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2. AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS RELATIVAS À PROPRIEDADE

2.3. Das convenções do século XIX à Rodada Uruguai do GATT

2.3.1. A formação de um regime?

Desde o século XIX, a expressão internacional da propriedade intelectual, com direitos fluidos e dependentes de regulação concertada entre os Estados, motivou a produção de normas internacionais. Uma malha de tratados bilaterais governou a proteção de direitos de propriedade intelectual nos Estados europeus no período, tendo como partes primeiro as províncias que formariam a Alemanha (lideradas pela Prússia) e a Itália e, posteriormente, também as potências dominantes da época, França e Inglaterra (Yu, 2003:250-251).

No final do século XIX, observou-se um processo associativo, traduzido pela Convenção da União de Berna, sobre obras autorais, e pela Convenção da União de Paris, que tratou de marcas e patentes. Tais instrumentos internacionais “provided the foundations of the current international intellectual property regime” (Yu, 2004:354). A reunião, em 1893, das Convenções de Berna e de Paris nos Bureaux Internationaus Réunis Pour la Protection de la Proprieté Intellectuelle significou um adensamento diplomático em torno dos direitos de propriedade intelectual.106

Essa atenção multilateral foi acompanhada por uma proliferação de leis nacionais, que conferiram efetividade às Convenções à medida que passaram a abarcar, de forma parcialmente uniforme, suas determinações. Almejava-se não uma identidade normativa, mas o estabelecimento de pisos de proteção (Rosenberg, 2004:22),107 garantias mínimas aos titulares de direitos de propriedade intelectual. Não se constrangiam, no entanto, as políticas nacionais: os países resguardavam ampla liberdade para proteger e utilizar os bens intelectuais da maneira que lhes fosse mais adequada, como instrumento de políticas públicas com os mais variados escopos.

106 Okediji (2004:133-134) registra que essas iniciativas multilaterais foram erigidas em larga medida sobre os tratados bilaterais já existentes entre seus participantes. Henkin (1979:201) assim esclarece: “The common

charter of bilateral relations was a treaty of friendship, commerce and navigation, and although there were differences among such treaties, the network of these treaties effectively established a regime of common principles, standards and practices.”

107 Basso (2000:108-110) salienta o papel pioneiro das Convenções de Paris e de Berna como tratados internacionais com reflexos sobre direitos subjetivos.

Em que pese o ingresso de outros países nas Convenções de Paris e de Berna,108 em muitos casos por dominação imperial e colonial (Drahos, 2002:164-165), destacou-se a adesão dos países industrializados, universalizada ainda no começo do século XX (Basso, 2000:115- 120).109 Sedimentaram-se então dois princípios básicos para as normas aplicáveis aos países unionistas (Okediji, 2004:137-138). O princípio da prioridade garantia aos titulares de determinados direitos dependentes de registro (como patentes) um período adicional, após o pedido de registro original, durante o qual poderiam realizar depósitos de pedido de registro em outros países, com prioridade sobre pedidos posteriores à data de depósito do pedido original (Barbosa, 2003:377-378). Já o princípio do tratamento nacional assegurava aos titulares de direito dos países membros das Uniões as vantagens conferidas pela lei dos demais países aos seus nacionais. A garantia de relações sinalagmáticas resultante foi o incentivo fundamental para a adesão de novos membros às Uniões (Scotchmer, 2004:419).

Além destes princípios, deferências à intervenção estatal no desenvolvimento de bens intelectuais eram freqüentes. Eram permitidas, nesse esteio, a exigência da exploração local das invenções, obrigando-a para as patentes concedidas a estrangeiros, e a repressão severa ao abuso de direito (embora fosse norma dispositiva na Convenção de Paris). A margem ampla para as políticas nacionais explica a longevidade desse quadro normativo, que se modificou muito pouco até o período subseqüente à Segunda Guerra Mundial.

Com a criação da Organização das Nações Unidas e os movimentos de descolonização, rediscutiram-se criticamente os direitos de propriedade intelectual e buscou-se coordenar esforços por uma proteção capaz de reduzir a assimetria entre países industrializados e em desenvolvimento.110 Em 1962, por exemplo, a Assembléia Geral da ONU adotou resolução proposta pelo Brasil reconhecendo a importância das patentes para o desenvolvimento econômico e social.111 Somaram-se a esse processo trabalhos decorrentes da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês),

108 O Brasil aderiu à Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 1883, internalizando-a por meio do Decreto 9.233, de 28 de junho de 1884. A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas foi internalizada pelo país apenas após sua primeira revisão, de 1908, por meio do Decreto 15.530, de 21 de junho de 1922.

109 “By the late nineteenth century, a network of bilateral copyright conventions had been established among

major European powers.” (Yu, 2004:335)

110

“Developing countries began to push a reform agenda that would enable them to gain access to the

technology of multinationals on favourable terms.” (Drahos, 2002:165-166)

inaugurada em 1964, e da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (ONUDI), de 1966.

A revisão das Convenções de Paris e de Berna foi marcada por uma forte defesa do primado estatal no exercício da soberania (traduzido em políticas reformadoras) e pela aspiração à eliminação de desigualdades por meio de políticas relativas a novas tecnologias (Barbosa, 2003:152-153). Esse processo político turbulento deu origem à OMPI,112 que agregou as Uniões de Paris e Berna.113

A centralização dos debates sobre propriedade intelectual em um único e coeso foro representou possibilidades mais promissoras de ação coletiva internacional. Sua alta densidade temática (“issue density”)114 sugere que houve a criação de um regime, capaz de conseguir escala com a redução de custos de transação e com o aprimoramento dos fluxos de informações necessários para a cooperação internacional (Keohane, 1983:155-157). O florescimento deste regime, espelhado no relacionamento da OMPI com os proponentes de legislações nacionais e com a própria ONU, teve como repercussão impulsos para uma unificação ulterior dos esforços cooperativos ao seu redor, de forma que a OMPI adquiriu, em 1974, status de Organismo Especializado das Nações Unidas.115

Sob a tutela da OMPI, os direitos de propriedade intelectual receberam atenção centralizada por inúmeros atores internacionais, o que gerou a promoção de tratados sobre tópicos variados e a expansão da cooperação técnica entre seus membros (Basso, 2000:130-142).116 Nas décadas seguintes, as discussões sobre “propriedade intelectual”

112 Resultante da Convenção de Estocolmo de 1967, promulgada no Brasil pelo Decreto no 75.541 de 1975. 113 Cf. <http://www.wipo.int> Acesso em 28/06/2008. Abbott, Cottier e Gurry (1999:303-308) descrevem em detalhes a estrutura da OMPI.

114 Keohane e Nye (2001:55-85) primeiro empreenderam mensuração da densidade temática em foros internacionais (partindo do exame do sistema monetário internacional e do direito dos mares).

115 No mesmo ano, a agenda dos países em desenvolvimento por uma Nova Ordem Econômica foi formalizada, traduzida por uma declaração, um programa e uma carta (Declaration on the Establishment of a

New International Economic Order, Programme of Action on the Establishment of a New International Economic Order e Charter of Economic Rights and Duties of States, decorrentes, respectivamente, das

Resoluções da Assembléia Geral da ONU 3201 (5-VI), p. 2 (5-VI), ambas de 1º de maio de 1974, e 3281, de 12 de dezembro de 1974.

116

Barbosa (2003:6-7) lembra que a cooperação técnica internacional, por meio do programa de assistência da OMPI, aportou sofisticação técnica ímpar ao Código da Propriedade Industrial de 1971, primeiro no Brasil a ser votado pelo Congresso.

couberam, inequivocamente, à organização, ocorrendo alhures apenas em segundo plano,117 e sempre tendo a OMPI como referência primordial.