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Coordenadores cognitivos, poesia e tradução

7. COORDENADORES COGNITIVOS (COO)

7.2. Coordenadores cognitivos, poesia e tradução

Desta forma, há em nós – e deve sempre haver, pois caso contrário não há vida humana – um forte desejo de compreender o mundo, de estabelecer relações entre as coisas, que fora de nós – ausentes de nós – nada seriam se

sentirmos imagens que não se referem a sentimentos é que elas normalmente são

acompanhadas de sentimentos” (2011, p. 37, grifo do autor). 85

Este tema será brevemente retomado a seguir, no capítulo “Experiência estética (EES)”.

não premidas, pressionadas pelo nosso olhar. Esse é o assunto do poeta alemão Rainer Maria Rilke, de quem somos leitoras assíduas desde que recebemos86 o livro Poemas – As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu (RILKE, 1983). Entretanto sempre pensamos – e o amamos tanto quanto a Rilke, sem conhecê-los – que líamos a voz de Paulo Quintela, tradutor desta edição. Aqui a poesia, assim como os coordenadores cognitivos, é assunto pessoal, depende da experiência estética – nos termos de Dewey – para acontecer. Então na Nona Elegia lemos a seguinte versão:

Terra, não é isto o que tu queres: invisível Ressurgir em nós? Não é o teu sonho Ser um dia invisível? – Terra! Invisível! Que missão impões tu, senão transformação? Terra, amada, eu quero. Oh! Crê, não eram precisas

Mais as tuas primaveras para me conquistar para ti – uma só, Ai, uma única é já de mais para o sangue.

Inominadamente eu te pertenço, resoluto, já de longe. Tu tinhas sempre razão, e a tua inspiração santa É a morte confiada.

Olha, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro Diminuem...Supernumerosa existência

Me brota no coração.

(RILKE, trad. Paulo Quintela, p. 221-222)

Muitos anos mais tarde, mais um presente87: outra edição, desta vez bilíngue, a tradutora é Maria Teresa Dias Furtado, também portuguesa.

86 Com a dedicatória (então completava 32 anos): 1984 deveria ser o ano do Big Brother,

no entanto a minha bonequinha continua perdida na busca da poesia e de uma verdade que enquanto tiver gente como ela nunca estará perdida

Mamãe

87 Com a seguinte dedicatória, pois ele, estudante de Geografia, retornava do Porto, Portugal: É um prazer revê-la Monique, gosto sempre muito da sua presença por perto!

Um beijo cheio de carinho, Felipe

Vejamos como soa para ela o final da Nona Elegia, tendo em vista o original em alemão:

Siehe, ich lebe. Woraus? Weder Kindheit noch Zukunft Werden weniger ... Überzähliges Dasein

Entspringt mi rim Herzen

Olha, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro Passam a ser menos... Uma existência excessiva Para mim jorra, no coração.

(RILKE, 2002, Trad. Maria Teresa Dias Furtado, p. 102-103) Vê, eu vivo. De quê? Nem infância nem futuro

Decrescem ... Uma existência incomensurável Desabrocha-me no coração.

(RILKE, Trad. Emmanuel Carneiro Leão, 1989, p. 197)

Acrescentamos ainda uma terceira versão, desta vez tradução do brasileiro Emmanuel Carneiro Leão. Aquilo que queremos abordar aqui é e não é o problema poético que se coloca para o tradutor. É em um sentido do qual já buscamos nos aproximar em outro momento, em Construtivismo, a poética das

transformações (DEHEINZELIN, 1996): o sentido de que as crianças – e todos nós também – interagimos com os objetos sociais de conhecimento, ou elementos da cultura, em movimentos que ali chamamos de “Tradução e interpretabilidade”. Neste caso, a tradução gera conhecimento. Como? Segundo supomos, isso de dá através das construções individuais que são os coordenadores cognitivos. Para quem não sabe alemão, mas deseja compreender um pouco desta língua, as edições bilíngues referidas acima fornecem mais que indícios, evidências que permitem inferir – por analogias, por ordenações, seriações, algumas palavras em alemão. A partir de uns poucos conhecimentos prévios – tais como o fato de que os substantivos em língua alemã se escrevem com letra maiúscula, e cotejando original e traduções acima, fica fácil inferir um pequeno dicionário:

Herzen – do coração, pois Herz é coração

Kindheit – infância

11/07/10

Zukunft – futuro

Dasein – existência

E também inferimos: ich – eu; lebe – vivo; siehe – olha, vê; Überzähliges – supernumerosa, incomensurável, excessiva, e logo começam a brilhar os problemas semânticos e poéticos – qual dos sinônimos possíveis escolher para

Überzähliges? E então as questões de aliterações e rimas, as lembranças

longínquas que ecoam nos sons... E seu peso, sua existência, seu significado; como por exemplo, o peso das sílabas com vogais u, que ensombrece o futuro – Zukunft, que escurece um beijo “meinem Mund zugrund/ veneno dos meus lábios”, em A Cortesã, aqui na tradução de Augusto de Campos (CAMPOS, 2001). Colocamo-nos então a sonhar – na leitura de poemas – acompanhando o professor Bosi em O ser e o tempo na poesia: “A fantasia e o devaneio são a imaginação movida pelos afetos” (BOSI, 2008, p. 77). Mas, ao mesmo tempo, estamos sempre buscando nos colocar na perspectiva da criança, uma criança que procura dar sentido ao mundo, às palavras e – muito mais que simplesmente a estas – à língua que se fala e que se escreve. E também dar sentido: ao Mundo dos Números – bem disse o físico e escritor Isaac Asimov; aos fenômenos naturais; às oscilações de leite no seio materno; às mudanças de humores de seus pais, e a tudo com o que interagimos, a cada instante de nossa existência.

Neste movimento para compreender as coisas do mundo nos deparamos com os coordenadores cognitivos e com a necessidade de tomarmos consciência deles. Procurando entrever onde e como agem nossos coordenadores cognitivos na leitura de um poema, em O ser e o tempo da

poesia, com propriedade afirma Alfredo Bosi que

a leitura expressiva das palavras poderá ressaltar com vigor as conotações que as penetram; e dar ao sujeito que as profere a sensação de um acordo profundo, um autêntico acorde vivido que fundiria o som do signo e a impressão do objeto (2008, p. 61).

Pois bem, voltemos à experimentação dos coordenadores cognitivos na leitura, tradução e – por que não? – criação de poemas. Nesta aventura, lemos

à noite o poema Nascimento de Vênus88, na edição bilíngue, trad. de Augusto de Campos, e vamos desvendando a enigmática (para nós) língua alemã:

Kindes Hand – mão de uma criança; die kleine Welle – as pequenas ondas;

Fall des Haars – cascata dos cabelos; Scham – sexo e Schwan – cisne. Prosseguimos em Nascimento de Vênus: “die Blumen und die Hälme, warm,

verwirrt,/ flores e caules, quentes, perturbados, wie aus Umarmung/ como num

beijo” (CAMPOS, 2001, p. 100-101). Aqui podemos fazer uma inferência ainda mais elaborada: Umarmung, palavra valise, cor e forma, o som e o sentido, resultando em um – em volta de, arm – braço, ung: Umarmung poderia ser um

Abraçaço, nos termos atuais de Caetano Veloso! Aqui, parece-nos interessante

colocar esta referência de Alfredo Bosi:

É conhecida a experiência do psicólogo Wolfgang Köhler, um dos fundadores da teoria da forma89. Köhler estava interessado em saber se ocorre, na maioria das pessoas, uma ligação entre certas formas visuais e certos sons. Inventou, para isso, duas palavras foneticamente opostas, takete e maluma, e apresentou-as a sujeitos de diferentes línguas junto com duas figuras geometricamente opostas: uma angulosa e outra curvilínea. Perguntou, depois, qual figura poderia ser chamada de takete e qual de maluma.

Boa parte dos sujeitos associou takete à figura angulosa e maluma à figura curvilínea (2008, p. 53).

88 Supomos, sobre o conhecido quadro homônimo (1482) de Sandro Botticelli.

89 Em nota da edição que ora citamos, Cf. W. KÖHLER, Psychologie de La forme, Paris, Gallimard, 1964, p. 224.

Semelhante a maluma, o som de Umarmung também nos parece antes curvilíneo do que anguloso. E isso está de acordo com nossa inferência, pois como poderia ser um abraço anguloso? Mais tarde, recebemos informações90 de que Umarmung realmente pode significar abraço, uma espécie de círculo de braço, o que dá mesmo ao som Umarmung uma grande coerência semântica, ou acorde vivido.

E assim, podemos retornar aos coordenadores cognitivos. Pois na manhã seguinte à leitura, lembramo-nos da palavra, mas não mais onde estava: em que poema, em que assunto – nada, apenas a estranheza diante da inferência realizada à noite, e que de certo modo não corresponde estritamente à verdade, de que beijo em alemão é Umarmung, na tradução de Augusto de Campos. Mas em poesia a verdade está no acerto poético; a palavra some no seio de 182 páginas, como encontrá-la? Começamos por um indício espacial, pois nos lembrávamos de sua localização na mancha gráfica da página. Difícil percorrer as páginas sem mergulhar em sentidos, significados, novos problemas semânticos que se cruzam com os indícios visuais da palavra, com o histórico, a memória de minha leitura. Temos que conter a impaciência, assenhorear-nos de alguma grandeza cognitiva, render-nos à nossa própria pequenez, sem o recurso do “Localizar” que um computador nos proporciona. Então, em um recurso extremo, tomamos a decisão de ir do começo ao fim do livro procurando nos poemas traduzidos a palavra beijo; não conseguimos – nem achar a palavra, nem perseverar neste procedimento. E lembramo-nos do que aprendemos com Lino de Macedo sobre os coordenadores cognitivos, jogando Sudoku: um sim à simultaneidade de eventos.