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Doutrina da Ação Governamental e Ações afirmativas

CAPÍTULO V – A PROBLEMÁTICA CONSTITUCIONAL DAS AÇÕES

3. Doutrina da Ação Governamental e Ações afirmativas

Não deixa de ser menos relevante o papel do Poder Executivo na concepção e implementação de políticas de ação afirmativa. Na experiência americana, esse papel foi decisivo em face da resistência oposta por segmentos sociais mais conservadores. A título de exemplo, o Decreto Executivo nº. 11.246/65, emanado do Presidente Lindon Johnson, condicionou a celebração de contratos administrativos com a União à admissão de percentuais razoáveis de minorias367.

Posteriormente, o Presidente Richard Nixon determinou a elaboração de um projeto para tornar efetivas as previsões vertentes do Título VII do Civil Right Act de 1964, capaz de resistir aos inevitáveis questionamentos judiciais. Essa medida foi consubstanciada por intermédio da Office of Federal Contract Compliance (OFCC) Revised Order nº 4, segundo a qual os contratantes com o governo federal deveriam, anualmente, desenvolver programas de ação afirmativa, na modalidade de metas visando identificar e corrigir deficiências existentes em relação às mulheres e a grupos

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Decisão publicada no Diário da Justiça, Seção I, nº. 33, 18.02.05, p. 3.

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GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. O Direito como instrumento

de transformação social. A Experiência dos EUA. Op. cit., p. 58.

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Cf. JACOULD, Luciana de Barros & BEGHIN, Nathalie. Op. cit., p. 63.

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minoritários (negros, índios e hispânicos etc). Tais metas não deveriam, contudo, ser confundidas com cotas rígidas e inflexíveis, mas alvos razoavelmente atingíveis368.

“A postura do Executivo americano fundou-se na chamada “Spending Clause”, pela qual o dispêndio de recursos públicos deve ser aprovado pelo Parlamento como incentivo (sanção premial) para condutas inclusivas. Ora, se o Estatuto dos Direitos Civis é uma lei e, como tal, manifestação de vontade do Parlamento, certamente o condicionamento da contratação de serviços com a iniciativa privada ao cumprimento de medidas afirmativas foi entendido como uma ação legítima do Executivo”369.

A questão que se põe diz respeito aos limites da atuação do Estado no processo econômico e social e na intervenção seletiva em prol de determinados grupos. A resposta a esta questão traz em si, implícita, a noção de que em certas esferas do comportamento humano o indivíduo seria inteiramente livre para discriminar, eis que em tais zonas a intervenção estatal seria vedada, como, por exemplo, na liberdade de associação.

“Por razões históricas e em conseqüência da inegável predominância de valores individualistas e privatistas no Direito norte-americano, o combate à discriminação racial deu-se prevalentemente naquele país na esfera pública. Desse “individualisme à outrance” decorre o entendimento consensual entre os americanos de que ao Governo não é dado interferir na esfera íntima das pessoas, sob o pretexto de coibir atos discriminatórios. Em conseqüência dessa visão do problema, desde o fim da Guerra Civil o combate pela integração dos negros e pelo fim da discriminação racial sempre se circunscreveu ao campo das atividades públicas ou de interesse público. Isto porque a 14ª. Emenda à Constituição, promulgada em 1868 com o fim expresso pôr cobro à marginalização social e jurídica dos negros, foi concebida como instrumento de contenção voltado contra os Estados-membros, isto é, contra entidades políticas. Disso resultou que a intervenção estatal visando ao fim da discriminação sempre foi considerada legítima nas atividades públicas propriamente ditas, nas atividades dependentes de regulamentação ou outorga estatal, naquelas em que haja dispêndio de recursos públicos, ainda que em montantes irrisórios ou de forma indireta, em suma, em todas aquelas hipóteses em que se faça presente o exercício de qualquer forma de autoridade estatal, seja ela a mais singela. Portanto, a presença do interesse público e/ou estatal na respectiva atividade sempre foi a linha demarcatória da ação coercitiva do Estado no sentido de compelir o particular a ceder aos imperativos governamentais de integração, diversidade e não discriminação. O fato,

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MENEZES, Paulo Lucena de. Op. cit., p. 92 e 93.

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porém, é que esse entendimento restritivo da ação inibidora do Estado resultou no encorajamento à discriminação de caráter privado”370. Coube à Suprema Corte o papel de quebrar a rigidez da dicotomia entre a esfera pública e privada em matéria de discriminação. O ponto culminante dessa ação mitigadora da doutrina da state action deu-se no caso Reiman v. Mulkey. Em síntese, o caso versava sobre leis proibitivas de discriminação racial em matéria de venda de propriedade e aluguel residencial, editadas pelo Estado da Califórnia em 1959 e em 1963. Por meio de referendo a população daquele Estado aprovou uma proposição que não só anulava a legislação antidiscriminatória como também proibiu o Estado de interferir no livre exercício, pelas pessoas, do seu direito de propriedade. A Suprema Corte anulou o referendo entendendo que havia uma violação ao princípio constitucional da igual proteção das leis. A partir de então, o Poder Judiciário americano passou a validar inúmeros empreendimentos de índole a priori privada, publicizando-os em razão da “presença do mais singelo indício de exercício da autoridade estatal”371.

“Vale dizer, o empecilho ao combate a todas as formas de discriminação materializado na chamada doutrina da ‘ação governamental’ tem sido contornado graças a soluções criativas emanadas não apenas do Judiciário mas também do Congresso, que ao longo do tempo vem paulatinamente outorgando aos órgãos competentes os poderes necessários ao combate à discriminação praticada na esfera privada. Dentre os diversos instrumentos de atuação nessa área destaca-se a utilização pelo Congresso da chamada Cláusula de Comércio, do seu poder de regulamentar e implementar os dispositivos da Constituição (Enforcement Power) e do poder de tributar e de dispor sobre o dispêndio de recursos públicos (Taxing and Spending Power)”372.

No Brasil, as ações afirmativas implementadas pelo Poder Executivo têm sido respaldadas no art. 3º., incisos I, III e IV, da Constituição da República; de emanações contidas em documentos internacionais dos quais o País é signatário; e de planos e programas elaborados e direcionados para a redução das desigualdades sociais e raciais. Estas ações são mais visíveis no nível federal, especialmente após os trabalhos de preparação para a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, na África do Sul. Com base em diagnósticos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, o Governo Federal

370

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. O Direito como instrumento

de transformação social. A Experiência dos EUA. Op. cit., p. 81-82.

371

Idem, ibidem, p. 86-87

372

reconhece oficialmente as magnitudes das desigualdades raciais entre brancos e negros no Brasil373.

“Em 2002, é lançado o II Plano Nacional de Direitos Humanos (II PNDH). As metas do II PNDH ampliam as fixadas em 1996 no tocante à valorização da população negra, consagrando o termo “afrodescendente”, oriundo da Declaração e Plano de Ação de Durban. Ademais, o II PNDH inova ao propor uma série de medidas que visam equilibrar e melhorar os indicadores econômicos e sociais dos grupos raciais menos favorecidos. As ações propostas dizem respeito sobretudo às áreas de justiça, educação, trabalho e cultura. Há também no II PNDH o reconhecimento dos males causados pela escravidão e pelo tráfico transatlântico de escravos, que constituem crime contra a humanidade e cujos efeitos, presentes até hoje, devem ser combatidos por meio de medidas compensatórias”374.

Se partirmos do conceito amplo de ações afirmativas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter facultativo ou compulsório, concebidas para o combate à discriminação do passado e seus efeitos no presente, ao Poder Judiciário caberia o papel de controlá-las sob o enfoque da constitucionalidade, legalidade e legitimidade, sob pena de violação de princípio da independência e harmonia dos poderes (art. 2º. CF/88). Por esse argumento seria defeso ao Poder Judiciário a formulação de políticas públicas de ação afirmativa no Brasil.

Os primeiros programas de ação afirmativa do Governo Federal foram instituídos, em sua maioria, com base no poder discricionário de contratação de funcionários para cargos de confiança no Poder Executivo ou na prerrogativa de contratação de serviços terceirizados com cláusula impositiva de cotas para afrodescendentes. O Programa Nacional de Ações Afirmativas só veio a ser instituído pelo Governo Federal em 13 de maio de 2002, por ocasião da comemoração da abolição. O Decreto Federal 4.228/2002 contemplou, dentre outras medidas, a participação de mulheres, portadores de deficiência e afrodescendentes no preenchimento de cargos em comissão, a inclusão de cláusula de adesão ao Programa nas transferências de recursos federais, a observância de critério adicional de pontuação em licitações públicas para empresas que comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do programa e o estabelecimento de metas de

373

Cf. JACOULD, Luciana de Barros & BEGHIN, Nathalie. Op. cit., p. 21-22.

374

participação dessas categorias em empresas contratadas pela Administração Pública para executar serviços terceirizados (art. 2º., I a IV).

Em 23 de maio de 2003 é promulgada a Lei nº. 10.678375, criando a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial-SEPPIR, para assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial, a formulação, coordenação e avaliação das políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra, afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância.

Compete ainda à SEPPIR a articulação, promoção e acompanhamento da execução dos programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados à implementação da promoção da igualdade racial; a formulação, coordenação e acompanhamento das políticas transversais de governo para a promoção da igualdade racial; o planejamento, coordenação da execução e avaliação do Programa Nacional de Ações Afirmativas e na promoção do acompanhamento da implementação de legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem ao cumprimento dos acordos, convenções e outros instrumentos congêneres assinados pelo Brasil, nos aspectos relativos à promoção da igualdade e de combate à discriminação racial ou étnica, tendo como estrutura básica o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPIR.

Por meio do Decreto nº. 4.886, de 20 de novembro de 2003, foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial - PNPIR, contendo as propostas de ações governamentais para a promoção da igualdade racial. O objetivo geral dessa Política é a redução das desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra, mediante a realização de ações exeqüíveis a curto, médio e longo prazo, com reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das áreas de atuação prioritária.

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A PNPIR376 está sendo implementada com base nos seguintes princípios:

1) transversalidade: pressupõe o combate às desigualdades raciais e a

promoção da igualdade racial como premissas e pressupostos a serem considerados no conjunto das políticas de governo. As ações empreendidas têm a função de sustentar a formulação, a execução e o monitoramento da política de promoção de igualdade racial, de modo que as áreas de interesse imediato, agindo sempre em parceria, sejam permeadas com o intuito de eliminar as desvantagens de base existentes entre os grupos raciais.

2) descentralização: articulação entre a União, Estados, Distrito Federal e

Municípios para o combate da marginalização e promoção da integração social dos setores desfavorecidos. Apoio político, técnico e logístico para que experiências de promoção da igualdade racial, empreendidas por Municípios, Estados ou organizações da sociedade civil, possam obter resultados exitosos, visando ao planejamento, execução, avaliação e capacitação dos agentes da esfera estadual ou municipal para gerir as políticas de promoção de igualdade racial.

3) gestão democrática: propiciar que as instituições da sociedade assumam

papel ativo, de protagonista na formulação, implementação e monitoramento da política de promoção de igualdade racial. Estimular as organizações da sociedade civil na ampliação da consciência popular sobre a importância das ações afirmativas, de modo a criar sólida base de apoio social. Participação do CNPIR, composto por representantes governamentais e da sociedade civil, na definição das prioridades e rumos da política de promoção de igualdade racial, bem como potencializar os esforços de transparência.

Em nenhum dispositivo o Governo Federal fixou cotas rígidas para acesso ao emprego ou cargos públicos. Nos termos do referido decreto as ações afirmativas são concebidas como forma de eliminação de qualquer fonte de discriminação e desigualdade racial direta ou indireta, mediante a geração de oportunidades.

“Em 2004, o governo federal tomou importantes medidas para aumentar o número de negros no ensino superior. O Conselho Federal de educação aprovou os parâmetros para o ensino sobre relações raciais

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nas escolas377. Foi introduzido, sem muita publicidade, o crédito escolar, dando aos candidatos negros uma chance 20% maior de consegui-lo que os candidatos brancos (neste caso o governo solicita que os pretendentes apresentem uma certidão de nascimento de um ou outro progenitor na qual conste a cor negra ou parda). O governo federal também apresentou um projeto de lei (3627-2004) que institui um “Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior”. Seriam reservadas “cinqüenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”, e essas vagas seriam “preenchidas por uma proporção de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. Esse projeto obedece à mesma lógica do primeiro vestibular de cotas no Rio de Janeiro, subsumindo as categorias ‘egresso de escola pública’ e ‘negros’ à categoria ‘pobreza’”378.

Na análise criteriosa de Peter Fry, tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas “é um exemplo contundente de como o Estado propõe exacerbar a racialização da sociedade em vez de debelá-la”. Em vez de combater a crença em raças e diminuir a sua preeminência na vida social, fazem o oposto. Para ele, medidas dessa magnitude instiga as escolas a “imaginar o Brasil não como um país de mistura genética e cultural, mas como uma sociedade composta de “raças” e “grupos étnicos” estanques, cada qual com a sua ‘cultura’”379.

O Programa Universidade para Todos (PROUNI) também segue a lógica da combinação de critérios (carência, origem e raça). As bolsas em escolas particulares são destinadas primeiramente a “pobres” (renda inferior a três salários mínimos), egressos de escolas públicas ou particulares, professores da rede pública ou portadores de necessidades especiais. Essas categorias serão subdivididas em índios, pretos e pardos, na proporção do último censo do IBGE em cada Estado380.

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Em 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a Lei 10.639 tornando obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. A disciplina inclui o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (publicada no DOU de 10 de janeiro de 2003 – disponível em www.planalto.gov.br)

378

FRY, Peter. Op. cit., p. 330.

379

Op. cit., p. 345-346.

380

FRY, Peter. Op. cit., p. 330-331. A Lei 11.096, de 13 de Janeiro de 2005, institui o Programa Universidade para todos – PROUNI, no seu artigo 7º, II, estabelece que o percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.