da Certeza38.

É claro que essa mudança iria refletir-se também nas ciências humanas, que tinham construído seus ideais sobre as certezas das ciências exatas, especialmente, a física. Até porque, apesar dos resultados extraordinários por elas alcançados, uma dúvida cada vez maior crescia a respeito das ciências em geral. O incremento gigantesco do poder do homem para controlar a natureza não foi acompanhado por um aumento de seu poder para controlar

36 BAUMER, Franklin. L. O Pensamento Europeu Moderno, v. II, p. 184.

37 BAUMER, Franklin. L. O Pensamento Europeu Moderno, v. II, p. 192, 225-245.

situações humanas39. Se o desenvolvimento econômico – e tecnológico - continua a ser um milagre, a crise das sociedades ocidentais marca o regresso da exclusão e da grande pobreza. A lição que é preciso tirar é clara: a História não tem moral, e o progresso material e econômico de uns não garante o desenvolvimento de outros. O progresso não tem sentido40.

Além de claramente desligada da Moral41, a própria idéia de história entrou em crise. Segundo VATTIMO, que trabalha com o conceito de pós-modernidade, a questão em torno da qual gira o chamado “fim” da modernidade é justamente a impossibilidade de se pensar a história como algo unitário. Uma visão da história como essa implica, necessariamente, na existência de um centro em torno do qual se recolhem e se ordenam os eventos42. Efetivamente, a filosofia dos séculos XIX e XX desvelou o caráter ideológico da idéia de história única. O que é transmitido do passado? Não tudo o que acontece, apenas o que parece ser mais relevante: batalhas, tratados de paz, revoluções. Assim como é ilusório pensar que possa haver um ponto de vista supremo, também não se sustenta a idéia de progresso: se não existe um curso unitário dos acontecimentos humanos, não se pode sequer sustentar que eles avancem em direção a um fim, que realizem um plano racional de aperfeiçoamento43.

1.2.4 A Diluição do Indivíduo: Sociedade de Massas e Democracia de Massas; Tribos e