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Proteção assimétrica a bens intelectuais

4. IMPACTOS DA PROLIFERAÇÃO DE NORMAS INTERNACIONAIS RELATIVAS

4.2. Proteção assimétrica a bens intelectuais

O patamar de proteção à propriedade intelectual alcançado na Rodada Uruguai e os mecanismos de modificação normativa da OMC não aplacaram os anseios de diversos

países pela elevação ou pela alteração do que foi consignado no Acordo TRIPs.435 Em larga medida alheia ao sistema multilateral de comércio, a pluralidade normativa observada nos anos 1990 e 2000 resulta, imediatamente, na desarmonia das obrigações internacionais de propriedade intelectual.436

4.2.1. Diferentes patamares de proteção

Iniciativas descentralizadas de tratados, bilaterais ou regionais, tornam divergentes as normas nacionais sobre direitos de propriedade intelectual. O impacto das normas internacionais, contudo, é sentido de maneira diversa nos países com tradições jurídicas e instituições distintas. Os efeitos, por exemplo, de prazos dilatados de proteção patentária variam muito se essa extensão for projetada nos EUA ou em países em desenvolvimento, com base tecnológica ínfima (Abbott, 2006:20).

A “exportação” de normas sobre propriedade intelectual “aos países em desenvolvimento não se faz acompanhar da instituição nesses países de sistemas de defesa da concorrência, de proteção ao consumidor ou de normas ambientais e trabalhistas similares aos existentes nos países desenvolvidos.437 Com isso, a disjunção das obrigações internacionais acarreta também, naqueles países, a deformação de políticas públicas no plano doméstico. Se a redução da margem de discricionariedade estatal pode favorecer titulares de direitos sobre bens intelectuais, ela pode também implicar deficiências no resguardo dos consumidores desses bens e omissão no que toca aos abusos desses direitos por seus detentores e ao quase inexistente desenvolvimento tecnológico local (Benkler, 2006:386-387).

Ainda, em países como EUA, Alemanha e Japão, o judiciário, os órgãos administrativos e os agentes públicos possuem experiência prática na conciliação entre os direitos de propriedade intelectual e outras prioridades de ordem econômica, social e cultural. Nesses países, o equilíbrio consagrado em leis, regulamentos e jurisprudência impede que o

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Cf. Capítulos II e III supra.

436 Drezner (2007:88) sugere que esse desequilíbrio tende a desaparecer se houver consenso entre as grandes potências econômicas (EUA e CE): “great powers are the key actors in determining the pattern of global

regulatory regimes. If they can agree among themselves, coordination will occur regardless of NGO, IGO, and peripheral state preferences.” Para o autor, os meios para o estabelecimento de padrões globais podem

variar: organizações internacionais e não governamentais têm mais importância na governança global na medida em que atuem como agentes dos interesses dos Estados mais poderosos (Drezner, 2007:118).

437 Em última análise, os direitos de propriedade intelectual atualmente decorrem de um “complex process of

institutional interaction whereby global norms are not just debated and interpreted, but ultimately internalized by domestic legal systems.” (Koh, 1997:2602)

respeito àqueles direitos seja interpretado de forma obtusa. Entretanto, a rigidez das cláusulas TRIPs Plus, principalmente no que tange à extensão da proteção jurídica aos bens intelectuais, pode submeter imperativos de interesse público de países em desenvolvimento à verve dos agentes privados beneficiados por essas disposições.438

Finalmente, cumpre notar que normas que se estendem para além do contido no Acordo TRIPs, ao elevarem a proteção dos direitos de propriedade intelectual, beneficiam quaisquer detentores desses direitos. As mudanças operadas em determinado país espraiam-se, pelos princípios do próprio Acordo, para todos os interessados, de qualquer nacionalidade, que sejam titulares ou que pleiteiem direitos naquele país, salvo se houver ressalva expressa da legislação nacional. Isso significa que, nas barganhas bilaterais, alterações nas regras de propriedade intelectual produzem efeitos mais amplos do que os cortes tarifários, inter partes, atingido, no mínimo, todos os países membros da OMC e, no limite, gerando no âmbito doméstico direitos distintos dos que seriam esperados à luz das normas multilaterais.439 Ao imporem modificações à conformação de políticas públicas nacionais, portanto, as obrigações TRIPs Plus podem ser lidas como obrigações “interdependentes”, mas adquirem, simultaneamente, resultados típicos de obrigações “integrais”, categoria normalmente reservada a matéria humanitária ou de direitos humanos (Dupuy, 2000:138-146).440

4.2.2. Incerteza nas obrigações internacionais

Os diferentes patamares de proteção expostos acima geram incerteza quanto às obrigações internacionais assumidas por cada país, ainda que participante dos tratados multilaterais de maior envergadura. Os benefícios dos regimes internacionais são prejudicados pela “defecção parcial” de alguns de seus membros, ou seja, por sua participação na criação de normas distintas daquelas preconizadas pelo regime.441 Com isso, aumentam os custos de

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Cf., a respeito da importância do ambiente institucional e das instituições de governança de direitos de propriedade intelectual, Andersen e Konzelmann (2008).

439 “Moreover, there is a risk that regional/bilateral agreements could undermine the multilateral system by

limiting more generally the use by developing countries of the flexibilities and exceptions in TRIPS. In particular the Most Favoured Nation Principle means that terms agreed bilaterally or regionally must be offered to all other WTO members on the same basis.” (CIPR, 2002:162)

440 Cf. capítulo 2.4.3 supra.

441 “Regimes facilitate agreements by raising the anticipated costs of violating others’ property rights, by

altering transaction costs through the clustering of issues, and by providing reliable information to members.” (Keohane, 2005:97)

informação, e portanto os custos de transação e de oportunidade, referentes aos contatos entre os agentes privados diretamente afetados pelas normas do regime.

The complexity and lack of transparency introduced by a new wave of bilateral and regional trade agreements (RTAs) makes it far harder to construct a simple, workable and effective global IPR regime, even if the goals of such a system could be universally agreed. (EPO, 2007:57)

A incerteza econômica resultante, no entanto, não é distribuída igualmente entre todos os envolvidos com as diferenças entre patamares de proteção a bens intelectuais. Ao se expressar como risco, tal incerteza implica custos para a absorção inicial e para a manipulação posterior de conhecimento especializado (serviços jurídicos, atuariais). Multiplicadas por várias jurisdições, essas despesas são proporcionalmente maiores para os consumidores e agentes privados menores do que para as empresas transnacionais,442 o que acentua o desequilíbrio sistêmico em favor dos titulares de direitos de propriedade intelectual.443

4.2.3. Restrições contrárias à liberalização comercial

Em paralelo a regras domésticas muito distintas, de elevada incerteza, as assimetrias internacionais a respeito de direitos de propriedade intelectual provocam, ainda, restrições comerciais severas. Em movimento contrário ao objetivo central da OMC, muitas das normas negociadas em tratados bilaterais e regionais, ao intensificar a proteção aos bens intelectuais, dotam os titulares de direitos de instrumentos de limitação dos fluxos comerciais. As limitações mais expressivas ocorrem por força da previsão de exaustão nacional de direitos e dos obstáculos a medidas de promoção da concorrência e de padrões tecnológicos abertos.

A exaustão nacional de direitos permite a diferenciação artificial dos preços praticados pelo titular de um direito de propriedade intelectual nos vários mercados em que atua, pois a colocação do mesmo produto nesses mercados pode ser licitamente controlada pelo

442 Apontar que os direitos autorais sobre determinados bens intelectuais expiraram e estão em domínio público, por exemplo, requer informações específicas em cada jurisdição. Compor o conhecimento da situação jurídica de um bem intelectual em várias jurisdições e identificar os efeitos que cada uma delas projeta sobre as outras é extremamente complexo.

titular. A exaustão internacional, por sua vez, torna livre a revenda (e a exportação) de produtos já colocados licitamente em outros mercados.444 Com isso, pressionam-se os preços para baixo, pois os diferentes mercados concorrem entre si e, havendo demanda, as importações tendem a acontecer quando o preço final do produto importado, já assimilados os custos de transporte e tarifas, for menor do que o preço do mesmo produto no mercado interno. Nesse sentido, a exaustão internacional é via de regra benéfica para o consumidor.

Embora o Acordo TRIPs faculte a opção pela exaustão internacional ou nacional de direitos (art. 6), o que foi reiterado pela Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública (par. 5.d), muitos dos tratados TRIPs Plus determinam que a exaustão de direitos autorais e de patentes seja nacional.445 O resultado é a elisão da margem de discricionariedade nacional, o que pode cercear importações paralelas, arrefecendo o trânsito de mercadorias intensivas em bens intelectuais (CIPR, 2002:41-42; Baker, 2004:660-661). No plano regional, há negociação em curso para regras de exaustão correspondentes aos blocos de livre comércio, ou seja, que tomem toda a região como parâmetro para a exaustão de direitos – a minuta original do NAFTA previa exaustão regional e no MERCOSUL, em que pese ainda não haver acordo para a exaustão regional, as discussões têm avançado nos últimos anos.

Note-se, contudo, que a extração de renda diferenciada conforme a capacidade do mercado consumidor pode ser importante para estimular a produção de bens intelectuais, especialmente se os produtos e serviços por eles compostos forem intensivos em tecnologia e criatividade. Nesse sentido, Barton (2001:491-5) defende que a abertura do TRIPs a múltiplos regimes de exaustão de direitos seria mais bem equalizada se fosse possível criar níveis de países, com exaustão internacional entre si, de forma a organizar graus de preços equilibrados em vista do acesso aos bens intelectuais e do poder de compra dos consumidores.446

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O regime de exaustão diz respeito aos poderes de eventual restrição comercial concedidos ao titular de um direito de propriedade intelectual, não compondo sua configuração os efeitos penais associados a atos que confrontem tal restrição. Cf., em sentido oposto, Basso (2004:299-300).

445 Somente um dos tratados examinados, EFTA – Colombia, reitera a possibilidade de exaustão internacional; cf. capítulo 3.2.3 supra.

446 A proposta, centrada em produtos farmacêuticos, leva em consideração as diferentes implicações das importações paralelas para setores econômicos distintos. No mesmo sentido, afirmam Fink e Maskus (2005:10): “the welfare consequences of an exhaustion policy differ across industries and across the various

types of intellectual property. For some technologies, such as pharmaceuticals, there are good reasons for restrictions on parallel trade. In others, the case for limiting parallel trade is less clear.”

No que tange à defesa da concorrência e a padrões abertos, a recente expansão de normas sobre propriedade intelectual pode também desembocar em restrições ao livre comércio e a transações pautadas pela eficiência. O artigo 40 do Acordo TRIPs concede ampla liberdade aos membros da OMC para conciliarem a proteção aos direitos da propriedade intelectual com medidas voltadas a conter seu potencial para instrumentalizar práticas contrárias à concorrência e à transferência e disseminação de tecnologia (CIPR, 2002:148-149; Arup, 2000:206-211). Entretanto, prescrições dos tratados bilaterais TRIPs Plus reduzem as possibilidades nacionais para estabelecer freios adequados aos abusos de direito ensejados por direitos de propriedade intelectual amplos – a começar pelas possibilidades de licenciamento compulsório desses direitos447 e de estabelecimento de obrigações de interoperabilidade tecnológica.448