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Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública

2. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS RELATIVAS À PROPRIEDADE

2.5. Pós-TRIPs: da suposta governança global à instabilidade normativa

2.5.3. Diálogos transversais

2.5.3.1. Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública

A Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPs e a Saúde Pública238 resultou da disputa política mais significativa da Conferência Ministerial de Doha (Barton et al., 2006:168- 169).

237 Cf. Capítulo III infra, em que tais previsões são detalhadas, além de serem arroladas as obrigações TRIPs

Plus assumidas pelo Chile em tratados com CE, Japão, México e Austrália.

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“Declaração sobre TRIPs e Saúde Pública”, WT/MTN(01)/DEC/W/2 (20.11.2001), documento anexo à “World Trade Organization, Ministerial Declaration of 14 November 2001”, WT/MIN(01)/DEC/1 (20.11.2001), incorporada no Brasil pelo Decreto 4.830, de 04 de setembro de 2003.

Os primeiros anos após o término da Rodada Uruguai foram marcados por vigorosos embates dos EUA pela implementação do Acordo TRIPs, especialmente no campo das patentes farmacêuticas. As ofensivas mais vistosas do país tiveram como alvos Índia, África do Sul e Brasil. A Índia foi demandada em dois contenciosos da OMC, iniciados por EUA e CE, acerca do início da proteção a patentes químicas e farmacêuticas.239 Uma inovação legislativa da África do Sul voltada a facilitar a importação paralela de medicamentos foi respondida com a abertura de procedimentos da Seção 301, em 1998, e com a proposição de ação judicial, nos tribunais sul-africanos, por 41 representantes da indústria farmacêutica (Drahos, 2003:16).240 O Brasil, que adotara nova lei de patentes para se conformar ao Acordo TRIPs, foi consultado na OMC, em 2000, a respeito da previsão de o licenciamento compulsório de patentes, em casos de emergência nacional, dispensar consulta prévia ao titular.241

Nesse contexto turbulento, os países em desenvolvimento relutavam em aprofundar a proteção aos direitos de propriedade intelectual, ao passo que pleiteavam maior clareza sobre a interpretação do Acordo TRIPs no que diz respeito às garantias de satisfação de necessidades fundamentais relativas à saúde pública. A defesa do uso da licença compulsória de patentes, em que pese “a regra e prática do consenso no processo decisório” da OMC (Lafer, 1998:15), opôs-se a severas críticas da parte dos países desenvolvidos.

O argumento central contra a utilização ampla da licença compulsória sustentava que ela teria como resultado o desincentivo à pesquisa e ao desenvolvimento. Por outro lado, os defensores da ampliação das hipóteses de recurso à licença compulsória enxergavam as interpretações restritivas do Acordo TRIPs como limitação injustificada do instituto, que

239 Cf. “India — Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural Chemical Products” (DS50, iniciado por consultas dos EUA em 02.07.1996) e “India — Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural

Chemical Products” (DS79, iniciado por consultas da CE em 28.04.1997) disponíveis, respectivamente, em

<http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds50_e.htm> e <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds79_e.htm> acesso em 20.03.2009.

240 A respeito do South African Medicines Act 1997 e da pressão dos ativistas internacionais contra a “cobiça das empresas farmacêuticas”, cf. Sell (2003:151-153).

241 Cf. “Brazil – Measures Affecting Patent Protection” (DS199, consultas em 30.05.2000), disponível em <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds199_e.htm> acesso em 20.03.2009. A discussão referia-se a uma prerrogativa típica do instituto das patentes; como se verá no capítulo 4.4.1 infra, diverge-se de que “the Brazilian conflict was a conflict between the WTO and WHO: an institutional conflict between the policies of two international organizations.” (Fischer-Lescano; Teubner, 2004:1027)

constrangeria as políticas nacionais voltadas a emergências de saúde pública (CIPR, 2002:42).

Muitos países em desenvolvimento, como os mencionados Brasil, Índia e África do Sul,242 bem como ONGs (como Oxfam e Médicos sem Fronteiras), posicionaram-se a favor do licenciamento compulsório e da exigência do uso local das patentes para garantir acesso a medicamentos mais baratos (Watal, 2000:375-376). Na OMC e em diversos órgãos da ONU, o debate em torno dos conflitos entre interesses privados e saúde pública no Acordo TRIPs ganhou força. A Comissão de Direitos Humanos da ONU adotou uma resolução emblemática a respeito,243 que reconheceu o acesso a medicamentos essenciais como direito humano fundamental, prescrevendo abstenção pelos Estados de medidas que neguem ou limitem as condições de acesso a tecnologias bio-farmacêuticas empregadas na prevenção ou no tratamento de doenças pandêmicas. Resoluções subseqüentes da OMS (em Conferências da Assembléia Mundial de Saúde) e da Comissão de Direitos Humanos da ONU selaram a dispersão da pauta por foros não imediatamente vinculados ao sistema multilateral de comércio (Abbott, 2002).

Como resultado, a necessidade de se interpretar o Acordo TRIPs à luz dos princípios do direito humanitário, de sorte a prevalecer a proteção à saúde pública, dominou as manifestações a respeito das patentes farmacêuticas nos anos 2000. O Conselho do TRIPs foi palco para discussões acirradas sobre como implementar esta nova interpretação, em que Estados Unidos e Suíça antagonizaram com grupos de países em desenvolvimento (liderados pelo chamado African Group) (Gathii, 2002:296-297). Propôs-se então seis itens a serem incluídos numa futura declaração ministerial,244 que compuseram uma agenda robusta, negociada no Conselho do TRIPs de setembro a novembro de 2001.

242 A respeito das demandas dos países africanos no campo da saúde pública, cf. Pretorius (2002).

243 Resolução 2001/33: “Access to medication in the context of pandemics such as HIV/AIDS”, disponível em <http://www.aids.gov.br/data/documents/storedDocuments/%7BB8EF5DAF-23AE-4891-AD36- 1903553A3174%7D/%7B08E37795-3840-440C-B0B7-CFF6E61B88D4%7D/resolucao_comissao_dh.pdf> acesso em 20.11.2008.

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Os seis tópicos eram (i) o uso dos artigos 7o e 8o nas interpretações de todas as provisões do Acordo TRIPs; (ii) o direito de cada país determinar as bases para o licenciamento compulsório de patentes; (iii) a outorga destas licenças a fabricantes estrangeiros; (iv) o direito à importação paralela dos medicamentos assim produzidos; (v) uma moratória nas disputas discutindo prevenção ou limitação de acesso a medicamentos ou proteção à saúde pública; e (vi) a extensão dos períodos de transição para adequação dos países em desenvolvimento ao Acordo TRIPs.

A Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública, adotada durante a 4a Conferência Ministerial da OMC, em Doha, Catar,245 reconheceu expressamente que a aplicação das normas de proteção da propriedade intelectual não deve impedir os países membros de adotarem medidas efetivas para proteger a saúde pública (Abbott, 2002),246 consagrada como um dos motivos da existência do Acordo TRIPs.247

These events reveal that developing states and public health NGOs have used the WHO not as a forum for rolling back intellectual property protection standards, but rather as a venue for advocating the use of flexibilities already embedded within TRIPs. (Helfer, 2004:45)

A ação orquestrada de ONGs, a intervenção em múltiplos foros e a exploração dos apelos midiáticos do problema do acesso a medicamentos essenciais são parte da explicação para o sucesso dos países em desenvolvimento em consolidar uma interpretação do Acordo TRIPs sensível a suas demandas (Sell, 2003:146-150).248 Note-se, contudo, que também foram bem aproveitados os altos custos para a mudança de foro na discussão sobre direitos de propriedade intelectual e acesso a medicamentos e o momento delicado por que passava a OMC, no qual a legitimidade das regras favoráveis aos Estados dominantes estava em jogo (Drezner, 2007:178-194).249

Em movimentos subseqüentes, como a decisão sobre a forma de efetivação da Declaração de Doha no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos aos membros da OMC sem capacidade de fabricação (CIPR, 2002:44-49),250 os países em desenvolvimento não

245 A Conferência Ministerial é autoridade máxima de decisão da OMC (art. IV, 1 da Ata Constitutiva da Organização Mundial do Comércio). Formada por todos os países membros da Organização, tal conferência reúne-se ao menos uma vez a cada dois anos.

246 “by relying on key terms in TRIPS Article 8 that were intended to function as a type of ‘development

check’ to a purely economic analysis, developing countries challenged high protectionist patent standards set by the U.S. and other developed countries, and ultimately forced the WTO to change inappropriate compulsory licensing provisions.” (Chon, 2006:2843)

247 A Declaração, portanto, deve orientar as interpretações sobre o Acordo TRIPs, conforme a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (art. 31, 3 a ) (Gathii, 2002:292-293). Shanker (2002), porém, lamenta que o potencial uso interpretativo da Declaração tenha sido atacado por acadêmicos de países desenvolvidos. 248 O uso bem sucedido do Conselho do TRIPs, segundo Abbott (2003:39-40), é de difícil replicação, porque a pauta era compartilhada por todos os países em desenvolvimento e extremamente atraente aos olhos da opinião pública.

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“Global civil society did play a role in shifting policy on intellectual property rights – but the role has

been exaggerated both before and after the Doha Declaration.” (Drezner, 2007:201)

250 A Decisão do Conselho Geral da OMC de 30.08.2003, sobre parágrafo 6º da Declaração de Doha, é criticada por ser complexa e demandar autorizações burocráticas tanto do país em que o medicamento é produzido quanto daquele para onde será exportado (Drahos, 2003:17-18). Cf. Baker (2004). Decisão adicional, de 06.12.2005, recebeu críticas semelhantes.

lograram obter o mesmo êxito.251 Por outro lado, a intersecção entre direitos de propriedade intelectual e medicamentos foi gravada nas pautas de outras organizações internacionais, em particular da OMS, que criou grupo de estudos especial com esse fim e está desenvolvendo tratado específico sobre o tema.252