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9. PESQUISA

9.1. Linguagem sensitiva

Alex (5; 5) Bianca (1;6) Pedro (5;7)

Fig. 9.1. – Pinturas de crianças, Casa do Aprender, Osasco, São Paulo, 2001

O trabalho atual originou-se de um anterior, conforme descrito no capítulo 4. Em maio e junho de 2001 (portanto 70 anos depois que Dewey realizou as dez conferências em Harvard) propusemos atividades de pintura às crianças, de idades entre um ano e meio a cinco anos de idade, na creche Casa do Aprender, em Osasco, SP. Com uma proposta de pesquisa “Como as crianças pintam?” 112, utilizamos materiais que possibilitam combinar os elementos da

linguagem sensitiva: densidade, textura, movimento, gesto, cor, traço, linha, tal como propostos por Michinori Inagaki. O material obtido em 2001, de extraordinária riqueza, segue nos inspirando e certamente está na origem do presente trabalho de investigação113, realizado em 2010.

Buscando “recuperar a continuidade da experiência estética com os processos normais do viver” que é para Dewey (2010, p. 70) a natureza central do problema, focamos no trabalho com as cores, que nos afetam visualmente nas mais variadas circunstâncias da vida. As pinturas foram feitas com tinta guache, disponibilizando para cada criança as três cores primárias, azul ciano,

112 Como parte do processo de formação das educadoras da creche Casa do Aprender, em Osasco, SP, para o Instituto Avisa Lá. Comentários sobre esta experiência encontram-se na entrevista http://www.trapezio.org.br/informativo/info2/entrevista.htm. Acesso em 7 de julho de 2013.

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A pesquisa em 2001 está publicada também na entrevista “A impressionante disciplina de trabalho em pinturas de crianças pequenas”, na revista Avisa Lá número 10, abril de 2002.

magenta e amarelo, ¼ de folha de cartolina branca, um pincel chato grande, um pincel chato pequeno, pote de água para lavar o pincel e papel para enxugá-lo. Trabalhar apenas com as cores primárias é considerar a natureza do fenômeno cor, daí a possibilidade de continuidade entre vida e experiência estética: problematizar o fenômeno em sua origem.

Em 2001 aprendemos muito com uma sequencia de pinturas de Wesley referidas no capítulo anterior (fig. 8.3); até que ele repetisse, enquanto pintava, “eu quero um escuro para mim”, estávamos interpretando sua produção como garatuja circular, garatuja circular nomeada e pré esquema – “é uma coruja”, ele disse, de acordo com a descrição de Lowenfeld (1976). Mas o escuro para mim denota afeto e sensação, mostrando que ele pinta balizado por esta (o escuro) mobilização estética. Seguem-se procedimentos coerentes para se obter o mais escuro possível com as três cores primárias; e quando tem êxito no que buscava, põe-se a dançar e a cantar em torno a mesa com seu escuro pintado no papel, feliz.

Driblando maior planejamento, na realidade as coisas se precipitaram e aconteceram intensamente; não havia tempo para reflexões e devaneios, era tudo rápido e verdadeiro, premido, pressionado, conduzido pelo desejo das crianças, que de tudo fazem uma experiência intensa.

As crianças, tão interessadas e imersas no assunto! Concentradas, cooperativas e envolvidas. Como um dos muitos exemplos de crianças (trabalhamos em turmas com cerca de vinte crianças em cada uma), Ala (4;8), que neste dia estava sentado à nossa esquerda, pintava, com um carinho, uma atenção, um visível prazer; misturando as tintas em sua própria pintura, foi descobrindo nuances de tons de verde – um pintor, em um trabalho consciencioso e aplicado que ele levou até o fim(fig. 9.1.2).

Modos, procedimentos, jeitos de pintar sempre diferentes: a criança é um pesquisador. Alan, aos quatro anos, tira partido da tinta guache para constelar um universo próprio – movimento, dança cósmica. A pincelada roxa, vinda de cima pra baixo, que enfeixa o buquê planetário – acompanhemos com o olhar a curvatura sutil dela, um gesto superior.

Fig. 9.2– Ala (4;2)

De onde vem esta busca e esta coerência? Assim como se sente frio ou calor, fome ou barriga cheia, existe uma sensibilidade para a cor e para sentir a espacialidade e existência das coisas. Pintar é usar a linguagem sensitiva (composta, como vimos, de densidade, cor, gesto, movimento, textura e traço) para expressar estas sensações, que são, portanto, muito objetivas; diferentes formas de sentir e de expressar estas sensações são o que vemos nestas pinturas das crianças, tão diferentes umas das outras. Por exemplo, Mar (4;6), com a maior delicadeza, fazia longas pinceladas, ao mesmo tempo de extrema leveza e segurança, que começavam no jornal que cobria a mesa, passavam por toda a extensão do papel e continuavam no jornal do outro lado, acabando por compor, no papel, uma espécie de cesto de cores (fig. 9.3).

Os pequenos, entre um ano e meio e dois anos de idade, pintavam em silêncio, quatro crianças em duas mesas colocadas no sol cálido do primeiro dia de inverno. Sérios, concentrados e limpíssimos – cuidadosos no uso do material, a forma como Bia (1;7) segurava o pincel, por exemplo (fig. 9.4).

Fig. 9.4 – Pintura de Bia (1;6)

Às vezes se distraem com o entorno, às vezes é como se o mundo todo estivesse ali, dependesse daquele cantinho de papel que estão pintando de magenta, o corpo todo a serviço desta atividade Assim foi na pintura da Sab (1;6); a noção dela de uso do espaço é expressiva, assim como o uso intencional de gesto e movimento (Fig. 8.4). E na delicadeza de seus gestos – por exemplo, segurando o canto da mesa com a mão esquerda enquanto pintava com a direita, começou a balançar o corpo no mesmo ritmo em que a mesa estava balançando – porque um dos pés estava em falso. Então colocamos um calço na mesa, mas talvez não devêssemos tê-lo feito, porque pode ser que ela estivesse investigando com seus movimentos a coordenação espaço da mesa/ espaço do papel, para abranger ambos; é possível pensarmos também nas coordenações espaço temporais, das quais movimento e ritmo são resultantes.

As meninas presentes não misturavam as cores nos potes de vidro onde colocamos cada uma das três cores. Diríamos que para elas a coordenação entre o que está acontecendo no papel e o olhar é uma conquista: Sab olhava atenta e inquisitivamente para o pincel – observando de frente a parte com pelos – como quem se perguntasse se tudo não estaria saindo do próprio pincel. Essa combinação de concentração e entrega total com não consciência

(será?) das próprias ações é intrigante. Em que medida o que resulta no papel sensibiliza a eles próprios? Existe um fascínio, um profundo mistério na materialidade da tinta e da cor: como fica no jornal – quando vai parar lá por acaso, como fica nos dedinhos. Com Bia, as suas mãozinhas se abrem e fecham, os dedos da mão esquerda alisam um ao outro em gestos experimentais, miméticos – parecem que tentam reproduzir sensações – dos gestos da pintura que a mão direita realiza. São estes gestos que resultam no ritmo das imagens que vemos surgir.

As crianças ficam muito sérias, a situação é de gravidade e torna-se para nós uma situação muito emocionante de estar junto. E assim se encerrou um ciclo — das crianças maiores para as menores na Casa do Aprender. O que vimos com as menores contraria frontalmente o senso comum – é como se elas soubessem todo o fundamento da pintura, algo que depois vamos perdendo, apenas. Tudo que sabemos sobre o desenho e a pintura de crianças foi para nós completamente revolucionado, talvez porque tenha sido possível, finalmente, nos colocar mais na perspectiva da criança. Uma revolução copernicana de passagem do ponto de vista do consumidor (externo) para o do autor (interno), do produto para o processo, para as paulatinas interações entre objeto e o sujeito.