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8. EXPERIÊNCIA ESTÉTICA (EES)

8.3. Ser e estar na paisagem

Para Hockney, a televisão é como “um túnel que causa um grande retrocesso perceptual”; considerar a “fotografia como lápis da natureza (como o novo meio estava sendo referido nos anos 1840), é uma ideia louca: você precisa de uma mão com o lápis”; e os “historiadores da arte têm pouca proficiência em ver”, enquanto os artistas “eram pessoas visualmente inteligentes105”. Assim como “as maçãs de Cézanne estão ao alcance da mão”, o que conta, para Hockney, é o “senso de imediatismo, de proximidade, de estar bem aí”, “sem bordas” porque “não somos pontos matemáticos, somos uma dimensão (a 5ª?)”; é preciso então experimentar o “espaço como uma sensação” (WESCHLER, 2008, passim).

Depois de sua extensa pesquisa sobre o uso de instrumentos ópticos na pintura, David Hockney retornou à sua terra natal e à pintura de paisagens, em

104 Para este documentário da BBC, Hockney desenhou e construiu em Holywood um cenário de Florença daquela época, onde reproduziu como teriam sido feito pinturas com o uso de espelhos – como o caso do candelabro de Van Eyck, replicado, e pinturas de Caravaggio, neste caso com o uso de lentes.

105Em 1983, Hockney comenta: “Há cerca de 60 anos atrás a maioria das pessoas educadas podiam desenhar com bastante habilidade. O que significa que podiam comunicar a outras pessoas sobre certas experiências em modos específicos. (...) Seus deslumbramentos visuais podiam ser expressos (...) e como este deslumbre os forçou a fazer algo, a compartilhar a experiência, a torná-la vívida para alguém mais.” (WESCHLER, 2008, p. 1).

busca dessa presença – ou experiência estética, em nossos termos – tanto para o pintor, como para o observador. Estar lá, na vida e na obra é, então, exigência e condição. Hockney começou fazendo aquarelas, da e na paisagem. Ora, como sabemos – e ele mesmo observa, aquarela é um dos meios mais difíceis, por ser imediato (requer gestos rápidos, o papel absorvendo a água deixa o pigmento na superfície), indelével (o que se traçou não tem como ser modificado), invertido (o mais claro, obtido com mais água para que sobressaia o branco do papel, vem antes e dá a sensação de mais longe), de modo que a ação tem que ser cuidadosamente planejada e rapidamente executada, captando a sensação. Mas ele sentia falta, na imagem resultante, de um espaço mais amplo. Dedicou-se durante uns meses a bolar um esquema que lhe permitisse realizar telas de grandes dimensões, como aquelas que expôs na Royal Academy, em 2012 e em Londres, onde estudou na juventude106. Mostrando uma destas pinturas, Hockney observa:

Então olhe, veja. Você pode ver as marcas, e você pode ver como, enquanto na aquarela eu estava usando minha mão, e nos primeiros óleos eu usava meu braço, aqui estou pintando dos meus ombros, estou pintando com todo meu corpo. E a própria pintura está se endereçando a você em seu corpo inteiro: é grande o suficiente para fazer isso. Você pode sentir a pintura. E este é o ponto: lá fora no mundo assim como aqui, espaço é sensação (WESCHLER, 2008, p. 212, grifos do autor).

Na trajetória de Hockney, a partir de um início gráfico, com poucas e sombrias cores, o artista – contumaz desenhista – realiza uma transição para pinturas de grandes dimensões, sensoriais, concebidas para imersão do espectador no espaço pictórico. Retratos, flores e plantas, interiores e paisagens, baseados inicialmente em observação e fotografia, e mais tarde na presença do pintor, mostram uma transição da assimilação do mundo exterior,

106 http://www.royalacademy.org.uk/exhibitions/hockney/ Acesso em 24 de junho de 2013.

Aqui vemos Hockney pintando aleia com árvores – outono: http://www.youtube.com/watch?v=UVBYfTr8BRQ

reduzindo sua grandeza às possibilidades já adquiridas do eu interior, à manifestação expressiva, fruto da interação entre o mundo interior e a percepção de fenômenos visíveis. O mundo então é intensamente observado, para não dizer, vivido como experiência estética, sinestésica, encarnada. Em nossa escuta atenta deste pintor, não ouvimos referência à cor, exceção feita à observação que citamos sobre verdes e vermelhos compondo a sensação espacial na peça central para o altar de Van Eyck, aquela que mais desperta sua admiração apaixonada. Mas para nós, a conquista paulatina da cor, tal como realizada por David Hockney, demonstra seu uso como matéria dúctil, aberta, sutil para as sucessivas coordenações que caracterizam a criação em arte. As suas imagens vívidas são testemunho de uma vida bem vivida – uma vida que vale a pena viver.

Quando a pessoa mergulha em algo de corpo e alma inteiros, esquecendo-se do entorno e das obrigações, e simplesmente é, vive uma experiência estética. Nestes raros momentos de felicidade torna-se possível a expressão. Ora, porque aprender com a criança? Porque, devido ao que é próprio de seu pensamento – a simultaneidade entre sentir e agir – a criança coordena suas ações sem que ainda intervenham crítica e autocrítica, guiando- se por suas sensações e afetos, isto é, mobilizada esteticamente. Pois bem, trata-se então, para jovens e adultos, de restaurar as condições da primeira infância em que reside a criação humana.

Hockney coloca-se no lugar de Brunelleschi não para desmistificar seus feitos, mas, ao contrário, para compreendê-los. Quando nos distanciamos da experiência, e nos posicionamos como observadores externos, corremos o risco de emitir juízos de valor, de fazer prevalecer uma ideia preconcebida em detrimento da transformação e da aprendizagem. No documentário Secret

Knowledge, já citado, vemos Hockney na capela Brancacci, em Florença,

cercado dos monumentais afrescos ali pintados por Masaccio, onde comenta deslumbrado: “aqui é tudo muito vivo, a gente sente a presença de todas estas pessoas, vivas e em movimento – quando nos movimentamos pela sala elas se movem conosco. Imagine isso naquela época107, as pessoas vinham aqui e

tinham uma experiência... como hoje podemos ter em um filme 3D, num filme da Disney”.

Bem diversa é a posição histórica do crítico Giulio Carlo Argan:

Temos quase a impressão que o artista deu pouca importância às suas figuras enquanto figuras No modo como são apresentadas, não vemos uma busca de elegância e graça; o que ele [Masaccio] busca e consegue é um efeito de poder maciço e composição arquiteturalmente ordenada. Nenhuma atitude ou expressão do rosto estão conforme algum modelo tradicional de beleza; por outro lado, o caimento do manto tem a solidez, a força de sustentação das vigas do domo da catedral, enquanto as curvas da boca da Virgem e pupilas forçam o efeito plástico de volume. Este efeito de uma massa sólida, cujo peso é tomado pelo movimento elevado de sua própria estrutura, é a transposição em termos da figura humana das linhas ideais de força no domo de Brunelleschi (ARGAN, 1955, p. 88).

Argan comenta que ninguém pode culpar Masaccio por ter colocado uma camponesa para posar como Madona, o que, de acordo com o crítico, corresponde a uma nova atitude moral, baseada em uma nova concepção do homem, intelectual, racional, que, inaugurada pelas concepções espaciais de Brunelleschi – a perspectiva como lugar matemático – estaria na base da cultura Renascentista. Hockney, que quer compreender como Masaccio pintou as figuras (e não o que elas representam), mostra que ele usou espelhos convexos e por isso precisava caracterizar uma pessoa que aceitasse posar como Madona. Em várias pinturas vemos uma mesma pessoa posando como personagens diversos – não havia muitas pessoas dispostas a ficar longo tempo imóveis sob o sol!

Bem, a nosso ver, quando, seja arte ou na vida, nos afastamos do plano

procedimental, que constitui “a elegância e graça”, um “manto com a solidez e a força de sustentação das vigas do domo da catedral”, e “curvas da boca e pupilas” que “forçam o efeito plástico de volume”, acabamos por idealizar uma estrutura arquitetônica (realizada por outro! neste caso Brunelleschi) em mantos, boca e olhos108 que compõem uma figura pintada – pois trata-se dos

108 Nas figuras de Masaccio, Hockney vislumbrou sua realização com o uso de espelhos. De Secret Knowledge, transcrevemos o que o que se segue – A chave foi: sol no rosto, e o

afrescos da capela Brancacci de pinturas. Podemos então emitir juízos ou julgamentos, pautar nossa observação em sistemas de ideias, em conceitos prévios à experiência (os preconceitos), o que nos exime do compromisso de estar presentes, implicados subjetivamente, na fruição.

Encontramos no “Posfácio – uma revisão (1933)” que Heinrich Wölfflin escreveu para seu livro Conceitos fundamentais da história da arte109:

Um outro caso: quando Frans Hals ou Velásquez, em seus retratos, substituem o desenho estático de Holbein pelo desenho oscilante, vibrátil, podemos supor que esse novo estilo decorre da nova concepção do homem, segundo a qual está essência está no movimento, e não mais na forma estável (1989, p. 268).

Embora Wölfflin se refira em seu estudo a aspectos ópticos da imagem, é possível que não lhe tivesse ocorrido que Frans Hals e Velásquez tivessem usado espelhos que possibilitaram o “desenho oscilante, vibrátil” que constituiu um novo estilo. Enquanto David Hockney, em O conhecimento secreto redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres, investiga como estes

retratos foram feitos e sugere, também neste caso, o uso de uma base óptica para que as pinturas captem e transmitam instantes do homem que emergem da tela, para nós, como vivos e presentes.

Na introdução à edição brasileira de História da arte italiana, de Argan, Lorenzo Mammì nos esclarece:

É nesta chave (da arte irmanada com a história) que devem ser lidos os três volumes da História da arte italiana, mais Arte Moderna, um conjunto que é a obra de maior fôlego empreendida por Argan: a defesa da espessura do tempo, como ciência europeia, em oposição à potência do presente, como técnica americana. (MAMMÌ, 2012, p. 208).

Tendo nos esclarecido na página anterior que para Argan “não apenas a arte há de ser abordada com instrumentos da história – a própria produção

olhar luminoso – vejam as sombras na íris; eles estavam posando em uma luz muito forte – o sol.

109 A primeira edição deste importante estudo, dedicado às mudanças de estilo solidárias a mudanças de concepção visual, é de 1915.

artística é uma atividade que estabelece com a história laços de complementaridade e afinidade”, e que “ambas são atividades reflexivas, ou críticas, que têm como objeto o valor da ação humana”, Lorenzo Mammì segue argumentando:

No entanto, a história é por sua natureza teleológica, projeta-se para o futuro, mesmo quando renega, em superfície, a ideia de progresso. Fundamento da arte, ao contrário, é o retorno do passado, mesmo quando o passado age em negativo, como acontece em algumas das vanguardas históricas. Retorno do antigo, retorno do primitivo, retorno do recalcado – temps retrouvé, de Proust, em oposição (aqui o objetivo polêmico de Argan se torna claro) à Art as experience, de Dewey: a arte é retorno justamente porque é permanência, porque se opõe ao fluxo da história entendida como um contínuo “mais além”. (op. cit., 2012, p. 207)

Quanto a nós, temos esperança de ter conseguido demonstrar que as crianças, que nos constituem e representam, vivem “a potência do presente”. E assim passamos à Arte como experiência de Dewey, ressalvando que este autor, sim, americano, não inclui a criança em suas considerações sobre arte, artistas e trabalho artístico.