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Convenção sobre Diversidade Biológica

2. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS RELATIVAS À PROPRIEDADE

2.5. Pós-TRIPs: da suposta governança global à instabilidade normativa

2.5.3. Diálogos transversais

2.5.3.2. Convenção sobre Diversidade Biológica

A CDB modifica o ponto de partida das discussões comerciais sobre a biodiversidade. Ao reconhecer a soberania dos Estados sobre os recursos genéticos de seus territórios, determina que lhes compete regulamentar o acesso a tais recursos e a eventual imposição de transferência de tecnologia. Simultaneamente, prescreve a conservação da diversidade biológica mediante sua utilização sustentável e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização tanto dos recursos genéticos quanto dos conhecimentos tradicionais a eles associados.253

Há vários potenciais pontos de contato entre o Acordo TRIPS e a CDB. As principais previsões desta Convenção incidentes sobre direitos de propriedade intelectual relacionam- se com o acesso ao material genético, o reconhecimento dos conhecimentos de comunidades tradicionais sobre esse material genético, a repartição equitativa de benefícios e a obrigação de que as tecnologias sejam transferidas ao país de origem do material genético e dos conhecimentos tradicionais utilizados em seu desenvolvimento.254

251 Há, porém, notícias alvissareiras a respeito de uma efetivação concreta da importação paralela de medicamentos após o licenciamento compulsório: a CE adotou, em 17.05.2006, a “Regulation (EC) No. 816/2006 of the European Parliament and of the Council of 17 May 2006 on compulsory licensing of patents relating to the manufacture of pharmaceutical products for export to countries with public health problems” (disponível em <http://ec.europa.eu/trade/issues/global/medecine/index_en.htm> acesso em 25.02.2009), que permite exportações para atender à demanda de países em desenvolvimento.

252 Cf. trabalhos do Intergovernmental Working Group on Public Health, Innovation and Intellectual Property, disponível em <http://www.who.int/phi/en/> acesso em 20.03.2009. O Medical Research and Development Treaty, ainda em negociação na OMS, conterá previsões sobre alternativas ao sistema de patentes. Sobre a questão, cf. Pogge (2008), Love e Hubbard (2007), KEI (2008) e Sanjuan (2007).

253 A CDB, porém, não estabelece com clareza como o respeito aos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades indígenas devem ser implementadas e compatibilizadas com as previsões sobre direitos de propriedade intelectual (Arup, 2000:245-247). “The international community has yet to reach a consensus on

how to protect indigenous materials, partly due to limited understanding of the issue and partly due to the complexities involved in defining and classifying the materials.” (Yu, 2004:388-389)

254 Cf. art. 15 da CDB (que impõe que o acesso à biodiversidade seja autorizado, com consentimento prévio e informado), art. 8j (que prescreve a proteção dos conhecimentos tradicionais), art. 16 (que trata de transferência de tecnologia) e art. 19.2 (que impõe a repartição equitativa de benefícios derivados da exploração comercial dos recursos genéticos).

Essas disposições acarretam três demandas sobre os titulares e requerentes de patentes: a revelação da fonte dos recursos genéticos impregnados nas tecnologias que se pretende patentear, a proteção aos conhecimentos tradicionais e o atendimento de diretrizes severas de transferência de tecnologia (Dhar, 2003:85-87). Nas discussões do Conselho do TRIPs, várias posições foram defendidas a respeito da compatibilidade do Acordo TRIPs com a CDB, abrangendo desde o entendimento de que há conflito total até a ausência de oposição ou mesmo a irrelevância deste debate.255

Para que os pleitos dos países em desenvolvimento sejam atendidos, porém, há um aparente consenso de que o Acordo TRIPs precisa ser reformado,256 ainda que não contradiga o que dispõe a CDB.257 Embora seja crescente o número de consumidores dispostos a pagar preço-prêmio por produtos reconhecidamente forjados a partir de conhecimentos tradicionais, o número de empresas dispostas a levar a cabo este reconhecimento e a decorrente repartição equitativa dos benefícios deste comércio é extremamente reduzido (Pretorius, 2002:186).

Nesse sentido, os países mais interessados no tema da exploração da diversidade biológica foram responsáveis por intervenções no âmbito da CDB, do Conselho do TRIPs e até da FAO, com vistas a esclarecer a relação das normas da OMC com as disposições da CDB. No campo da proteção às melhorias genéticas obtidas por agricultores, a FAO tem sido responsiva às demandas dos países em desenvolvimento, chegando a propor novos tratados (Lettington, 2003:65-71), o que manteve acesos os debates no Conselho de TRIPs sobre os conflitos entre a proteção preconizada para a agricultura tradicional e as patentes sobre processos e produtos biológicos (CIPR, 2002:69). Em 2001, a discussão adentrou oficialmente a pauta do Conselho do TRIPs, sendo conduzida e reiterada em múltiplos foros.

255 Cf. “The Relationship between the TRIPS Agreement and the Convention on Biological Diversity: Summary of issues raised and points made – Note by the Secretariat”, WT/IP/C/W/368/Rev.1 (08.02.2006). 256 Para incorporar a obrigação de consentimento prévio e informado, seria preciso alterar o art. 29 do Acordo TRIPs sobre patentes; o regime sui generis de proteção a conhecimentos tradicionais depende de modificação do art. 27.3.b do TRIPs; a harmonização do Acordo TRIPs com as previsões sobre transferência de tecnologia da CDB requer mudanças em seu art. 31.

257 Cf. “Consultative Opinion on the Compatibility Between Certain Provisions of the Convention on Biological Diversity and the Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights as to the Protection of Traditional Knowledge, International Court of Environmental Arbitration and Conciliation (Reporter: Michael Bothe)” (EAS - OC 08/2003), disponível em <http://iceac.sarenet.es/Castellano/casos/TRIPs%20ingles.htm> acesso em 20.03.2009.

Esse diálogo é acentuado, ainda por solicitações do Secretariado da CDB à OMC,258 assim como por pressões sobre os países desenvolvidos para que reconheçam a fragilidade da proteção a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais decorrente das atuais normas do Acordo TRIPs.259 As denúncias contra a chamada biopirataria e a apropriação ilícita de conhecimentos tradicionais têm aumentado.

Na OMC, a Declaração Ministerial de Hong Kong, em 2005, reforçou a necessidade de se resolver a questão do relacionamento entre o Acordo TRIPs e a CDB. Os trabalhos do Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente apontam nessa direção, principalmente após a proposta de vinculação entre os três temas de reforma do Acordo TRIPs (relação com a CDB, registro e proteção de indicações geográficas) e de introdução de requisito obrigatório de revelação da origem em pedidos de patente.260

Com o paralelismo entre as demandas relativas a indicações geográficas e as pautas da CDB, a CE alinhou suas posições às dos países em desenvolvimento,261 o que enfraqueceu sobremaneira a resistência dos demais países desenvolvidos.262 As pressões vindas da FAO, da OMPI263 e de outros órgãos da ONU, ademais, dão ares auspiciosos às reivindicações pela associação do Acordo TRIPs à CDB (Helfer, 2004:32-34).