• Nenhum resultado encontrado

2. Controvérsias em torno das ações afirmativas

2.3 Controvérsias de ordem jurídica

O cerne das controvérsias jurídicas em torno de políticas de ação afirmativa consiste em perquirir se existe ofensa à dispositivos constitucionais quando o Estado

92

Idem, ibidem, p. 233.

93

Cf. PETERS, Anne. Woman, quotas and constitutions. London: Kluwer Law International, 1999, p. 24 Apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 133.

94

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. O Direito como instrumento de transformação social. A Experiência dos EUA. Op. cit., p. 234

impõe a determinados atores sociais a obrigação de viabilizar o acesso preferencial de categorias sub-representadas ao mercado de trabalho e em instituições de ensino.

A primeira das controvérsias jurídicas reside no caráter neutro que deve revestir as normas constitucionais e infraconstitucionais asseguradoras do princípio da igualdade. Nesse sentido, não há espaço para utilização de critérios como sexo e a raça dos indivíduos no que se refere aos procedimentos de admissão em emprego ou acesso ao ensino. Não se admite a máxima de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais95.

Os argumentos contrários a essa posição partem do pressuposto de que o princípio constitucional da igualdade não se exaure na dicção meramente formal.

“Assim, a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias”96.

Autores que compartilham do entendimento acima sustentam sua posição com base no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e, principalmente, nos incisos do art. 3º, que definem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Desta forma, se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamento discriminatório e o repúdio à criação e manutenção de privilégios (igualdade formal), o princípio se revelaria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República, constitucionalmente selecionados e indicados97.

A segunda controvérsia está alicerçada no contencioso da noção de direitos coletivos segundo a qual o Estado, por meio das ações afirmativas, transformaria o

95

idem, ibidem, p. 236.

96

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Op. cit., p. 286.

97

direito pessoal à igualdade de oportunidades de emprego em um direito público coletivo.

“Argüem a suposta fragilidade constitucional das ações afirmativas, dizendo que elas operam na presunção falsa de que o grupo social teria legitimação para postular direitos, quando, em realidade, somente o indivíduo a tem. Para os conservadores, os membros de uma grupo social não podem ser acusados de causar dano a quem quer que seja, apenas os indivíduos de per se. Para eles, não existem direitos coletivos, somente direitos do indivíduo. Nessas condições, seria inaceitável o vasto contencioso que há mais de 30 anos tem curso no Judiciário federal americano, que configuraria um comportamento indevido das Cortes de Justiça”98.

O Texto de 1988 afasta qualquer dúvida quanto à tutela dos direitos coletivos e difusos. Na opinião de Flavia Piovesan, basta comparar a denominação atribuída ao Capítulo I do Título II da Constituição de 1988 – Dos direitos e deveres individuais e coletivos, com a Constituição anterior, que consagrava tão-somente direitos e garantias individuais99.

Também é controvertida a alegação do direito à diferença como tese justificadora de uma discriminação lícita. O Prof Marcelo Campos Galuppo aduz o seguinte:

“Exatamente porque o termo identidade e igualdade não são sinônimos, a discriminação não é necessariamente atentatória da igualdade. Discriminar significa diferenciar, e diferença é termo que se liga, como antônimo, à identidade (e não à igualdade). A discriminação é compatível com a igualdade se não for, ela também, fator de desigualdade injustificável racionalmente. E, mais que isso, a discriminação pode ser legitimamente entendida como um critério de produção de igualdade toda vez que ela implicar maior inclusão dos cidadãos nos procedimentos públicos de justificação e aplicação das normas jurídicas e de gozo dos bens e políticas públicas”100.

A esse entendimento, o também Prof. Rosemiro Pereira Leal faz uma severa crítica aos defensores das ações afirmativas:

“Esses realistas privilegiados que auscultam uma esfera pública na qual se origina o poder comunicativo como superior ao próprio direito positivo, ainda que este seja democrático, imaginam uma sociedade que

98

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. O Direito como instrumento

de transformação social. A Experiência dos EUA. Op. cit., p. 237.

99

A responsabilidade do estado na consolidação da cidadania. Op. cit., p. 35.

100

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de

não é construída pela comunidade jurídica, mas um aglomerado social que deva, à sua escolha, resgatar minorias e diferentes, embora nestes os salvacionistas não incluam os milhões de esfomeados e despossúidos, ocupando-se civilística e garbosamente do cigano, do índio, do negro, do homossexual, do deficiente, como se a discriminação sofrida por tais indivíduos não já violasse o texto constitucional democrático, cuja restauração exige propositura urgente de procedimentos judiciais executivos (não ações afirmativas) como dever do Ministério Público para conferir a todos a fruição de direitos fundamentais adrede acertados pelo legislador constituinte e a exigirem pronta execução (art. 5º., §1º., CR/88)”.

{...}

“O direito à diferença não equivale a ser desigual no Estado de Direito Democrático que sempre assegura pelo devido processo constitucional a isonomia argumentativo-procedimental na defesa e reconhecimento de direitos, mas corresponde a uma dado singular da personalidade ou patrimonialidade da cada qual dos indivíduos, cujas defesa e afirmação, quando negadas, também se fazem isonomicamente no espaço-tempo da estrutura procedimental processualizada e não pela segurança discriminadora de uma jurisdição sábia, filantrópica e providencial”101. Outra controvérsia diz respeito à destinação dos recursos públicos que são canalizados para o incremento do bem-estar coletivo. Nos países que adotaram as ações afirmativas, como os Estados Unidos, partiu-se do pressuposto que determinadas minorias sub-representadas e, portanto, desigualadas socialmente, necessitavam de políticas preferenciais no acesso ao mercado de trabalho e ao ensino. Os socialmente desigualados estariam, por extensão, desigualados juridicamente, reduzindo a eficácia jurídica do preceito constitucional102.

A imposição das ações afirmativas foi direcionada para as empresas que recebiam recursos públicos do governo americano. A imposição baseia-se no princípio da não-discriminação, isto é, não seria aceitável que o Estado financiasse, com recursos públicos, situações discriminatórias. A cláusula de dispêndio (Spending Clause) da Constituição americana autoriza o governo daquele país, sob o controle do Legislativo, a envolver entidades públicas e privadas na luta antidiscriminação. Dessa

101

Isonomia processual e igualdade fundamental a propósito das retóricas ações afirmativas. Revista do Tribunal de

Contas do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: v. 47, nº. 2, abr./jun. 2003, p. 140-142.

102

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.

forma, o Estado canaliza os recursos públicos para assegurar o acesso de determinados segmentos em instituições de ensino e no mercado de trabalho103.

“O que é questionável é o compartilhamento do custo desse “luxo” com toda a coletividade: por meio dos tributos de que essas escolas são isentas, das subvenções diversas que lhes são passadas pelos Governos das três esferas políticas, pelo abatimento das respectivas despesas no montante devido a título de imposto de renda! ... O ensino superior de qualidade no Brasil está quase inteiramente nas mãos do Estado. E o que faz o Estado nesse domínio? Institui um mecanismo de seleção que vai justamente propiciar a exclusividade do acesso, sobretudo aos cursos de maior prestígio e aptos a assegurar um bom futuro profissional, àqueles que se beneficiaram do processo de exclusão acima mencionado, isto é, os financeiramente bem aquinhoados”104.

3. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição