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2. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS RELATIVAS À PROPRIEDADE

2.5. Pós-TRIPs: da suposta governança global à instabilidade normativa

2.5.2. Normas paralelas ao Acordo TRIPs – convergência e distensão

2.5.2.3. Tratados bilaterais

Embora tenha avançado a normatização positiva no plano multilateral, as regras formais sobre bens intelectuais consolidadas na OMC são de difícil modificação. O quadro econômico, social e cultural no qual se desenrolam as transações, usos e manipulações de tais bens é extremamente complexo, além de atingir transversalmente vários mercados. Prever a criação de novos direitos de propriedade intelectual ou alterações na sua regulamentação internacional requer, portanto, uma composição de fatores políticos variável conforme o tipo de foro em que se atue e a espécie de norma que se persiga.

Os tratados multilaterais permitem barganhas cruzadas (issue linkage), o que facilita e potencializa muito a negociação de normas sob sua égide. Porém, os custos dessa negociação, marcada pela complexidade, são altos – por serem muitos os temas envolvidos, porque as normas discutidas devem ser passíveis de internalização e efetivação em jurisdições muito variadas e em razão da diversidade de partes e, conseqüentemente, dos interesses envolvidos (Sykes, 2004:14-16).

A proliferação de tratados bilaterais e regionais, acelerada após as Conferências Ministeriais de Seattle (1999) e de Cancún (2003),229 deve ser observada cuidadosamente, porque sua relação com a OMC é extremamente ambígua (Matsushita, Schoenbaum, Mavroidis, 2006:913-914).230 Preterir tabuleiros multilaterais de negociação pode ter significados dúbios em propriedade intelectual: a criação de novas normas pode ser facilitada ou desencorajada.231

229 Okediji (2004:129) nota a persistência das experiências bilaterais, ainda que arrefecidas em momentos de sucesso na gestação normativa multilateral: “Contrary to some perceptions, bilateralism has been an

entrenched tool of foreign relations, specially with regard to advancing developed countries interests in developing countries.”

230 Se, de um lado, tais tratados contrariam a unidade do sistema multilateral de comércio, promovendo subordens com preferências distintas daquelas aplicáveis a todos os membros da OMC, por outro a liberalização comercial, ao menos no que diz respeito ao comércio de bens, pode ser por eles alcançada, quer em sede regional, quer bilateral ou plurilateral, o que se coadunaria com o objetivo central da OMC.

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“bilateral agreements reinforce the multilateral process as well, as the FTAs oblige partners to adhere to

IPRs international conventions” (Correa, 2004A:81). Para Okediji (2004:135), a própria ordem multilateral

De qualquer modo, cumpre apontar que um regime internacional unificado para a propriedade intelectual, que se anunciava ao fim da Rodada Uruguai, não sobreviveu à necessidade de transformações normativas levadas pelos Estados à esfera internacional. Ora, tenha sido a OMPI o cerne de um eventual regime, ou mesmo o Acordo TRIPs no final dos anos 1990, assinala-se que não há ordem estática nessa seara.232

A dinâmica normativa dos tratados bilaterais ultrapassa a atividade dos acordos regionais. Ainda que os processos de integração dêem base para negociações de maior fôlego, as relações bilaterais têm crescido em importância como fonte de novas normas internacionais relacionadas com propriedade intelectual. Formadores de obrigações denominadas TRIPs Plus, ou seja, que extravasam o previsto no Acordo TRIPs, esses tratados contam na maioria esmagadora dos casos com a participação de membros da OMC, que optam por negociá-los fora do plano multilateral. Essa preferência, em determinados casos, amolda-se à pressão de agentes econômicos interessados na expansão comercial propiciada por arranjos bilaterais.

O “emaranhado normativo” derivado dessas iniciativas existe há tempos. A maioria dos tratados bilaterais de investimento, por exemplo, traz dispositivos de proteção à propriedade intelectual (Guzman, 1998:655-656; Okediji, 2004:141-142). A explosão de tratados bilaterais após a Rodada Uruguai, porém, representa normas sobre propriedade intelectual diversas daquelas negociadas e consolidadas no âmbito da OMC. Tais normas, gestadas em meio a barganhas cruzadas, escapam dos princípios próprios do sistema multilateral de comércio.233 Como resultado, legislações com previsões assimétricas são solidificadas por obrigações internacionais, muitas vezes aplicáveis apenas a uma das partes do tratado bilateral.234

respeito a cortes tarifários, Baldwin (2006:1470-1471) assinala um intenso fortalecimento recíproco entre a liberalização regional e a multilateral.

232 Strange (1983:344-346) atenta para o caráter conservador das análises dos regimes internacionais que se ocupam eminentemente do destaque da ordem, da estabilidade.

233 “it is remarkable to see how developing nations are willing to accept disciplines in FTAs on intellectual

property rights, investment measures, government procurement and agriculture that they reject at the WTO level” (Baldwin, 2006:1511); “both investment and trade agreements constitute potential mediums for new intellectual property obligations to be imposed on developing countries.” (Okediji, 2004:142)

As críticas ao expediente do bilateralismo, originárias principalmente de países em desenvolvimento e de organizações não governamentais, são ferrenhas. Flexibilidade reduzida para políticas públicas e a frustração de padrões e conquistas do plano multilateral convivem com reclamações de ordem comercial e com a percepção de que os ganhos mais expressivos dos países em desenvolvimento com os tratados bilaterais concentram-se em setores econômicos pouco sofisticados.235 Da parte dos países desenvolvidos, a fragmentariedade assumida por esses tratados é recriminada em conjunto com a constatação de que suas disposições sobre direitos de propriedade intelectual muitas vezes limitam-se a tornar operacionais direitos já reconhecidos pelos signatários (os tratados constituem, nesse sentido, apenas mais um esforço de constrangimento para que se dê efetividade àqueles direitos).

O fenômeno dos tratados bilaterais, porém, demanda atenção. Os desentendimentos da Rodada Doha e a multiplicação de países proponentes desses tratados dificultam uma caracterização precisa dos loci que lidam com direitos de propriedade intelectual. A compreensão do direito internacional neles nascente requer, sobretudo, a identificação dos atores cujas propostas concorrem com os foros multilaterais, de suas reivindicações e de sua preocupação com a integridade de normas internacionais que se apóiam mutuamente.236

Um exemplo da fragmentação normativa que pode ser causada por tratados bilaterais surge da análise dos acordos de livre comércio celebrados pelo Chile com EUA, EFTA e Japão. Além de membro da OMC, o Chile é signatário de inúmeros tratados multilaterais sobre direitos de propriedade intelectual. Contudo, no plano bilateral o país não apenas reiterou compromissos que já havia firmado, como também assumiu obrigações extremamente onerosas para um país em desenvolvimento, como a exclusividade dos dados de testes para aprovação de produtos farmacêuticos e a restrição da utilização desses dados para a repetição dos mesmos testes por empresas distintas da que originalmente os realizou. Tais obrigações, que constam dos três tratados bilaterais mencionados, opõem-se às

235 No tratado entre EUA e países centro-americanos (US – CAFTA), por exemplo, as regras sobre direitos de propriedade intelectual, entre outras benéficas aos EUA, teriam sido incorporadas em troca de uma concessão de quotas para a exportação de açúcar ínfima para o país (que, sobretudo, não compromete as tarifas aplicadas nem os patamares de proteção regularmente utilizados pelos EUA contra a importação de bens agrícolas).

236 “Both bilateralism and multilateralism are integral parts of the international intellectual property

flexibilidades permitidas pelo Acordo TRIPs. Além disso, prejudicam sensivelmente as opções do país no que tange a válvulas de escape ao sistema de patentes voltadas à defesa da saúde pública, à transferência de tecnologia farmacêutica e à abertura do mercado chileno para fabricantes de medicamentos genéricos.237