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EUA: diplomacia e unilateralismo

2. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS RELATIVAS À PROPRIEDADE

2.4. O Acordo TRIPs da Organização Mundial do Comércio

2.4.1. EUA: diplomacia e unilateralismo

Inegavelmente, os Estados Unidos foram o principal artífice do Acordo TRIPs.140 Muito além de promover infatigavelmente a negociação sobre direitos de propriedade intelectual nas rodadas do GATT, o país abordou, bilateralmente, os países considerados obstáculo a esta normatização, e atuou unilateralmente, com vigor, visando a retaliar os países que não protegiam ou não resguardavam aqueles direitos “adequadamente”.141

No plano multilateral, por pressão dos EUA, às antigas considerações com contrabando e pirataria somou-se uma preocupação mais ampla com as distorções comerciais decorrentes de proteção insuficiente aos direitos de propriedade intelectual em determinados sistemas jurídicos (Arup, 2000:180; Correa, 1998:15-6). Alegava-se que o desequilíbrio dos direitos de propriedade intelectual ao redor do mundo – assimetrias em sua concessão, duração, amplitude e enforcement – prejudicava consumidores, sujeitos a preços derivados de situações de reduzida concorrência, e produtores, submetidos à competição injusta com free riders. O alinhamento de Japão e CE aos EUA, após um aparente desinteresse inicial, foi decisivo para o avanço dessa pauta na agenda da Rodada Uruguai (Gervais, 2003).

139 “despite leadership from hardliner opposition countries like Brazil and India, less developed countries did

not unite in their opposition to the demands of developed countries.” (Yu, 2004:363)

140 Cf. Correa (1998:13-20) e Sell (2003:75-95). Cf. também relatos de Preeg (1995), Gervais (2003) e Watal (2001), integrantes das delegações oficiais de seus países nas negociações da Rodada Uruguai.

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“Dominant actors may explicitly use a combination of sanctions and incentives to compel other actors to

act in conformity with a particular set of principles, norms, rules, and decision-making procedures.”

A negociação direta com países resistentes à proteção da propriedade intelectual foi empregada pelos EUA antes e durante a Rodada Uruguai. Cooperação técnica e benefícios comerciais, como os do Sistema Geral de Preferências (SGP) estadunidense, eram oferecidos como um aceno de boa vontade nos momentos iniciais de discussão (Mercurio, 2006:218).142 Mas foram tímidos os resultados desses instrumentos, interpretados pelos países em desenvolvimento como o lado dócil da mesma política dos EUA que se valia, sem freios, de medidas unilaterais como pressão sobre suas economias.143

A atuação unilateral dos EUA, fundamentada na Seção 301 de seu Trade Act, respondia à ausência ou insuficiência de proteção a direitos de propriedade intelectual nos países penalizados (Watal, 2001:23-5; Basso, 2001:151-2; Okediji, 2004:134). O Omnibus Trade and Competitiveness Act of 1988 aumentou o poder da United States Trade Representative (USTR) para identificar e investigar esses países. Em 1989 foi criado o “Special 301”, primeira classificação de países que seriam monitorados e, possivelmente, deixariam de receber benefícios do SGP dos EUA.144 Os impactos das decisões estadunidenses atingiram países recém industrializados, como Brasil, China, Tailândia, Índia, Coréia do Sul, Taiwan e Filipinas,145 mas também países desenvolvidos e com direitos de propriedade intelectual abrangentes, como Austrália e países da CE (Arup, 2000:179-180), acusados de não oferecer proteção suficiente a programas de computador, produtos farmacêuticos, fonogramas e gravações cinematográficas (Barton et al., 2006:165). Durante e mesmo após a Rodada Uruguai, essa abordagem unilateral persistiu: novas listas do USTR continuaram a ser anualmente editadas e a projetar efeitos sobre o SGP.146

Às decisões unilaterais fundamentadas na Seção 301 somavam-se os atos internacionais decorrentes da “composição” entre os EUA e os alvos de suas sanções ou ameaças unilaterais. Entre 1986 e 1994, os EUA assinaram tratados sobre propriedade intelectual

142 Sobre a fruição de benefícios do SGP dos EUA pela Tailândia durante a Rodada Uruguai, cf. Kuanpoth (2003:50-55).

143 “Where national governments weigh in to support their exporters and investors, we have seen not only the

power of persuasion but the threat of economic sanctions being deployed to bring about favourable changes in law.” (Arup, 2000:33).

144 No mesmo ano, os EUA haviam aderido à Convenção de Berna. Segundo Scotchmer (2004:420), a adesão tardia, tendo em vista que aspectos substantivos e processuais das leis estadunidenses não eram compatíveis com a Convenção, ocorreu porque os EUA “had become a major exporter of copyrighted works and wanted

both protection abroad and a voice in international policy making.”

145 Sobre a aplicação das sanções da Seção 301 sobre Índia e Brasil, fundamental para os avanços da Rodada Uruguai, cf. Drahos (2002:170-171).

146 “Cette stratégie, ‘de la carotte et du bâton’ s’est révelée un précieux outil de négociation dans le cadre de

com Bulgária, China, Cingapura, Coréia do Sul, Equador, Estônia, Filipinas, Hungria, Índia, Jamaica, Letônia, Lituânia, Sri Lanka, Tailândia, Taiwan e Trinidad e Tobago.147 Esses acordos, empregados nos períodos de negociação mais intensa na Rodada Uruguai, foram instrumentos de cooptação para o avanço da pauta dos direitos de propriedade intelectual até a finalização do Acordo TRIPs, além de serem resultado concreto da aplicação da Seção 301 pelos EUA, conforme a tabela abaixo:

Tabela 2: Seção 301 e acordos dos EUA sobre propriedade intelectual

País Procedimento da Seção 301 / ano de instauração Ano do acordo com os EUA

Brasil Brazil Intellectual Property Rights (301-91) / 1993 1994 China People's Republic of China Intellectual Property Protection

(301-86) / 1991

China Intellectual Property Rights (301-92) / 1994

1992 1995 Coréia do

Sul

Korea Intellectual Property Rights (301-52) / 1985 1986 Índia India Intellectual Property Protection (301-85) / 1991 1993 Tailândia Thailand Copyright Enforcement (301-82) / 1990 1991 Taiwan Taiwan Intellectual Property (301-89) / 1992 1992

Elaboração própria com base em USA (2007B) e “Section 301 Table of Cases”, disponível em <http://www.ustr.gov/Trade_Agreements/Monitoring_Enforcement/Section_Index.html> acesso em 24.02.2009.

Nesse esteio, observou-se na Rodada Uruguai uma forte tensão no que toca à propriedade intelectual, que opôs discursos de proteção destes direitos a pleitos pela difusão de conhecimento e tecnologia. Além dos conflitos Norte-Sul, houve acirradas divergências Norte-Norte, isto é, entre países desenvolvidos – quer mais gerais, como as relativas à negociação de direitos autorais e de indicações geográficas, quer específicas, como as diferenças quanto ao modo de reconhecimento da proteção patentária (Correa, 1998:18-9). Os interesses subjacentes a tais discursos, presididos em cada país, em larga medida, por fatores econômicos estruturais, geraram atritos marcantes. Análises pragmáticas, porém, não foram abandonadas: no curso das negociações, vários atores passaram a enxergar vantagens na inclusão de direitos de propriedade intelectual no sistema multilateral de comércio, tendo em vista, entre outros dados, a preferência por regras multilaterais, especialmente se capazes de coibir as vigorosas pressões unilaterais dos EUA.

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Tais avenças, em maior parte não formalizadas como tratados, recebiam geralmente o título de “acordo sobre direitos de propriedade intelectual” ou de “memorando de entendimentos” com este objeto. Cf. USA (2007B:Appendix X: U.S. Trade-Related Agreements and Declarations).

A limitação na margem de escolha dos Estados, resultante de estruturas existentes antes e após o ingresso em determinado regime internacional (Keohane, 2005:70-72),148 pode ser a fagulha que inicia alterações decisivas na condução de determinados assuntos da vida internacional. As negociações sobre direitos de propriedade intelectual da Rodada Uruguai são um nítido exemplo dessa possibilidade. A influência dos EUA, combinada com a das demais potências industrializadas, induziu os países em desenvolvimento a aceitarem a inclusão desses direitos na agenda de transformação das regras do GATT. Simultaneamente, esta mudança institucional impôs, no campo comercial, uma diluição da influência das potências industriais, que passou a ser filtrada e moderada pela nova dinâmica da Organização Mundial do Comércio.149