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CAPÍTULO V – A PROBLEMÁTICA CONSTITUCIONAL DAS AÇÕES

6. A jurisprudência brasileira

6.1 O contencioso das universidades estaduais

O Estado do Rio de Janeiro foi pioneiro na criação do sistema de cotas destinado a regular o acesso, via concurso vestibular, dos estudantes de ensino médio aos cursos oferecidos pelas universidades públicas estaduais. O conjunto normativo era composto inicialmente por três leis estaduais: 3.524, de 28.12.00; 3.708, de 09.11.01; e 4.061, de 02.01.03.

A lei estadual 3.524/00 estabeleceu o seguinte mecanismo: Art. 1º. ...

Art. 2º. As vagas oferecidas para acesso a todos os cursos de graduação das universidades públicas estaduais serão preenchidas observados os seguintes critérios:

I – 50% (cinqüenta por cento), no mínimo, por curso e turno, por estudantes que preencham cumulativamente os seguintes requisitos: a) tenham cursado integralmente os ensino fundamental e médio em instituições da rede pública dos Municípios e/ou do Estado;

b) tenham sido selecionados em conformidade com o estabelecido no art. 1º. desta lei.

332

Cf. MENEZES, Paulo Lucena de. Op. cit., p. 153.

333

GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. Op. cit., p. 144-145.

II – 50% (cinqüenta por cento) por estudantes selecionados em processo definido pelas universidades segundo a legislação vigente.

Em seguida foi editada a Lei 3.708/2001, que estabeleceu o sistema mínimo de cotas para os vestibulandos que se auto-declararemm negros ou pardos:

Art. 1º. Fica estabelecida a cota mínima de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF.

Parágrafo único. Nesta cota mínima incluídos também os negros e pardos beneficiados pela Lei nº. 3.524/2000.

O sistema de reserva de vagas contemplou os portadores de deficiência física por meio da Lei estadual nº. 4.061/2003:

Art. 1º. As Universidades Públicas Estaduais deverão reservar 10% (dez por cento) das vagas oferecidas em todos os seus cursos para alunos portadores de deficiência.

Parágrafo único. As vagas oferecidas nesta Lei serão tomadas dentre aquelas ofertadas aos alunos egressos da rede pública de ensino do Estado ou dos municípios, conforme dispõe a Lei nº. 3.524/2000.

A experiência gerou muitas controvérsias no que se refere à eficácia do benefício para alunos carentes. Ademais, questões relativas ao uso do fator racial, mérito, proporcionalidade e igualdade, foram utilizadas como argumento para a propositura de mais de 200 mandados de segurança, com pedido de liminar. A constitucionalidade das leis foi questionada tanto na justiça estadual quanto no Supremo Tribunal Federal. Também foi proposta uma ação civil pública em benefício de todos os alunos prejudicados pelo sistema de cotas. As controvérsias em torno do sistema levou a Assembléia Legislativa a formar uma comissão para rever o modelo de acesso adotado para as universidades estaduais do Rio de Janeiro334.

O sistema de cotas foi aplicado pela UERJ no vestibular de 2002. Oitocentos e quarenta negros ou pardos entraram sem utilizar a cota e as vagas reservadas para alunos de escolas públicas viabilizaram a entrada de setecentos e noventa e sete alunos negros ou pardos. Para completar o percentual das cotas foi necessário selecionar mais 331 candidatos negros ou pardos. Inconformada com a imposição do sistema de cotas

334

e, considerando que as leis representavam uma imposição que feria sua autonomia, a UERJ solicitou à Assembléia Legislativa que mudasse a lei para 20% de negros, 20% de escola pública e 5% para deficientes físicos e outras minorias335.

Não obstante, a Lei 3.524/2000 foi impugnada perante o Tribunal de Justiça daquele Estado (TJ/RJ) em face de alegada contrariedade a dispositivos da Constituição estadual do Rio de Janeiro, por meio da Representação por Inconstitucionalidade nº. 20/2003. O Tribunal concedeu Medida Cautelar suspendendo a eficácia da referida lei por ofensa ao art. 9º. §1º. (princípio da igualdade) da Constituição estadual e art. 5º. caput, e 208, V, da Constituição Federal336.

Concomitantemente, foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2858-8) pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN perante o Supremo Tribunal Federal, visando à declaração da inconstitucionalidade das três leis supracitadas, por ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade e os artigos 5º. caput, 22, XXIV, 206, I e 208, V, todos da Constituição Federal337.

O Parecer nº. 18.836/GB-2003, da lavra do Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, consolidou a tese da inconstitucionalidade formal das leis impugnadas, tendo em vista a aparente ofensa à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, contida no art. 22, inciso XXIV, da Constituição da República. Segundo o parecer, também restou configurada violação da autonomia universitária, garantida no art. 207 da Constituição Federal, nos termos da lei de diretrizes e bases da educação nacional338.

Para Guilherme Peña de Moraes, o Parecer da Procuradoria-Geral da República não levou em consideração a competência concorrente dos Estados para legislar sobre as ações afirmativas, especialmente no que se refere ao combate às causas da pobreza e aos fatores de marginalização, que se fundamenta nos arts. 23, X, e 24, IX, ambos da Constituição de 1988. Para ele, as leis eram formalmente válidas339.

335

FRY, Peter. Op. cit., p. 325.

336

Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2858-8/STF, p. 4 (disponível em http//:www.stf.gov.br – acesso em 18.01.06).

337

idem, ibidem, p. 39.

338

Disponível em http//:www.pgr.mpf.gov.br (acesso em 18.01.06).

339

A ADI 2858-8 perdeu o objeto em razão da revogação das Leis 3.524/2000, 3.708/2001 e 4.061/2003 pelo art. 7º. da Lei estadual 4.151, de 05 de setembro de 2003. O Ministro Carlos Velloso (Relator) aduziu que, “revogada a lei argüida de inconstitucionalidade, é de se reconhecer, sempre, a perda de objeto da ação direta; revelando-se indiferente, para esse efeito, a constatação, ainda casuística, de efeitos residuais concretos gerados pelo ato normativo”340.

O sistema de cotas da UERJ voltou a ser apreciado pelo STF, novamente sem julgamento do mérito, no Agravo de Instrumento 547555 (que inadmitiu Recurso Extraordinário), tendo como Relator o Ministro Sepúlveda Pertence:

{...}

“Ocorre que a impetrante obteve o 356º. lugar na classificação do concurso, de forma que, caso não houvesse reserva de vagas, ainda haveria ao menos 310 candidatos melhor classificados que a impetrante que teriam direito a ingressar no curso de medicina antes dela.

Assim, não há questão constitucional a ser dirimida na espécie, mas apenas premissas de fato apresentadas no acórdão recorrido, cujo reexame é inviável por meio do recurso extraordinário”341.

O Poder Judiciário do Rio de Janeiro, no exame do vasto contencioso em torno do sistema de cotas para acesso às universidades estaduais, tem sido cuidadoso em assegurar vaga somente aos candidatos que teriam sido aprovados se as cotas não existissem, prestigiando a condição meritória individual, como se pode perceber da transcrição dos julgados do TJ/RJ:

“Duplo grau obrigatório de jurisdição. Reserva de cotas para negros e pardos. Concessão da segurança para a impetrante que obteve o grau necessário para a aprovação no curso de engenharia de produção na UERJ. Em que pese a louvável iniciativa do Poder Público, o sistema de reserva de cotas, tal qual foi concebido pela Lei Estadual nº. 3.708/2001 ofende a Constituição da República tanto pela ótica formal como material, já que infringe a autonomia universitária, assegurada pelo art. 207, bem como viola o art. 208, V, da Carta Magna e o princípio da igualdade, insculpido no art. 5º. A igualdade, como direito fundamental, pode sofrer limitação, desde que atenda a critérios de razoabilidade, que não se verificam na prefalada lei estadual. A instituição de programas deste teor é um poderoso instrumento de combate à desigualdade,

340

Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática final – ADI 2858-7 (disponível em http//:www.stf.gov.br – acesso em 18.01.06).

341

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 547555 (DJ 22.06.2005, p. 103) disponível em http//:www.stf.gov.br – acesso em 02.12.05).

desde que compatível com a Constituição. Manutenção da sentença por seus próprios fundamentos”342.

Na fundamentação doutrinária, os Desembargadores consideraram que tais políticas estavam fundamentadas nas teorias de justiça distributiva ou compensatória. Todavia, a reserva de 40% das vagas aos afro-descendentes era desproporcional e os critérios de identificação simplesmente pela cor poderiam dar ensejo a declarações inverídicas no momento da inscrição343.

“Apelação. Administrativo. Mandado de segurança visando à matrícula no curso de medicina da UERJ. Classificação obtida fora do número total de vagas oferecidas, ainda que afastado o sistema de cotas instituído pelas Leis nº 3524/00 e 3708/01. O fato de outros candidatos com nota inferior terem obtido a classificação por se autodeclararem pardos ou negros não autoriza a que todos os que tiraram nota superior à do último candidato que ingressou em razão das cotas pleiteiem o ingresso, mas somente aqueles que efetivamente estivessem dentro do número de vagas oferecidas não fosse a reserva instituída por aqueles diplomas. Inexistência de violação ao princípio da isonomia, primeiro porque a interpretação que lhe deu a recorrente no recurso consiste em inovação recursal, que se sabe descabida, e segundo, porque o fato de outras pessoas autodeclaradas negras e pardas terem sido matriculadas não lhe dá direito à vaga, no máximo a autorizando a pleitear em face dos legitimados a ação competente para obstar-lhes a matrícula. Desprovimento do recurso”344.