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Emoção, óptica e perspectiva

8. EXPERIÊNCIA ESTÉTICA (EES)

8.2. Emoção, óptica e perspectiva

Retornando a Reflexões sobre a arte (BOSI, 1986) lemos em sua epígrafe uma citação de Kandinsky, Do espiritual na arte: “Todos os procedimentos são sagrados quando interiormente necessários.” Entretanto, estes procedimentos

não se tornam observáveis se não investigamos, isto é, se não olhamos atentamente para o modo como é realizado o que, uma vez pronto, é chamado de objeto de arte, ou obra de arte. Por que não inquirir o como destes objetos com os próprios artistas? Só a experiência estética possibilita tornar observáveis procedimentos de artistas de outras épocas, gerando conhecimento sobre pinturas, e não um viés histórico-crítico, como intentaremos compreender a seguir.

Alfredo Bosi e Lorenzo Mammì, autores que aqui são nossa referência, mencionam uma ruptura que teria havido na história da arte com a invenção – digamos assim – da perspectiva nas artes visuais por Filippo Brunelleschi (1377-1446). De acordo com Lorenzo Mammì (2012, p. 129), Brunelleschi foi “arquiteto, pintor, escultor e inventor, uma das figuras principais, se não a principal, do primeiro Renascimento florentino”. Em “A perspectiva e o marceneiro gordo”, narrativa saborosíssima, erudita e esclarecedora, Mammì tece o contexto em que se deu uma burla que Brunelleschi aprontou a “um marceneiro especializado em marcheterias e retábulos, que os eruditos modernos identificaram como Manetto di Jacopo Ammannatini, mas que os manuscritos indicam apenas como Manetto, o Gordo, ou o Gordo marceneiro.” (MAMMÌ, 2012, p. 129). Durante três dias, Brunelleschi e um grupo de amigos e colaboradores – na burla e na arte – fizeram crer ao Gordo que ele era outra pessoa; depois quiseram restituir-lhe a identidade, deixando-lhe a dúvida se durante estes dias ele foi ou não “o outro”. Vexado, o marceneiro migrou para Hungria, onde enriqueceu prestando seus serviços. Ora, a hipótese de Mammì, é que o Gordo teria ganhado ou comprado de Brunelleschi as duas pinturas que representam o surgimento da perspectiva, antes que estas pertencessem aos Médici, constantes no inventário de bens de Lorenzo, o Magnífico. Quando Savonarola tomou o poder (1494), as casas dos Médici foram saqueadas, os bens destruídos ou dispersos, incluindo-se talvez os dois retábulos pintados por Brunelleschi. Um antigo funcionário de Lorenzo ficou em Florença para recuperar os bens encontrados, registrando de 1495 a 1497 em um caderninho, que ele próprio chamou de livrinho secreto, a relação dos bens a serem devolvidos. Ali consta a anotação surpreendente: “Um quadrinho pintado com San Giovanni em perspectiva, o qual pegara o Gordo marceneiro (ch’aveva tolto Il Grasso legnaioulo)” (MAMMÌ, 2012, p. 151). Confrontando

datas e documentos, Lorenzo Mammì conclui: “O retábulo do batistério e a burla do Gordo são duas obras primas de Brunelleschi, ambas visando demonstrar que o homem não é uma substância, mas um ponto de vista”. (op. cit., p. 154). No que consistem estes retábulos e porque marcam o surgimento da perspectiva artificialis? Lorenzo Mammì refere:

Manetti97 as descreve em detalhes: a primeira, de tamanho menor, representava o Batistério de São Giovanni como é visto por alguém sentado na entrada de Santa Maria del Fiore. No lugar onde deveria ser pintado o céu, Brunelleschi colocou um espelho. No ponto de fuga praticou um furo, largo como uma moeda no verso do retábulo, mas que afunilava até reduzir-se ao tamanho da menina dos olhos, na abertura do outro lado. Para olhar corretamente a imagem, era preciso colocar um espelho na frente dela e se posicionar do outro lado, olhando para o reflexo pelo buraco praticado no ponto de fuga. A segunda pintura, representando Piazza della Signoria, era mais ampla e mais complexa quanto à imagem, porém mais simples quanto aos procedimentos adotados: a tábua foi recortada na margem superior dos edifícios, e se exigia apenas que fosse colocada contra o céu. Manetti relata que outros artistas tentaram copiar esses retábulos, entre outros Paolo Ucello, mas não com o mesmo sucesso. Pela maneira como descreve as obras, ele devia conhecê-las diretamente. Não indica, porém, onde se encontravam, nem quem era o proprietário (MAMMÌ, 2012, p. 150).

Vemos agora David Hockney em Secret Knowledge98, documentário para televisão produzido pela BBC – British Broadcasting Corporation em 2003, que narra sua grande aventura na pesquisa de indícios do uso de instrumentos ópticos na pintura, desde o século XV. Ele está em Florença, sentado na entrada de Santa Maria Dei Fiori, exatamente onde Brunelleschi pode ter se sentado; esboça, com o uso de espelhos, um desenho do Batistério de São Giovanni99, tal como constaria no pequeno retábulo que pertenceu ao Gordo

97 Na Vida de Filippo Brunelleschi, biografia que lhe é atribuída, assim como a novela do Gordo marceneiro que a precede.

98 Disponível em: Parte I - http://vimeo.com/55499124 Parte II - http://vimeo.com/55457332 Acesso em 06 de junho de 2013.

99 Onde se encontram as portas com esculturas em baixo relevo esculpidas por Ghiberti, além daquelas da porta sul realizadas por Andrea Pisano entre 1330 e 1336. Em 1401, a

marceneiro, e nos mostra como a partir da imagem 3D do Batistério tal como a vemos na realidade, e que Brunelleschi representou em 2D, ele teria derivado as linhas para pintar os demais edifícios da praça em perspectiva, na escala como aparece ao olho de um único ponto de vista.

As observações de David Hockney a seguir foram transcritas do documentário Secret Knowledge (BBC, 2003).

Sabemos que em Florença tivemos um ponto de inflexão na realização de imagens; mas como foi concebido? Ele terá visto algo antes? Brunelleschi posicionou-se 2m porta adentro em Santa Maria dei Fiori, lugar preciso onde sabemos Brunelleschi pintou seu retábulo; cedo de manhã o sol está no batistério, mas dentro da igreja está muito escuro, e pode ter funcionado como uma câmera escura. Ele realizou uma pintura em perspectiva – sabemos disto – o espelho realizou a pintura em perspectiva. Brunelleschi era o homem encarregado de cada instrumento, ferramenta disponível em Florença, de toda tecnologia mais recente. Ele construiu o domo de Santa Maria dei Fiori, onde se encontram as mais recentes tecnologias. Então me parece impossível que Brunelleschi não soubesse o que um espelho pode fazer. Ele tinha que saber. Usando um espelho convexo você só pode fazer uma imagem pequena – em torno a 30 cm², mas expandindo as linhas de perspectiva ele podia conseguir o que todo artista quer – um espaço maior e uma pintura maior. Este modo de representar [expandindo as linhas de perspectiva] faz com que você esteja em um ponto fixo – um ponto matemático.

corporação comercial de Calimala abriu uma concorrência para realização das duas portas na face norte. Já se tinha um padrão de medida das placas de bronze, as formelle feitas por Pisano; desta vez o tema proposto foi O sacrifício de Isaac. Ghiberti, com 23 anos de idade, e Brunelleschi com 24, ganharam a concorrência para realizá-las, mas Brunelleschi desistiu – as

formelle de prova de cada um encontram-se hoje no Museu Nacional do Bargello, em Florença.

Neste empreendimento, para o qual recebeu 22 000 florins (200 florins/ ano era dinheiro suficiente para uma vida confortável), Ghiberti contou com colaboradores de peso, como Donatello e Paolo Ucello. O projeto levou 50 anos de sua vida e foi continuado por seu parceiro e filho. Ghiberti e Brunelleschi foram ambos contratados para a construção da cúpula de Santa Maria dei Fiore, alternando-se na função por mais de 30 anos. Ghiberti escreveu uma autobiografia “não mais tarde que 1445, ou talvez nos primeiros meses de 1446, porque Filippo Brunelleschi é mencionando estando vivo – ele morreu em 15 de abril de 1446 – e Guiberti diz que tenciona escrever com ele um tratado de arquitetura” (GOLDSCHEIDER, 1949, p. 19).

Em Bruges pintores como Van Eyck não expandiam as imagens dessa forma, mas realizavam uma colagem de diversos pontos de vista, adicionando as imagens de cerca de 30 cm² obtidas pelo reflexo invertido do espelho côncavo. Adicionando deste modo a imagem de vários espelhos você obtém uma pintura maior, o que faz com que a sintamos mais perto de nós. Ela pode ser considerada uma perspectiva truncada, instável – como nós – nós somos hesitantes, inconstantes. Eu prefiro assim, sem um único ponto de vista matemático, porque eu estou no mundo, não estou fora olhando para ele por uma janela: eu estou dentro100. Na obra prima para o altar de Van Eyck que está em Ghent, com verdes e vermelhos juntos dando esta sensação de profundidade, você se sente perto, e você tem que estar perto para ver todos os detalhes. Esta é ainda uma pintura, mas na sua cabeça uma pintura realmente em movimento.

Fig. 8.1 – A peça para o altar de Jan Van Eyck, 1452

Estranho chamá-los de primitivos; em Bruges e Ghent eles eram muito sofisticados. Van Eyck era um intelectual, teólogo, cientista, não era um mero artesão. Vasari101 o credita como alquimista e inventor da pintura a óleo. Primitivo?

Em toda minha vida sempre fiquei admirado sobre como, no duplo retrato do casal Arnolfini, 1434, ele teria pintado este candelabro.

Fig. 8.2. – Jan Van Eyck, Giovanni Arnolfini e sua mulher, 1434

Em 1435 o livro de Alberti102 descreve um método para desenhar objetos, uma rede ou grade colocada bem em frente ao objeto. Mas é impossível pintar um objeto complexo como é este candelabro a olho nu!

101 Giorgio Vasari, Vidas dos artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Veja-se na nota 12, p. 228, a descrição detalhada dos retábulos de Brunelleschi, da biografia que Manetti escreveu sobre este artista, citada anteriormente.

102Em “A perspectiva e o marceneiro gordo”, Lorenzo Mammì nos indica o contraponto entre Alberti e Manetti: “Manetti, se ele mesmo for o autor, é porta-voz deste grupo. A própria

Vida, como veremos, provavelmente expressa a opinião dos artistas mais próximos a Filippo

sobre o real significado da revolução renascentista – opinião que, segundo a maioria dos comentadores, está em aberto contraste com a leitura oficial, centrada nos escritos latinos de Leon Battista Alberti e endossada pelos Médici. Segundo Alberti, a arte de Brunelleschi, Masaccio, Donatello e Della Robbia marcaria a ressurgência – ou seja, justamente, o

Vemos um espelho côncavo nesta pintura; por que Van Eyck, que em Bruges fazia parte da mesma guilda103 dos fazedores de espelho, não utilizaria um espelho convexo para pintar o retrato dos Arnolfini? Na realidade, ele inaugura o método para fazer isso. O próprio Arnolfini era banqueiro dos Médici e pode muito bem ter levado estes espelhos para Florença, um mercado altamente competitivo, onde depois aparecem vários retratos com candelabros, como se o pessoal dissesse – “faça seu retrato comigo que você leva de quebra um lindo candelabro!”

Caravaggio usa lentes para pintar – quando se tem um equipamento melhor, não se usa mais o anterior! Quando você vê uma projeção como esta

renascimento – de uma virtus artística esquecida por séculos. Já segundo Manetti, representaria o desabrochar pleno de uma arte toscana, que fincava, sim, suas raízes numa tradição clássica de que nunca teria perdido a lembrança, mas que seria, na substância, uma arte nova. Não se trataria então de um renascimento da arte clássica, mas de uma superação de tudo o que fora realizado até então, a partir da pujança de uma tradição local” (MAMMÌ, 2012, p. 132).

103 Importante saber o funcionamento das guildas para compreender o modo de produção das obras de arte (“termo ligado à produção ou troca de objetos materiais”) naquele tempo, e para isso recorremos mais uma vez a Lorenzo Mammì: “na época da burla [do marceneiro gordo], o governo de Florença era oficialmente fundado, havia pelo menos dois séculos, em corporações artesãs ou comerciais (artes). (...) Dante Alighieri, por exemplo, que pertencia à pequena nobreza, não poderia ter sido prior no ano de 1300 se não estivesse filiado à Arte dos Médicos e dos Especieiros. Inicialmente, cada profissão tinha uma organização independente, mas artes mais poderosas acabaram incorporando subgrupos. A dos Médicos e Especieiros incluía os Pintores, que adquiriam dos Especieiros o material para fabricar as cores e compartilhavam o patrono são Lucas, médico e pintor. A Arte da Seda reunia mercadores e fabricantes de vários produtos de luxo, entre eles couraças e joias (Brunelleschi, que foi prior em 1425, era inscrito na Arte da Seda como ourives). No ápice de seu desenvolvimento, em meados do século XIV, a organização florentina das artes incluía sete artes maiores: da Lã, da Seda (as mais poderosas), dos Juízes e Tabeliões, do Câmbio (embora os banqueiros mais ricos preferissem pertencer à Arte da Lã), dos Médicos e Especieiros, da Calimala (mercadores que comerciavam com o exterior, concentrados na rua do mesmo nome) e dos Peleiros. (...) Mesmo quando, como no caso de Dante, essa atividade era fictícia, inscrever-se em uma arte significava filiar-se a um grupo de interesse centrado num fazer (grifo é nosso), e não numa ordem preestabelecida, baseada em ascendências ou fidelidades feudais, ou num sistema de conhecimentos fundado em autoridades” (MAMMÌ, op. cit. p. 137-138).

você se apaixona por esta mágica – capturar o mundo em 3D na superfície bidimensional de uma tela em branco. Para um artista, vê-la é usá-la! Em Baco

doente, 1594, o uso da lente faz a imagem ficar invertida – todo mundo fica canhoto! Nesta época todo mundo é canhoto nas pinturas, até mesmo um macaquinho que levanta a mão! E isso não se via desde Giotto.

Instrumentos óticos não produzem marcas – imagens eram efêmeras até 1839 quando a fotografia foi inventada – por Daguerre na França e Talbot na Inglaterra, quase ao mesmo tempo. A partir daí os agentes químicos podiam congelar a imagem na superfície plana. Até então, o único traço é aquele de um artista que pinta a imagem, e é sua habilidade que tem valor – a sua mão tem controle até quando está dentro da câmera. Depois da invenção da fotografia os artistas não têm mais o monopólio de imagens que você pode chamar de real. A fotografia é vista como início de algo, mas na realidade é o fim: a mão do artista foi substituída por química. Então os artistas começaram a olhar para outro lugar, eles queriam encontrar outras formas de olhar a realidade, modos inéditos de representar o mundo – a falta de jeito retornou à pintura em torno de 1870. Um autorretrato de Van Gogh de 1889 é uma reação contra a fotografia, imagem muito próxima de um Cristo bizantino, que não pode ser considerado real, feito antes de se descobrir instrumentos óticos para realizar pinturas. Cézanne combina a imagem tal como vista por dois olhos: é mais humano! Eu estou interessado em como se faz imagens – é preciso achar a magia na perspectiva mais do que no objeto em si mesmo – e o espaço é parte essencial do conteúdo emocional do quadro: somente no espaço se pode desenvolver a emoção.

Com o advento do cinema e da fotografia a tirania da lente foi completa – torna-se quase impossível ter mais de um ponto de vista.

Hoje uma nova ferramenta chegou – o computador, que nos permite manipular imagens. Manipular significa usar a mão: a mão está de volta na câmera. A fotografia química durou apenas 170 anos, mais ou menos.

Em Florença, Bruges, Ghent e ... Hollywood!104 Os artistas mantinham seus segredos, como mantêm hoje. Mas pense nestas palavras: real, natural, fotográfico, verdadeiro como a vida. Parece que vivemos em uma época arrogante: a ideia de que não há muito a aprender do passado é bastante preocupante. Sabemos mais, de fato, mas esquecemos coisas que eles sabiam no passado. Podemos dizer que ainda vivemos no pesadelo da perspectiva – um ponto de vista único vai sempre restringir nossa percepção. Parece-me que há um grande e lindo mundo ali fora, e estamos nele. Você não quer sair, e ver um espaço mais amplo, uma pintura maior? Eu penso que queremos. Tempos excitantes podem estar à frente.