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As ações afirmativas perante a constituição federal: a questão do fator racial

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(1)

UNIVERSIDADE

CATÓLICA DE

BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

STRICTO SENSU EM DIREITO

INTERNACIONAL ECONÔMICO

Mestrado

AS AÇÕES AFIRMATIVAS PERANTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

A QUESTÃO DO FATOR RACIAL

Autor: Paulo Antonio de Souza

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo L. J. Marton

(2)

PAULO ANTONIO DE SOUZA

AS AÇÕES AFIRMATIVAS PERANTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

A QUESTÃO DO FATOR RACIAL

Dissertação apresentada ao programa de

pós-graduação

Stricto Sensu

em Direito

Internacional Econômico da Universidade

Católica de Brasília, como requisito para

obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo L. J. Marton

BRASÍLIA

(3)

TERMO DE APROVAÇÃO

Dissertação de autoria de PAULO ANTONIO DE SOUZA, intitulada AÇÕES AFIRMATIVAS PERANTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL: A QUESTÃO DO FATOR RACIAL, requisito parcial para obtenção do grau de Mestre do Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, defendida e aprovada em 31 de março de 2006

pela banca examinadora constituída por:

Prof. Dr. Ronaldo L. J. Marton Orientador

Prof. Dr. Cristiano Paixão Examinador Externo (UnB)

Prof. Dr. Arnaldo Godoy Examinador Interno

(4)

“Dois meninos nasceram na mesma noite, de 27 de setembro de 1871, nessa fazenda cujo

regime se pretende conservar: um é senhor do outro. Hoje eles têm, cada um, perto de doze

anos. O senhor está sendo objeto de uma educação esmerada; o escravo está crescendo na

senzala. Quem haverá tão descrente do Brasil a ponto de supor que em 1903, quando ambos

tiverem trinta e dois anos, esses dois homens estarão um para o outro na mesma relação de

senhor e escravo? Quem negará que essas duas crianças, uma educada para grandes coisas,

outra embrutecida para o cativeiro, representam duas correntes sociais que já não correm

paralelas – e se corressem, uma terceira, a dos nascidos depois daquela noite servir-lhes-ia de

canal, - mas se encaminham para um ponto dado em nossa história na qual devem

forçosamente confundir-se? Pois bem, o abolicionismo o que pretende é que essas duas

correntes não se movam uma para outra mecanicamente, por causa de declive que encontram;

mas espontaneamente, em virtude de uma afinidade nacional consciente. Queremos que se

ilumine e se esclareça toda aquela parte do espírito do senhor, que está na sombra: o

sentimento de que esse, que ele chama escravo, é um ente tão livre como ele pelo direito do

nosso século; e que se levante todo o caráter, edificado abaixo do nível da dignidade humana,

do que chama o outro senhor, e se lhe insufle a alma do cidadão que ele há de ser; isto é, que

um e outro sejam arrancados a essa fatalidade brasileira – a escravidão – que moralmente

arruína a ambos”1.

Joaquim Nabuco

1

(5)

RESUMO

Este trabalho analisa a possibilidade e a necessidade de introdução no ordenamento

jurídico brasileiro de ações afirmativas instituídas com base no fator racial. O autor faz

uma análise acerca da possibilidade do Estado levar em consideração aspectos que

antecedem a entrada dos indivíduos no mercado competitivo visando corrigir

desigualdades entre a população negra (pretos e pardos) e uma dada parcela da

sociedade na qual estão inseridos. A abordagem do tema levou em consideração

aspectos do modelo abolicionista adotado no País e os principais desdobramentos do

regime pós-escravidão como fatores preponderantes do quadro de desigualdade

existente entre negros e brancos. As ações afirmativas em favor da população negra

são avaliadas sob a perspectiva da igualdade material orientada pelo critério

socioeconômico e pelo ideal de justiça. Em sua elaboração o autor analisa a

compatibilidade do fator racial erigido como critério para o tratamento normativo

diferenciado com os princípios e valores albergados pela Constituição de 1988.

(6)

ABSTRACT

The purpose of this work is to analyze the possibility and need of introducing affirmative

actions based on race in the Brazilian legal system. The author makes an analysis of the

possibility of the State to take into consideration previous aspects to the individuals’

entrance into the competitive market, in order to correct inequalities between black

population (black and brown skin) and a parcel of society in which they belong. The

study of the issue took into account, as preponderant features to the existing inequality

between black and white people, the abolitionist model used by Brazil and the main

effects of a post-slavery regimen. Affirmative actions in favor of the black population are

examined under the perspective of material equality directed toward a socioeconomic

criterion and an ideal of justice. In his elaboration, the author analyses the compatibility

of the racial factor chosen as criterion to a discriminated normative treatment as well as

with the principles and values implemented by the 1988 Constitution.

(7)

Lista de Siglas e Abreviaturas

ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade

Cf. Conforme

CF/88 Constituição Federal de 1988

CLT Consolidação das Leis do Trabalho

CNPIR Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial

CONFENEN Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino

DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Sócio-Econômicos

EEOC Equal Employment Opportunity Commission

EUA Estados Unidos da América

FIES Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

JFPR Justiça Federal do Estado do Paraná

MBE Minority Business Enterprises

nº Número

OFCC Office of Federal Contract Compliance

(8)

Op. cit. Obra citada

p. Página

PNAD Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio

PNDH Plano Nacional de Direitos Humanos

PNPIR Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PROUNI Programa Universidade para Todos

SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

STF Supremo Tribunal Federal

TJ/RJ Tribunal do Estado do Rio de Janeiro

TST TribunalSuperior do Trabalho

UENF Universidade Estadual do Norte Fluminense

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFES Universidade Federal do Espírito Santo

UNIFEM Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher

(9)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

PRIMEIRA PARTE

A DIMENSÃO PRINCIPIOLÓGICA

DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

CAPÍTULO I – O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS 1. Considerações iniciais ... 19

2. Conteúdo jurídico da igualdade ... 20

3. Noção de igualdade ... 21

4. Igualdade formal e igualdade material ... 25

5. Igualdade perante a lei e igualdade na lei ... 28

6. O sentido do preceito constitucional da igualdade ... 30

7. Ação afirmativa: conceito, objetivos e modalidades... 32

8. O princípio da igualdade e ação afirmativa no Direito Constitucional ... 35

9. As ações afirmativas na Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional... 36

10. Ações afirmativas no direito comparado ... 39

10.1 Estados Unidos... 39

10.2 África do Sul... 40

10.3 Canadá... 41

(10)

CAPÍTULO II – AÇÕES AFIRMATIVAS E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1. Considerações iniciais ... 44

2. Controvérsias em torno das ações afirmativas ... 46

2.1 Controvérsias de natureza operacional ... 46

2.2 Controvérsias de ordem filosófica ... 47

2.3 Controvérsias de ordem jurídica... 49

3. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 ... 53

4. Os direitos fundamentais como exigência e concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana ... 55

5. Dignidade, igualdade e proporcionalidade ... 57

CAPÍTULO III – AÇÕES AFIRMATIVAS E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 1. Considerações iniciais ... 59

2. Princípio da proporcionalidade na Constituição de 1988 ... 59

3. Princípio da proporcionalidade e ponderação de interesses ... 60

4. Tipologia da Discriminação ... 63

4.1 Discriminação racial e discriminação de gênero ... 64

4.2 Discriminação intencional ... 65

4.3 Discriminação legítima ... 67

4.4 Discriminação na aplicação do Direito ... 68

4.5 Discriminação de fato ... 69

4.6 Discriminação manifesta ou presumida ... 69

5. Teoria do Impacto Desproporcional ... 70

6. Discriminação e proporcionalidade ... 72

(11)

SEGUNDA PARTE

A DIMENSÃO FACTUAL E JURÍDICA DAS

AÇÕES AFIRMATIVAS

CAPÍTULO IV – INDICADORES DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL: POBREZA E DISCRIMINAÇÃO

1. Considerações iniciais ... 76

2. As vertentes e sentidos da democracia racial ... 77

3. Considerações sobre o conceito de raça ... 80

4. Desigualdade social e desigualdade racial ... 83

5. População e composição racial ... 84

6. Composição da pobreza: parâmetros da exclusão racial ... 87

7. Discriminação racial no Brasil ... 88

8. As ações afirmativas em favor dos negros no Brasil ... 91

9. A questão da fixação de cotas rígidas ... 96

CAPÍTULO V – A PROBLEMÁTICA CONSTITUCIONAL DAS AÇÕES AFIRMATIVAS COM BASE NO CRITÉRIO RACIAL 1. Considerações iniciais ... 99

2. Critérios para identificação de ofensa ao princípio da igualdade ... 103

3. Desequiparações proibidas e desequiparações permitidas... 104

4. A Doutrina Separate But Equal... 106

5. A jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos... 108

5.1 Os casos Griggs v. Duke Power Company (1971) e DeFunis v. Odegard (1974) ... 109

5.2 O caso Regents of the University of Califórnia v. Bakke ... 111

5.3 O caso Fullilove v. Klutznick... 114

5.4 O caso Adarand Constructors Inc. v Pena ... ... 115

6. A jurisprudência brasileira ... 117

6.1 O contencioso das universidades estaduais do Rio de Janeiro ... ... 118

(12)

TERCEIRA PARTE

DIMENSÃO HERMENÊUTICA

DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

CAPÍTULO VI – LIMITES E POSSIBILIDADES DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

1. Considerações iniciais ... 127

2. Ativismo Judicial e papel do Poder Judiciário: ações afirmativas instituídas por decisão judicial ... 128

3. Doutrina da Ação Governamental e Ações afirmativas instituídas pelo Poder Público... 131

4. Ações afirmativas instituídas por lei ... 138

5. Ações afirmativas instituídas pela iniciativa privada ... 139

6. Critérios e limites das ações afirmativas ... 141

CAPÍTULO VII - A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO 1. Considerações iniciais ... 143

2. Interpretação da Constituição ... 144

2.1 Métodos tradicionais de interpretação constitucional ... 145

2.2 A moderna interpretação da Constituição ... 146

2.3 Os Métodos de Interpretação da Nova Hermenêutica ... 148

3. A importância dos princípios ... 149

3.1 Ponderação de interesses, bens, valores e normas ... 152

4. Igualdade e tratamento diferenciado ... 154

5. Igualdade, discriminação e inconstitucionalidade ... 156

CONCLUSÃO ... 158

(13)

INTRODUÇÃO

Alguns estudiosos poderiam discordar que o tratamento diferenciado dado

pelo Direito aos homens e às mulheres quanto ao número de dias de afastamento

remunerado do trabalho em caso de licença maternidade/paternidade significa afronta

ao princípio da igualdade. Outros exemplos poderiam ser citados (na área da

tributação) que implicam tratamento desigual mas que têm por finalidade exatamente

assegurar a igualdade objetivada pela norma constitucional. O tratamento diferenciado

entre as pessoas é também uma maneira de garantir a igualdade entre elas.

A busca por mecanismos que acelerem a inclusão de negros (pretos e

pardos)2 no mercado de trabalho e no ensino superior no Brasil culminou no debate em

torno dos princípios jurídico-constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da

dignidade da pessoa humana. Em torno dessa discussão gravitam outros princípios

jurídicos não menos importantes, todos abrigados pela Constituição Federal de 1988,

como o da separação de poderes, do mérito, da autonomia universitária e da liberdade

de iniciativa.

O tema relativo às ações afirmativas suscita um intenso debate em torno de

questões de diferentes campos do conhecimento humano. O estudo específico acerca

dos fundamentos constitucionais e legais de políticas públicas de ação afirmativa, a

aplicabilidade de propostas e mecanismos em um país com as características do Brasil

e as inevitáveis comparações entre as propostas brasileiras e as de outros países estão

no centro do debate que este trabalho procurou abarcar.

2

(14)

Além de questões eminentemente jurídicas, surgem no centro dessa

discussão aspectos da maior relevância para outras áreas do saber científico, em

especial, para a Sociologia, a Estatística, a Educação, a Antropologia, a Psicologia, a

Filosofia e a Política. Assim, poderíamos destacar temas como raça, racismo,

discriminação, preconceito, xenofobia, intolerância, cidadania, políticas públicas de

inclusão social e redução das desigualdades sociais e econômicas, capitalismo,

socialismo, classe social, mérito, cotas, reserva de vagas, escravidão, desemprego,

acesso ao ensino, etc. São aspectos que o Direito e seus intérpretes, pesquisadores,

operadores, magistrados, doutrinadores, não podem deixar de levar em consideração

na apreciação do instituto das ações afirmativas.

No campo do Direito, os principais ramos imbricados nesse debate são o

Direito Constitucional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Sociologia

Jurídica, o Direito Constitucional Comparado e o Direito Penal.

Relativamente ao tema central deste trabalho, é importante salientar que a

Constituição Federal de 1988 elege, já em seu Preâmbulo, um “Estado Democrático

destinado a assegurar a igualdade e como valor supremo uma Sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. No art. 5º estabelece que

“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (grifo meu).

Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 contempla dispositivos em

seu texto de correspondência direta com o tema das ações afirmativas. Assim, o art. 37,

inciso VIII, dispõe que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para

as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

Numa perspectiva habermasiana, “a coexistência com igualdade de direitos

de diferentes comunidades étnicas, grupos lingüísticos, confissões religiosas e formas

de vida, não pode ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade {...} numa miríade

de subculturas que se enclausuram mutuamente”3.

3

(15)

As ações afirmativas ingressam no cenário jurídico como um terceiro estágio

da noção de igualdade. Após a abolição dos privilégios e a criminalização do ato

discriminatório intencional, as ações afirmativas corresponderiam, na lição de Flávia

Piovesan, a uma vertente da igualdade material orientada pelo critério socioeconômico

e pelo ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos

critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios)4:

“Nesse cenário, por exemplo a população afro-descendente, as mulheres, as crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge também, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial”5.

Na lição de Canotilho, as ações afirmativas situam-se no plano da “função de

não discriminação dos direitos fundamentais”. E é com base nessa função que se

discute o “problema das quotas” e a defesa de alguns grupos minoritários pela

efetivação plena da igualdade de direitos numa “sociedade multicultural e

hiperinclusiva”6.

O ponto de partida da discussão em torno da possibilidade jurídica e

sobretudo da necessidade das ações afirmativas em favor dos negros no Brasil deve

retomar o debate em torno do modelo abolicionista adotado pelo Estado e seus

desdobramentos no cenário atual.

{...} “A transição da sociedade escravocrata brasileira para o período pós-escravagismo arregimentou um conjunto de políticas ativas e omissivas, diretas e indiretas claramente identificáveis que garantiu a continuidade da substância sob uma outra forma: de uma sociedade estamental baseada na objetificação e propriedade de membros de estamento escravo para um regime de criação regulada de uma classe social subalterna, subeducada e subempregada a cujo pertencimento foi avassaladoramente determinada pela cor”7.

Ahyas Siss lembra que durante a vigência do regime escravocrata no Brasil

poucos defenderam instrução escolarizada para os negros e seus descendentes e as

4

PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, nº 124, jan./abr. 2005, p. 46, v. 35.

5

Idem, ibidem

6

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª. ed. Coimbr: Almedina, p. 409-410.

7

(16)

propostas nesse sentido de abolicionistas como Luiz Gama, Nabuco e Rebouças

sequer foram discutidas. Na Província do Rio de Janeiro foi sancionada a Lei nº 1, de 4

de janeiro de 1837 que, no seu artigo 3º, estabelecia o seguinte8:

Art. 3º. São proibidos de freqüentar as escolas públicas:

1º Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas.

2º Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos.

Este trabalho analisa a possibilidade jurídica de introdução, no ordenamento

jurídico brasileiro, de um instituto largamente utilizado em outros países, especialmente

nos Estados Unidos, sob a denominação de ação afirmativa (affirmative action), com

base no fator racial, e sua compatibilidade com os valores e princípios albergados pela

Constituição Federal de 1988.

O problema que discuto está relacionado à necessidade e possibilidade

constitucional de implementação de ações afirmativas em favor dos negros (pretos e

pardos) no Brasil, por meio de um tratamento jurídico diferenciado, com o objetivo de

corrigir desigualdades entre esse grupo e uma dada parcela da sociedade na qual

estão inseridos, desigualdades estas oriundas de práticas discriminatórias. Assim,

foram formuladas três perguntas:

• É possível favorecer um determinado grupo social (negros) valendo-se de

um fator (raça), em tese, vedado pela Constituição Federal de 1988?

• As ações afirmativas com base no fator racial correspondem a uma

discriminação inconstitucional ou estão inseridas na máxima do

tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, no estrito limite e na

medida de suas desigualdades?

• Referidas medidas representam ofensa ao princípio jurídico da igualdade

ou seriam a consagração deste, em uma concepção não meramente

formal, mas material de tal princípio?

8

(17)

A hipótese, que pretendo demonstrar ao longo do trabalho, é que o fator

racial erigido como critério para estabelecer o tratamento diferenciado é compatível com

os princípios e valores prestigiados pela Constituição Federal de 1988.

A metodologia do trabalho consistiu na análise da doutrina nacional e

internacional sobre o tema e do repositório de jurisprudência americana e brasileira. A

ênfase bibliográfica não se restringiu aos temas jurídicos e, sempre que possível,

buscou posicionamentos de outras áreas do saber científico envolvidas diretamente na

discussão do tema. É necessário esclarecer que não se trata de um estudo de Direito

Constitucional Comparado, embora em algumas passagens tenha sido inevitável trazer

à colação aspectos da legislação, jurisprudência e visões doutrinárias do ordenamento

jurídico de outros países, especialmente o americano.

A pesquisa foi estruturada em três partes. A primeira trata da dimensão

principiológica das ações afirmativas, isto é, a análise da correlação entre os princípios

jurídicos da igualdade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana com o

instituto das ações afirmativas. A segunda cuida da dimensão factual e jurídica das

ações afirmativas e consiste na análise da discriminação racial e da problemática

constitucional das ações afirmativas com base no fator racial. A terceira e última parte

trata da dimensão hermenêutica, com ênfase nos limites e possibilidades das ações

(18)

PRIMEIRA PARTE

(19)

CAPÍTULO I

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AS AÇÕES AFIRMATIVAS

1. Considerações iniciais

“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberem inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.

Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria.

Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho”9.

O objetivo deste capítulo consiste em analisar o conteúdo jurídico do princípio

da igualdade, o binômio igualdade formal e igualdade material e o sentido do preceito

constitucional da igualdade, com especial vinculação ao instituto da ação afirmativa

como mecanismo de efetivo combate à discriminação odiosa e de realização da

igualdade material. Este trabalho não tem por objeto perquirir ou esclarecer a

perspectiva filosófica relativa à questão da igualdade, embora reconheça a importância

de uma visão mais profunda para compreensão do tema da igualdade. Todavia, em

9

(20)

alguns momentos serão retratados alguns posicionamentos que, ao longo da história,

contribuíram para o debate e compreensão do tema.

Não seria necessário recorrer a nenhum estudo ou pesquisa para

aquiescermos sobre a perversa situação das desigualdades que atingem a realidade

sócio-econômica no Brasil. Os efeitos perversos da globalização econômica denotam a

necessidade de busca de soluções para superar as crises e resistir às suas

conseqüências. Qualquer alternativa que busque a superação das desigualdades

existentes, seja qual for a sua natureza, passa pelo fortalecimento do Estado perante os

interesses privados e pela integração igualitária da população na sociedade. E o

pressuposto de qualquer projeto passa necessariamente pela análise da Constituição

de 1988, que é a Lei Fundamental do País.

A Constituição enfatiza que todos são iguais perante a lei ao mesmo tempo

em que assegura a inviolabilidade dos direitos e garantias individuais. Ademais, o Texto

Constitucional agasalhou o princípio do repúdio ao racismo, mas não deixou de prever

a instituição de políticas públicas com tratamento diferenciado para determinados

grupos que sofram forte padrão discriminatório, como é o caso dos índios, portadores

de deficiência, mulheres, idosos e negros.

A análise do princípio constitucional da igualdade e sua pertinência com a

necessidade de adoção das ações afirmativas constitui tarefa das mais árduas, em face

das múltiplas implicações do tema em diversas disciplinas do universo jurídico. Além da

incidência direta nos institutos de direito constitucional, não se pode olvidar que a

adoção das ações afirmativas requer estudo de direito constitucional comparado e de

direito internacional.

A tutela específica da igualdade racial e a repulsa à discriminação odiosa

irradiam-se sobre dispositivos do direito penal, do direito civil e na concepção

contemporânea de proteção dos direitos humanos.

(21)

As revoluções do século XVIII foram fundamentais na jurisdicização da

igualdade.

“Convém lembrar, com efeito, que antes delas – no Ancien Regime – não era uno o estatuto jurídico dos indivíduos. Na França – que se pode tomar por referência – diferenciavam-se três “estados”, segundo a condição jurídica de que gozavam os indivíduos. Os que estavam submetidos ao direito comum compunham o terceiro estado – o povo. Privilégios de variada ordem favoreciam os componentes do segundo estado – a nobreza. Outros privilégios caracterizavam o primeiro estado – o clero. Este clero, portanto, e a nobreza eram classes privilegiadas relativamente ao povo”10.

O princípio da igualdade perante a lei, ou seja, a isonomia, “constitui o signo

fundamental da democracia”11, “a garantia da concretização da liberdade12. A

sociedade de privilégios que caracterizava o Ancien Regime passa a valorizar as

aptidões intelectuais e o mérito de cada um na distribuição dos bens e vantagens. O

sentido da isonomia implicava em dois comandos, um para o legislador, proibindo-o de

editar leis que estabelecessem privilégios e outro para o aplicador da lei, cuja missão

interpretativa também não poderia criar privilégios de espécie alguma na análise de

casos concretos.

A noção de igualdade remonta ao Mundo Antigo. Antes de ingressar nos

documentos constitucionais como construção jurídico-formal, a noção de igualdade

perpassa diversos regimes, adquirindo ao longo do tempo diversos matizes. Após as

Revoluções do século XVIII, o princípio da igualdade perante a lei, de natureza

meramente abstrata, vai ganhando novos contornos da doutrina e da jurisprudência,

adquirindo um caráter substancial, encetando novas alternativas de uma igualdade

efetivamente inclusiva e servindo de pilar para a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária.

3. Noção de igualdade

10

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 110.

11

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.206.

12

(22)

O problema da igualdade e das desigualdades inerentes ao ser humano

atormenta os pensadores desde a antiguidade, com larga trajetória no pensamento

mediterrâneo.

Desde a Grécia antiga este tema tem despertado grande interesse por parte dos filósofos, surgindo, assim, diversos entendimentos sobre ele. Por exemplo, para Hípias, que era sofista, todos os homens nasciam iguais, e a desigualdade e a escravidão eram decorrentes da legislação. Os sofistas visavam abolir a escravidão e combatiam a distinção existente entre gregos e bárbaros13.

Platão e Aristóteles, embora defendessem a escravidão, discordavam em

pontos fundamentais da análise da igualdade. Platão defendia que a igualdade

dependeria do mérito individual, sendo asseguradas a todos os cidadãos as mesmas

oportunidades. Aristóteles, por sua vez, entendia que não seria possível que duas

pessoas pudessem ser exatamente iguais14.

“Aristóteles vinculou a idéia de igualdade à idéia de justiça, mas, nele, trata-se de igualdade de justiça relativa que dá a cada um o seu, uma igualdade impensável sem a desigualdade complementar que é satisfeita se o legislador tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais. Cuida-se de uma justiça e de uma igualdade formais, tanto que não seria injusto tratar diferentemente o escravo e seu proprietário; sê-lo ia, porém, se os escravos, ou seus senhores, entre si, fossem tratados desigualmente. No fundo, prevalece, nesse critério de igualdade, uma injustiça real. Essa verificação impôs a evolução do conceito de igualdade e de justiça, a fim de se ajustarem às concepções formais e reais ou materiais”15

De qualquer forma, a contribuição de Aristóteles foi fundamental para a

concepção contemporânea do princípio jurídico da igualdade. A interpretação em sede

constitucional tem como ponto de partida o tratamento igual aos iguais e desigual aos

desiguais16.

“Coube, entretanto a Licurgo a primazia de uma proposta efetiva no sentido de fazer-se a igualdade um princípio jurídico, uma formulação social e até mesmo um projeto econômico a prevalecer em Esparta. Esta primeira tentativa, todavia, de realizar uma igualdade legal efetiva

13

VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: América Jurídica, p. 3-4

14

Ibidem, p. 4.

15

SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 208.

16

(23)

redundou no amortecimento do ideal de liberdade como bem juridicamente protegido”17.

A experiência romana foi marcante acerca da igualdade e está contida na Lei

das XII Tábuas, pela qual se consagra a igualdade entre patrícios e plebeus, o Edito

Perpétuo que estende a igualdade às populações de outras etnias e o Edito de

Caracala ou Constituto Antoniana, “que concede o direito de cidadania a todos os

habitantes do império”18.

O período medieval é marcado pelas reflexões de Santo Tomás de Aquino e

Santo Agostinho. Para Santo Tomás de Aquino a desigualdade era um desígnio de

Deus19. Não há ordem sem desigualdades, porque os iguais em sentido e direção não

se compensam, e, por isso mesmo, não se harmonizam20. Santo Agostinho

fundamentou sua obra no pensamento platônico e sustentava que a escravidão oriunda

do descumprimento da legislação deveria ser mantida21.

O Estado Moderno finca seus pilares jurídicos nos ideais de liberdade e

igualdade. A noção de igualdade insculpida nos documentos constitucionais que

seguiram às Revoluções do século XVIII tinha caráter formal, abstrato e negativo, não

admitindo qualquer intervenção estatal para coibir eventuais desigualdades. Mesmo

antes da Revolução Francesa, como acentua Fábio Konder Comparato, o tema das

desigualdades decorrentes da abstração isonômica já era objeto de preocupação e

análise. O autor cita que Robespierre declarou na sessão de 10 de maio de 1793 da

Convenção, onde se discutia o projeto de Constituição, que “de nada vale que a lei

preste uma homenagem hipócrita à igualdade dos direitos, se a mais imperiosa de

todas as leis, a da necessidade, força a parte mais sadia e mais numerosa do povo a

renunciar a ela”. O referido autor traz à colação a crítica de Marx, em “A Questão

Judaica”, de que o princípio da igualdade, tal como definido na mesma Constituição

17

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990, p. 30

18

Idem, ibidem.

19

VILLAS-BÔAS, Renata Malta, Op. cit., p. 7.

20

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes, Op. cit., p. 30.

21

(24)

francesa de 1795, significa que “todo homem é considerado, de modo idêntico, como

uma mônada ensimesmada”22.

A crítica marxista deve ser entendida a partir do antagonismo entre

burguesia e proletariado, cujos interesses estavam em oposição constante. Somente a

abolição da sociedade em classes poderia ser capaz de impedir a exploração do

homem pelo homem. A supressão da propriedade privada e o acesso aos bens do

patrimônio nacional contrastavam com o ideal de liberdade preconizado pela revolução

burguesa23.

Fábio Konder Comparato reconhece em Rousseau o mérito pela formulação

do princípio da igualdade perante a lei. Reconhece também que o pensador francês

analisou a questão das desigualdades bem antes da eclosão do movimento

revolucionário francês.

“Rousseau enfatizou que é unicamente sobre a mediocridade (no sentido da igualdade mediana de condições de vida) que se exerce toda a força das leis; elas são igualmente impotentes contra os tesouros dos ricos e contra a miséria do pobre: o primeiro as elude, o segundo delas escapa; um rompe a teia e o outro passa através. Sob os maus governos, essa igualdade (de direitos) é puramente aparente e ilusória; ela só serve para manter o pobre em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na verdade, as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm; de onde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens na medida em que todos eles possuem alguma coisa e em que nenhum deles tem algo em demasia”24.

Rousseau também analisou os critérios pertinentes à discriminação de

situações por meio de leis:

“Assim, a lei pode perfeitamente estatuir que haverá privilégios, mas ela não pode atribuí-los nomeadamente a ninguém; a lei pode criar várias Classes de Cidadãos, determinar mesmo as qualidades que darão direito a essas Classes, mas ela não pode nomear este ou aquele para ser nelas admitido; ela pode estabelecer um Governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real: em uma

22

COMPARATO, Fábio Konder. Igualdade, desigualdades. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993, p.69, v. 1.

23

FARIA, Anacleto de Oliveira. Isonomia. Enciclopédia Saraiva. São Paulo, p. 279.

24

(25)

palavra, toda função atinente a um objeto individual não diz respeito ao poder legislativo”25.

Como princípio jurídico-constitucional, a idéia de igualdade foi inicialmente

concebida com o fim precípuo de abolir privilégios baseados na renda e posição

social26. Assim, as Revoluções do século XVIII constituíram-se em grandes marcos da

constitucionalização da igualdade, segundo a qual a lei deve ser igual para todos sem

distinções de qualquer espécie. Nesse sentido é a lição de Fábio Konder Comparato:

“A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 abre-se com a afirmação de que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. “Em direitos”, note-se bem, não em fortuna ou prestígio social. Aboliam-se, pois, de um só golpe, todas as ordens jurídicas estamentais, a começar pelas que se fundavam no privilégio de nascimento”27..

A noção de igualdade perante a lei serviu de pilar da concretização da

liberdade e do postulado da neutralidade estatal28.

A questão que se põe para melhor compreensão deste trabalho diz respeito

à delimitação do significado do princípio da igualdade, cujos contornos devem permitir a

análise da problemática da discriminação positiva por meio da utilização do critério

racial.

Nesse sentido, a lição de Ferreira Filho, quando afirma que “tratar igualmente

desiguais, ou desigualmente iguais, importaria em injustiça e em violação da própria

igualdade29. A lição é pertinente quando se vislumbra que as ações afirmativas,

essencialmente, desigualam, para igualar, mas para igualizar no tocante a

oportunidades, e no sentido de pôr fim às desigualdades30.

4. Igualdade formal e igualdade material.

25

ROUSSEAU. Jean-Jacques. O Contrato social. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 48.

26

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 110.

27

COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 73.

28

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Op. cit., p. 3.

29

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 111.

30

(26)

A doutrina reconhece o desdobramento do princípio da igualdade em duas

perspectivas: fala-se em princípio da igualdade formal (igualdade perante a lei) e

princípio da igualdade material concernente ao propósito da redução das

desigualdades.

O reconhecimento da igualdade como princípio jurídico foi engendrado pelas

revoluções do século XVIII, assegurando a todos os indivíduos a igualdade perante a

lei, sem qualquer distinção ou privilégio. O primeiro documento a formalizar a idéia

jurídica de igualdade foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 178931.

Na visão de José Afonso da Silva, o art. 1º da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, de 1789, e depois amplamente acolhido pelos textos

constitucionais modernos, firmara a igualdade jurídico-formal no plano político, de

caráter puramente negativo32.

“A igualdade deixou definitivamente seu aspecto geométrico, que distinguia os homens em castas, impondo privilégios em razão do nascimento e se estabeleceu na forma aritmética. A partir de então todos seriam igualmente tratados pela lei”33

A principal conseqüência que deriva dessa construção jurídico-formal

consiste na edição de leis de caráter genérico e abstrato e na aplicação neutra (no

plano da incidência) sobre situações concretas.

A doutrina tem sido pacífica ao admitir que o princípio da igualdade no plano

jurídico-formal foi responsável pela geração de desigualdades econômicas34. A

transposição de uma sociedade de privilégios para uma sociedade meritocrática, na

qual a distribuição das posições sociais deve ter como base exclusivamente as aptidões

intelectuais, a capacidade individual, foi considerada por muitos uma utopia liberal35.

“Contudo, a despeito dos ideais revolucionários do século XVIII, o fruto deste arquétipo constitucional ao longo do século XIX foi a consolidação

31

O art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 estabelece que “Os homens nascem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.

32

SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 209.

33

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença. As ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 9.

34

SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 209.

35

(27)

de um regime capitalista imperialista e uma exploração do homem pelo homem nunca antes vista na história da humanidade”36.

Na mesma linha, Joaquim B. Barbosa Gomes, citando o jurista português

Guilherme Machado Dray:

“{...} “a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida” 37.

A título de registro, a crítica marxista é pertinente para enriquecer o debate

sobre a questão da igualdade. Enquanto a burguesia defendia a igualdade formal de

direitos, a concepção marxista preconizava a abolição da divisão da sociedade em

classes. A idéia de igualdade estava contida no lema: “a cada um segundo sua

capacidade, e a todos segundo suas necessidades”. E para atingir o paraíso comunista,

como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho, não se lhe nega até o sacrifício da

liberdade38.

“Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa”39.

A doutrina aponta diversos fatores que têm inviabilizado a prática da

igualdade material. A pluralidade de interesses, diversidade de estruturas políticas e

sociais adotadas e a multiplicidade da estrutura psicológica, dentre outras diferenças

naturais e sociais do ser humano, muitas vezes, têm aumentado as desigualdades ao

invés de reduzi-las ou até neutralizá-las40

A Constituição Federal de 1988 consagra em seu art. 5º, caput, a igualdade

de todos perante a lei (isonomia formal). Todavia não se descuidou de prever em

36

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Op. cit., p. 10.

37

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Op. cit., p. 3.

38

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 274. Cf. FARIA, Anacleto de Oliveira. Op. cit., p. 279.

39

SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 206

40

(28)

diversos dispositivos indicativos do acolhimento do princípio da igualdade material, com

especial relevo para o art. 5º, XLI e XLII e 7º, XXX e XXXI.

“A Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, na medida em que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei; menciona também igualdade entre homens e mulheres e acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação”41.

A questão que tem atormentado os estudiosos da matéria diz respeito à

extensão em que as desigualdades podem ser apanhadas pelo tratamento

diferenciado, sem que isto constitua uma desigualação mais injusta e que caracterize

ofensa à Constituição.

Flávia Piovesan ressalta que “no processo de especificação do sujeito de

direito, cabe ao Estado instituir políticas públicas que introduzam um tratamento

diferenciado e especial aos grupos sociais que, por exemplo, sofram forte padrão

discriminatório”42.

A essas políticas públicas e sociais voltadas para a concretização da

igualdade material dá-se o nome de ação afirmativa, e representam uma certa ruptura

com o Estado Moderno, pois preconizam o fim da neutralidade estatal e autorizam o

Estado a atuar de forma ativa na busca da igualdade substancial, deixando de ser mero

espectador dos embates que se travam no campo da convivência humana43.

5. Igualdade perante a lei e igualdade na lei

Outra distinção que se faz do princípio da igualdade diz respeito ao conteúdo

das expressões igualdade perante a lei e igualdade na lei.

41

SILVA, José Afonso da. Op. cit., 210.

42

PIOVESAN, Flávia. A responsabilidade do estado na consolidação da cidadania. In: Constituição Federal 15 anos. Mutação e evolução. Coord. TAVARES, André Ramos, FERREIRA, Olavo V. & LENZA, Pedro. São Paulo, Método, p. 46.

43

(29)

A questão foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, no Mandado de

Injunção nº 58-1 DF, tendo por relator o Min. Celso de Mello44, o qual teceu as

seguintes considerações:

“O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é, enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica, suscetível de regulamentação ou de complementação.

Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo a lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório”.

Está claro que o comando se refere tanto ao legislador, cuja tarefa de

elaboração normativa deve pautar-se pela isonomia, isto é, afastando desde já regras

que estabeleçam privilégios de classe ou posição social, quanto ao intérprete e

aplicador que do mesmo modo deverá proceder na solução dos conflitos deduzidos em

juízo.

Contudo, a doutrina não é unânime na apreciação da matéria. José Afonso

da Silva45, por exemplo, questiona a necessidade e utilidade dessa distinção no sistema

brasileiro:

“Entre nós, essa distinção é desnecessária, porque a doutrina como a jurisprudência já firmaram, há muito, a orientação de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei”46.

44

ApudSILVA, Fernanda Duarte Lucas da. Op. cit., p. 44-45.

45

SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 210.

46

(30)

A doutrina pátria esclarece que o princípio não pode ser entendido em

sentido individualista. Os conceitos de igualdade e desigualdade não são absolutos,

não havendo proibições de modo absoluto sobre as diferenciações de tratamento. O

que se proíbe, esclarece Manoel Gonçalves Ferreira Filho47, são as distinções

arbitrárias, isto é, destituídas de fundamento objetivo.

6. O sentido do preceito constitucional da igualdade.

Revelar o sentido e o alcance do princípio constitucional da igualdade

(isonomia) requer um breve apanhado histórico. Durante um longo período, a noção de

igualdade, como princípio jurídico-constitucional, foi traduzida como um direito de

natureza abstrata.

A Constituição de 1824 versou sobre o tema da isonomia, especialmente

quanto ao acesso aos cargos públicos e aos encargos perante o Poder Público.

Todavia, cumpre ressaltar que a escravidão não era proibida e esse regime contrastava

com a idéia de igualdade insculpida no texto constitucional.

Como assinala Luís Roberto Barroso, apesar de asseverar que a lei seria

igual para todos, o preceito da isonomia da Carta do Império conviveu sem

constrangimento ou perplexidade com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o

regime escravocrata. “A abolição jurídica da exploração do trabalho escravo {...} apenas

confirmou a obsolescência econômica e financeira da instituição servil, ultrapassada

pelas novas relações capitalistas”{...}48.

A principais inovações introduzidas pela Constituição republicana de 1891,

ainda sob os impulsos da abolição da escravatura, foram no sentido da abolição dos

privilégios de nobreza e as ordens honoríficas existentes.

47

Curso de Direito Constitucional. Op. cit., p. 275.

48

(31)

A Constituição de 1934 modificou o dispositivo do texto anterior,

acrescentando que não haveria privilégios por motivo de nascimento, sexo, raça,

profissões, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.

A Carta de 1937 simplesmente estabeleceu em seu art. 122 que “todos são

iguais perante a lei”. Sob a égide dessa Carta, foram editadas leis importantes como

Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal de 1940.

A Constituição de 1946 limitou-se a repetir o conteúdo do texto anterior.

Durante sua vigência, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e

do Cidadão, em 1948, e, logo após, foi promulgada, em 1951, a primeira lei penal sobre

discriminação (Lei Afonso Arinos).

“Entretanto, cumpre anotar que a doutrina muito avançara quanto ao conteúdo deste princípio, atribuindo-lhe o sentido de obrigação a ser observada, estrita e incontornavelmente, pelo legislador, tanto quanto pelo administrador e pelo julgador. Com esta lição a doutrina inspirara uma maior extensão do princípio e instilara nos julgadores pátrios um conteúdo mais firme e afeito às necessidades sociais a ser joeirado do princípio”49.

A Carta outorgada em 1967 repetiu a expressão todos são iguais perante a

lei, acrescentando ao dispositivo as proibições de distinção preconceituosa,

notadamente as que se referissem a sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções

políticas. A emenda de 1969 manteve o texto do dispositivo anterior e determinou a

punição ao preconceito de raça.

A Constituição de 1988, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais,

consagrou o princípio constitucional da igualdade, no art. 5º, caput, ao estabelecer “que

todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” {...}.

Antes, porém, no Preâmbulo, o constituinte manifestara a preocupação de

“instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais

e individuais, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

49

(32)

O ponto de partida para discussão do sentido e alcance do preceito deve

responder a duas perguntas: quem são os iguais? Quem são os desiguais?

{...} “A igualdade, como disse Norberto Bobbio, é uma relação que se estabelece entre distintas pessoas, coisas ou situações; este jurista italiano salienta a dificuldade de se estabelecer um significado descritivo da igualdade em face de sua indeterminação, resultante do caráter relacional deste conceito”{...}50.

Cumpre esclarecer que a função precípua da lei é estabelecer distinções. O

direito pode estabelecer, por via de conseqüência, quando e em que circunstâncias

pode haver equiparações ou desequiparações.

“Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais” podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador”51.

Nesse contexto, as ações afirmativas reduziriam ou ampliariam a eficácia

jurídica da norma constitucional de igualdade? As ações afirmativas seriam um

mecanismo de discriminação reversa e injusta ou se compatibilizam com os dispositivos

da Constituição de 1988? Nos próximos itens será analisado o conteúdo, objetivos e

implicações jurídico-constitucionais desse mecanismo de inclusão social de categorias

hipossuficientes.

7. Ação afirmativa: conceito, objetivos e modalidades

Ação afirmativa (affirmative action) é uma expressão cunhada pelo direito

norte-americano e surgiu no contexto da luta pelos direitos civis na década de 60. O

Presidente John F. Kennedy utilizou o termo pela primeira vez em 1961 como sinônimo

50

Cf. RIOS, Roger Raupp. Op. cit., p. 25.

51

(33)

de medidas que tinham por objetivo ampliar a igualdade de oportunidades no mercado

de trabalho, sobretudo entre negros e brancos nos Estados Unidos52.

“Ação afirmativa, nos dias correntes, é um termo de amplo alcance que designa o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas. Colocando-se de outra forma, pode-se asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas”53.

É importante esclarecer que as ações afirmativas foram inicialmente

concebidas pelo governo norte-americano como uma forma de encorajamento, para

que as categorias sub-representadas em escolas ou empresas tivessem seu acesso

viabilizado ao ensino e ao mercado de trabalho. No final da década de 60 e início da

década de 70, diante da ineficácia de tal medida, houve uma alteração conceitual do

instituto e sua associação com a imposição de cotas rígidas e de atingimento de metas

(“goals”) para o ingresso de certas categorias no mercado de trabalho e nas escolas.54

A sinalização de uma política mais agressiva do governo norte-americano em

relação ao combate à discriminação ficou caracterizada no discurso do Presidente

Lyndon Johnson, na Howard University, em 1965:

“Você não pega uma pessoa que durante anos esteve acorrentada, e a liberta, e a coloca na linha de partida de uma corrida e diz, ‘Você está livre para competir com todos os outros’, e ainda acredita, legitimamente, que você foi totalmente justo. Assim, não é suficiente apenas abrir os portões da oportunidade, todos os nossos cidadãos devem ter a capacidade de atravessar esses portões”55.

Os principais objetivos das ações afirmativas são56:

52

MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 27.

53

Idem, ibidem.

54

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40.

55

MENEZES, Paulo Lucena de, Op. cit., p. 91.

56

GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro.

(34)

1. Induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas

a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de

uma raça em relação à outra.

2. Reconhecimento oficial da persistência e da perenidade das práticas

discriminatórias e da necessidade de sua eliminação.

3. Coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os efeitos

persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do

passado, que tendem a se perpetuar.

4. Implantar uma certa diversidade e uma maior representatividade dos

grupos minoritários nos mais diversos domínios da atividade pública e

privada.

5. Eliminar as barreiras artificiais e invisíveis que emperram o avanço de

negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política

oficial tendente a subalternizá-los.

6. Proscrever idéias tendentes a legitimar a existência de cidadania de

primeira classe e de segunda classe, aproximando, assim, a sociedade do

ideal de eqüidade.

7. Incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos

minoritários, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de

inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento

individual, vítimas das sutilezas de um sistema jurídico, político, econômico e

social concebido para mantê-los em situação de excluídos.

8. Criar as chamadas personalidades emblemáticas (role models), que

serviriam de exemplo às gerações mais jovens, que veriam em suas

carreiras e realizações pessoais a sinalização de que não haveria, chegada a

sua vez, obstáculos intransponíveis à realização de seus sonhos e à

(35)

As principais modalidades de ações afirmativas são as seguintes57:

1. Adoção de diretrizes inclusivas que produzam o efeito de melhorar as

perspectivas dos integrantes de grupos especificados.

2. Implantação de programas de assistência social, destinados a divulgar

oportunidades de emprego aos integrantes de grupos específicos, bem como

atrair candidatos qualificados que integrem tais grupos.

3. Tratamento preferencial no emprego e em outras áreas, mediante o qual

são conferidos aos integrantes de grupos específicos benefícios denegados

aos integrantes de outros grupos.

4. Redefinição do princípio do mérito, do que resulta tal condição de

integrante do grupo tornar-se uma qualificação na mudança de emprego, em

vez de constituir uma exceção.

5. Fixação de metas e cotas rígidas no acesso ao emprego e ao ensino.

É importante destacar que no Brasil, erroneamente, as ações afirmativas

estiveram sempre associadas ao sistema de cotas. Nos Estados Unidos, por exemplo,

as cotas rígidas praticamente não são mais utilizadas, a não ser por determinação

judicial, quando se reconhece que o acusado se torna hostil e renitente em acatar as

medidas de inclusão de determinados segmentos e não há outra solução disponível

para corrigir a discriminação58.

8. O princípio da igualdade e ação afirmativa no Direito Constitucional.

A constitucionalidade de determinadas modalidades de ação afirmativa gira

em torno da discussão acerca da obrigação imposta pelo Estado a determinados atores

sociais, consistente na viabilização do acesso de categorias sub-representadas,

especialmente no mercado de trabalho e em instituições de ensino superior.

57

MENEZES, Paulo Lucena de. Op. cit., p. 31

58

(36)

Nos países que adotaram as ações afirmativas, como os Estados Unidos,

cujo preconceito racial está culturalmente arraigado, partiu-se do pressuposto de que

determinadas minorias sub-representadas e, portanto, desigualadas socialmente,

necessitavam de políticas preferenciais no acesso ao mercado de trabalho e ao ensino.

Os socialmente desigualados estariam, por extensão, desigualados juridicamente,

reduzindo a eficácia jurídica do preceito constitucional59.

A imposição das ações afirmativas foi direcionada para as empresas que

recebiam recursos públicos do governo americano. A imposição baseia-se no princípio

da não-discriminação, isto é, não seria aceitável que o Estado financiasse, com

recursos públicos, situações discriminatórias. A cláusula de dispêndio (Spending

Clause) da Constituição americana autoriza o governo daquele país, sob o controle do

Legislativo, a envolver entidades públicas e privadas na luta antidiscriminação. Dessa

forma, o Estado canaliza os recursos públicos para assegurar o acesso de

determinados segmentos em instituições de ensino e no mercado de trabalho60.

Por outro lado, as empresas e instituições de ensino alegam que as ações

afirmativas provocam indevida intrusão governamental na gestão e no exercício das

profissões, conduzindo, por via de conseqüência, ao desrespeito aos princípios da

liberdade acadêmica e da livre iniciativa61.

A questão principal que se põe diz respeito à autorização constitucional para

que o Estado viabilize, por meio do princípio constitucional da igualdade, a igualdade

material, levando em consideração aspectos anteriores à entrada dos indivíduos no

mercado competitivo.

9. As ações afirmativas na Constituição Federal de 1988 e na legislação

infraconstitucional.

59

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 33, nº 131, jul/set 1996, p. 285.

60

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 54.

61

(37)

A extensão do princípio constitucional da igualdade já foi discutida e cumpre

registrar que a Constituição de 1988 abriga a igualdade em suas duas vertentes:

material e formal. Mesmo antes da positivação do art. 5º, caput, que trata do princípio

constitucional da igualdade, no Preâmbulo e no art. 3º, a Constituição de 1988 já

ressalta a busca por uma sociedade justa, pluralista e sem preconceitos.

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade justa, livre e solidária;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

“Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo”62.

É importante trazer outros dispositivos que consubstanciam a igualdade

material e repudiam o preconceito e a prática do racismo. O art. 1º, III, positivou a busca

da dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. O

art. 5º, XLI e XLII, determina que a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos

direitos fundamentais, e torna o crime de racismo inafiançável e imprescritível.

O Art. 7º, XX, determina proteção ao mercado de trabalho da mulher,

mediante incentivos específicos. O art. 37, VIII, determina que a lei reservará percentual

dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

O art. 23, X, que determina que Estado atue ativamente no combate as

causas da pobreza e aos fatores de marginalização, promovendo a integração social

dos setores desfavorecidos.

O art. 170, IX, estabelece como um dos princípios da ordem econômica o

tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis

brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.

O art. 227, II, que determina a criação de programas especiais de integração

social dos adolescentes e dos portadores de deficiência.

62

(38)

“O princípio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição da República)”63.

O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que trata da

emissão de títulos para imissão de posse aos remanescentes das comunidades dos

quilombos. Este dispositivo constitui uma reparação histórica aos descendentes

africanos que residem nessas localidades.

O Brasil também é signatário da Convenção Internacional Sobre a

Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. O referido diploma estabelece

que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o

único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou

de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar

a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades

fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à

manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após

terem sido alcançados os seus objetivos”64.

A legislação infraconstitucional também contempla diversos dispositivos que

tratam da ampliação objetiva das prestações públicas e privadas para a consecução da

igualdade material.

O Decreto-lei nº 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois

terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas. No art.

373-A, estabelece a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções

responsáveis pela desigualação de direitos entre homens e mulheres.

A Lei 8.112/90, que prescreve, no art. 5º, §2º, cotas de até 20% para os

portadores de deficiências no serviço público civil da União.

A Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de

deficiência no setor privado.

63

Idem, ibidem

64

(39)

A Lei 8.666/93, que estabelece, no art. 24, XX, a inexigibilidade de licitação

para contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência.

A Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, §2º, cotas para mulheres nas

candidaturas partidárias.

A Lei 10.639/2003, que dispõe sobre a inclusão no currículo oficial da Rede

de Ensino da temática História e Cultura Afro-Brasileira.

A Lei 11.096, de 13 de Janeiro de 2005, institui o Programa Universidade

para todos – PROUNI, no seu artigo 7º, II, estabelece que o percentual de bolsas de

estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino

superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.

10. Ações afirmativas no direito comparado65

10.1 Estados Unidos

Os Estados Unidos são o berço e a fonte mais densa de conteúdo para o

estudo comparado das ações afirmativas no plano jurídico-constitucional. No processo

de transição da escravidão, segregação racial e adoção das ações afirmativas, a

sociedade americana vivencia, por meio de suas instituições, avanços e retrocessos no

que se refere à luta em prol da instituição de programas em favor das minorias.

Ademais, o modelo americano se transformou no paradigma dos ordenamentos

jurídicos de outros países em matéria de ação afirmativa66.

“Com efeito, não é ocioso relembrar que o sistema constitucional que primeiramente abrigou as ações afirmativas é o mesmo fundado há

65

Para um estudo das ações afirmativas, em perspectiva internacional, especialmente na Índia, Malásia, Sri Lanka, Nigéria e Estados Unidos, ver SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo. Trad. BRÍZIDA, Joubert de Oliveira. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2004, 236p.

66

Referências

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