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O Dinheiro Como Valor Supremo e o Espírito do Capitalismo

1.2 Contornos das Idéias e dos Valores na Sociedade Ocidental Contemporânea

1.2.5 O Dinheiro Como Valor Supremo e o Espírito do Capitalismo

O objeto de nosso estudo impõe uma análise detalhada sobre um dos valores da ideologia da sociedade ocidental: o dinheiro. Já mencionamos a grande importância da categoria econômica no conjunto de representações da sociedade e tratamos da ideologia econômica. Agora passamos a examinar o significado do dinheiro, como ele afeta as relações humanas, e o que caracteriza o capitalismo moderno. WEBER54 explica que, do ponto de vista puramente técnico, o dinheiro é o meio de cálculo econômico “mais perfeito”, isto é, o meio formalmente mais racional de orientação da ação econômica.

Mas SIMMEL55prefere tratar do tema dentro da filosofia. Se existe uma filosofia do dinheiro, ela só pode estar aquém e além da ciência econômica do dinheiro: ela pode, de um lado, descrever as condições que, assentadas nos estados de alma, nas relações sociais e na estrutura lógica das realidades e dos valores (sistema de idéias e de valores) indicam o sentido e a situação prática do dinheiro. Investigando conexões abstratas, de natureza psicológica e ética, que não são temporais, mas puramente objetivas e que até são apreendidas pelos poderes históricos, mas não em sua completude, é que se pode desvendar o desenvolvimento das condições que dão a natureza e o sentido do dinheiro. O autor examina também os efeitos do dinheiro no mundo interior: no modo como os indivíduos sentem sua vida e seu lugar no mundo, no encadeamento de seus destinos, na cultura em geral. Assim, ele vê, no advento da economia monetária, o fator estrutural mais importante da modernidade.

WEBER56 define a economia monetária como uma economia com uso típico de dinheiro e, portanto, orientada pelas situações de mercado estimadas em dinheiro (fala-se em economia natural no sentido de uma economia sem uso de dinheiro, podendo-se, de acordo com isso, diferenciar as economias historicamente dadas, segundo o grau em que empregam ou não dinheiro. Todo cálculo em espécie está orientado, segundo sua essência mais íntima, pelo consumo: satisfação de necessidades.

54 WEBER, Max. Economia e Sociedade, v. 1, p. 53. 55 SIMMEL, Georg. Philosophie des Geldes, p. 10. 56 WEBER, Max. Economia e Sociedade, v. 1, p. 62-63.

SIMMEL aponta como fenômeno mais geral e característico da modernidade a separação entre as esferas objetiva e subjetiva que tem como fundamento a mediação das relações humanas por meio do dinheiro. A análise dessa separação mostra a marca de uma ambigüidade fundamental: o dinheiro desempenha um papel central tanto na constituição da liberdade quanto nas tragédias modernas. Tragédia é aqui usado em um sentido muito preciso. Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador, o destino trágico, na significação que interessa ao autor, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras, mobilizadas contra um ser, foram produzidas pelas tendências mais profundas desse mesmo ser.

SIMMEL vê a liberdade como uma mudança de constrangimentos, ou seja, ela não ocorre em um vácuo, mas em um contexto de obrigações. Ao libertarmo-nos de algumas obrigações, sentimo-nos livres, até percebermos que outras vieram assumir o lugar das antigas. A liberdade moderna, trazida pelo dinheiro, fica clara quando se pensa na estrutura feudal, onde o servo obrigava-se, pessoalmente, ao Senhor. À medida que essas obrigações pessoais foram sendo substituídas por contraprestações monetárias, ocorreu a “monetarização” da relação Senhor-servo, e, a um só tempo, a despersonalização da relação de dominação em si e a libertação dessa relação de obrigação.

Generalizando esse processo, pode-se falar que, com a consolidação da economia monetária, o dinheiro permite uma margem importante de liberdade pessoal, porque separa o desempenho (que pode ser comprado com dinheiro) da personalidade (que permanece inalienável). Assim, associada à divisão social do trabalho, a economia monetária permite a essa personalidade - libertada de constrangimentos éticos e pessoais – uma maior oportunidade de autodeterminação e de desenvolvimento, porque torna a teia de dependências sociais mais rarefeita e múltipla.

A liberdade, porém, não é nunca uma liberdade absoluta. Não podemos nos livrar completamente de contingências ou de constrangimentos, porém podemos trocar uns pelos outros, escolher a quais constrangimentos e contingências nos submeteremos: é a liberdade possível, a liberdade de movimento que SIMMEL chama de “Handlungsspielräume”.

Se a tragédia da cultura moderna é a separação e o estranhamento entre as esferas objetiva e subjetiva, a economia monetária, implicando a mediação das relações humanas por

meio do dinheiro, é o fundamento das duas. Ela cria a possibilidade de noção da subjetividade e a liberdade individual possível.

Quando o dinheiro separa as esferas subjetiva e objetiva, contribui para o desenvolvimento de ambas, permitindo que cada qual siga uma lógica imanente. Como a personalidade jamais está em jogo nas transações monetárias, a economia monetária liberta o indivíduo das formas de solidariedade tradicional, pelas quais se comprometia. Por outro lado, com o afastamento de tudo o que é pessoal, desaparece a possibilidade de qualquer qualidade específica não-econômica; o dinheiro como equivalente geral exerce uma universalização unilateralmente dirigida “para baixo”, ou seja, as qualidades são transformadas em quantidades57. As qualidades perdem sua importância psicológica por causa da economia monetária; o cálculo, necessariamente contínuo do valor em dinheiro, faz com que este apareça como o único valor vigente.

As coisas também se desvalorizam, em um sentido mais geral, pela equivalência com o dinheiro, como meio de troca válido para qualquer coisa. O dinheiro é “vulgar”, porque é o equivalente para tudo e para todos; somente o individual é nobre. Aquilo que corresponde a muitas coisas corresponde ao mais baixo entre elas e reduz, também, o mais alto para o nível mais baixo. Essa é a tragédia de cada nivelação (nivelar por baixo). Por isso se chama de “impagável” o que é muito especial e assinalado. É justamente por causa do seu caráter nivelador que o dinheiro se torna a medida de todas as coisas58.

O homem torna-se, portanto, uma “criatura mediada”. É a “coisificação” do homem. A confusão entre meio e fim, instaurada pelo dinheiro, é necessária, já que o fim a ser atingido, por ser mediado, exige tanta concentração no meio que este acaba por se confundir com o próprio fim. Essa inversão aumenta com o desenvolvimento da cultura e a tecnificação da vida; o meio absoluto dinheiro tende a tornar-se o fim absoluto, o modelo e o grande regulador da vida prática59.

O dinheiro torna-se alvo final. Quando esse alvo é finalmente alcançado, surgem, inúmeras vezes, um aborrecimento e uma frustração mortais. Essa sobreposição dos fins pelos

57 SOUZA, Jessé. “A Crítica do Mundo Moderno em Georg Simmel”. In: Simmel e a Modernidade, p. 11-12. 58 SIMMEL, Georg. “O Dinheiro na Cultura Moderna”. In: Simmel e a Modernidade, p. 30-32.

meios é um traço essencial e um dos principais problemas de toda cultura elevada. Nunca antes aconteceu que um tal objeto de valor, meramente instrumental, assumisse o papel de um fim satisfatório por si mesmo – seja aquela satisfação ilusória ou verdadeira – com tanta força, tanta extensão e tanta influência na situação geral da vida. O dinheiro é meramente um meio para obter outros bens – mas pensamos nele como se fosse um bem autônomo. Para SIMMEL, ele nada mais é do que uma ponte para os valores definitivos, e não podemos morar numa ponte60.

A segurança e a tranqüilidade que a posse do dinheiro faz sentir, a convicção de possuir com ele o centro de valores, a confiança na onipotência de que ele seja o princípio mais alto explica a afirmação de que o dinheiro é o Deus da época moderna. Assim, podemos compreender como o dinheiro passou a ser o valor supremo na configuração da ideologia da sociedade ocidental.

Entretanto, essa afirmação também pode ser explicada se atentarmos para as relações que existem, efetivamente, entre a religião e o dinheiro. O capitalismo, em sua forma moderna, nasceu dessas relações. WEBER61 procura isolar sua característica fundante: aquilo que define como o “espírito” do capitalismo moderno, e que não existia anteriormente. O que lhe interessa é o ethos que ele expressa, sua ética peculiar. Ganhar dinheiro - e sempre mais dinheiro - é pensado como um fim em si mesmo e não vinculado ao benefício que se possa obter desses ganhos. O ganho surge como objetivo de vida e não mais como meio para alcançar as satisfações materiais da vida de um ser humano. Essa inversão é o Leitmotiv do capitalismo moderno.

Não se pode fugir disso: a atual ordem econômica capitalista é um imenso cosmos, dentro do qual já nascemos e que se torna, para cada indivíduo, uma “gaiola” dentro da qual se tem que viver. Ela impõe a cada um, preso nas redes do mercado, suas normas de ação econômica.

WEBER identificou a matriz desse espírito capitalista na doutrina das religiões protestantes. Para essa concepção religiosa, o trabalho profissional sem descanso seria o meio mais seguro de alcançar a salvação. O trabalho era um método de condução de vida, um meio

60 SIMMEL, Georg. “O Dinheiro na Cultura Moderna”. In: Simmel e a Modernidade, p. 33-34. 61 WEBER, Max. Die Protestantische Ethik und der “Geist” des Kapitalismus, p. 15-199.

racional de aumentar a glória de Deus na terra. As boas obras – o trabalho bem-feito – eram incapazes de ‘comprar’ a bem-aventurança eterna, mas eram imprescindíveis como sinais da eleição. Dessa forma, aqueles que se considerassem ‘eleitos’ perdiam o medo de não serem salvos, quando se dedicavam ao trabalho – tanto braçal como intelectual.

O católico, por sua vez, tinha à disposição a graça dos sacramentos. O padre expiava os pecados, perdoava e eliminava o peso da culpa. O católico, caso pecasse novamente, poderia arrepender-se e, em penitência, liberar-se novamente daquela carga. O protestante não tinha essa possibilidade. Seu Deus não se contentava com ‘boas obras isoladas’, mas exigia uma vida santa. Ou seja: a santificação pelas obras, como sistema.

WEBER afirma não sermos capazes de compreender como os poderes religiosos foram influentes, à época, ao ponto de “plasmar o caráter de um povo”. A idéia puritana de vocação profissional estendeu-se sobre a vida dos negócios.

Mesmo o homem de posses, que poderia viver de seus bens, deveria continuar a trabalhar arduamente. Os frutos do seu trabalho não deveriam ser gastos com prazeres pessoais, inclusive os de natureza cultural, estética ou esportiva. Se o homem nada mais era do que um administrador dos bens que a graça de Deus lhe dispensou, deveria prestar contas de cada centavo confiado, gastando-o, além do seu sustento, apenas para a glória de Deus.

A conseqüência dessa mentalidade foi simples: estrangulou-se o consumo, especialmente o de luxo. Assim, o enriquecimento foi liberado; não só aceito como incentivado por Deus. O que se combatia não era o ganho, mas o uso irracional das posses. Estrangulando o consumo e permitindo-se o lucro, o resultado externo era um só: acumulação de capital, mediante coerção ascética à poupança. Se não se devia consumir, o ganho obtido acabava sendo empregado produtivamente como investimento de capital. Ou seja, riqueza.

Esta foi a base para o surgimento do homem de negócios. A questão é que, com o aumento da riqueza, diminuiu a essência da religião. Permaneceu a idéia burguesa de que, caso o ganho se desse dentro da lei, era plenamente legítimo e desejável Essa ‘moralidade’ tornou-se dominante na vida moderna, passando a ser um estilo de vida de quem nasce dentro dessa engrenagem. WEBER demonstra, finalmente, que as origens religiosas se perderam, e que o capitalismo, vitorioso, já não precisa mais desse arrimo.