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Sentir e agir, a dinâmica da criação

7. COORDENADORES COGNITIVOS (COO)

7.1. Sentir e agir, a dinâmica da criação

Por que negamos inteligência onde ela emerge com mais força? Na criança, isto é, em nós mesmos, a inteligência emerge naquilo que nos constitui, a intimidade sem divórcio entre sentir e agir, na dinâmica da criação. Temos organismos sensíveis. A nossa sensibilidade, entretanto – talvez à diferença de outros mamíferos – é ao mesmo tempo natural e lógica. De fato, até os dois anos de vida a nossa inteligência é sensório-motora: sentir e agir resultam em pensamento sincrético, a criança procura articular parte e todo. Um pensamento sincrético pode ser resumido no verso de Arnaldo Antunes “tudo ao mesmo tempo agora”; é um modo de sentir e agir que não espera, que não retarda, não admite separação entre afeto e realização. A inteligência sensório-motora é essencialmente prática, busca resultados favoráveis e não verdades prontas. Apoia-se em sensações, percepções e afetos que geram movimentos, isto é, em uma coordenação sensório-motora das ações, sem que ainda intervenham representações ou pensamentos.

São movimentos de atribuição sensível aos fenômenos que acabam por organizar o real. Fragmentos dos fenômenos mobilizam a criança, por afeto, e esta sua percepção sensível imediata é, desde sempre, imagem motora: desencadeia movimentos corporais e cognitivos, internos e externos, levando a necessidades de representação e expressão. O afeto, sensação imediata e subjetiva, implica relação entre uma pessoa e outra, ou a pessoa e aspectos de

82 Parte do capítulo homônimo em Conhecimento de si, conhecimento do mundo,

algum fenômeno com o qual esta interage. É nosso organismo sede das emoções que desencadeiam ações endógenas e exógenas, como por exemplo, arrepiar-se e dar um pulo para trás diante de uma cobra. Movimentos endógenos: o que acontece internamente quando assimilamos um objeto à nossa maneira de ser; o que se passa dentro de nós como modos de sentir, de agir e de compreender o mundo. Movimentos exógenos: como procedemos externamente buscando nos acomodar às características e relações entre os objetos, ao modo de ser e de agir das outras pessoas, e também de animais, no caso de nosso exemplo, e por que não? Do Homem de Lascaux.

Podemos tomar consciência do ocorrido, quando então já estará em nós uma espécie de mapeamento da emoção como um sentimento do medo. E os sentimentos regulam a ação, seu movimento, as interações entre o de dentro e o de fora, o endógeno e o exógeno. Nosso organismo tende ao equilíbrio, busca encontrá-lo, e para isso regula as ações. Aos sentimentos correspondem consciência de emoções corporais, como alterações do corpo e estados alterados de recursos cognitivos. Enquanto as emoções são instáveis, passageiras, os sentimentos perduram, inscritos em nós. Compreende-se assim, nesta interseção entre neurobiologia e psicologia83, como diante de contínuas mudanças e da necessidade biológica de estabelecer novos equilíbrios somos levados por afetos, emoções e sentimentos a criar representações, a perceber a si próprio. A própria consciência de si é construída a partir de uma imagem do corpo que decorre de sensações84. Caso

83 Veja-se, por exemplo, a noção de autopoiese de Francisco Varela e Humberto Maturana, mencionada anteriormente.

84 Ainda na fértil interseção entre neurobiologia e psicologia, António Damásio demonstra como os “sentimentos primordiais são um tipo especial de imagem gerado graças a essa interação obrigatória entre corpo e cérebro que em momento algum está separado do corpo. Assim, os sentimentos primordiais são um tipo especial de imagem gerado graças a essa interação obrigatória entre corpo e cérebro, às características da circuitaria que faz a conexão e possivelmente a certas propriedades dos neurônios. Não basta dizer que os sentimentos são sentidos porque mapeiam o corpo. Minha hipótese é que, além de ter uma relação única com o corpo, o mecanismo do tronco cerebral responsável pela produção dos tipos de imagens que denominamos sentimentos é capaz de mesclar com grande refinamento os sinais do corpo e, assim, criar estados complexos com as especiais e revolucionárias propriedades dos sentimentos, em vez de, servilmente, apenas produzir mapas do corpo. A razão de também

as imposições externas, as forças do movimento exógeno, prevaleçam sobre os conteúdos internos, os movimentos endógenos que nos definem a cada momento, temos um corpo que é negligenciado, que se encontra privado da própria ação inteligente diante do mundo. Em nossos termos, alguém que não consegue se expressar, uma vez que sua dinâmica sensório-motora é sustada, e que, com dor e nostalgia, observa como que ausente o horizonte da criação, da aprendizagem e do conhecimento afastar-se para bem longe de si. Então poderia haver a sutura de uma possível ruptura85 entre corpo e alma que nos

caracterizaria, se nos dispusermos a reaver, enriquecer, diferenciar e continuamente transformar nossa inteligência sensório-motora.

É imenso, portanto, o patrimônio legado pela nossa primeira infância aos anos que estão por vir. Pois se persistíssemos em nossas ações sensório- motoras, incluindo-as nas aquisições posteriores, regularíamos esteticamente nossas ações na busca de equilíbrio, o que nos habilita e nos torna competentes para enfrentar as incessantes mudanças da vida. Afetos, emoções e sentimentos, ao mesmo tempo, desencadeiam ações internas e externas e são transformados por estas ações, o que nos habilita a dizer que as ações transformadoras têm sempre uma mobilização estética. Durante o período sensório-motor, esta mobilização estética possibilita a sobrevivência e uma gama extraordinária de aprendizagens que constituem, simultaneamente, conhecimento de si próprio e conhecimento do mundo. É a dinâmica deste movimento entre o mundo interno e o externo que a nosso ver está na origem da criação de todo conhecimento. E a nossa mobilização estética a mola propulsora deste movimento, e principalmente, o seu regulador.