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Preliminares na Casa do Aprender

4. COR (COR)

4.1. Preliminares na Casa do Aprender

A equipe da creche Casa do Aprender nos abrigou em dois momentos: um em 2001, como integrantes da equipe de professoras do Instituto Avisa Lá, em São Paulo51, o outro em 2011, inspirado pela experiência anterior, que foi parte fundamental da presente pesquisa. Em 2001, propusemos duas atividades a cada uma das crianças de todas as turmas da creche, com idades entre 1 a 5 anos. A primeira atividade era pintar com as três cores primárias: azul ciano, magenta e amarelo; a segunda, usar o mesmo material acrescido de cola branca e areia, com o objetivo de problematizar a textura. As observações que se seguem foram publicadas no Facebook, recurso que, a nosso ver, pode ser rico e esclarecedor quando compartilhamos pensamentos e sentimentos: uma espécie de caverna eletrônica, textos, sons, e imagens digitalizados – guardados como números.

Na creche Casa do Aprender, em Osasco, SP, 2001, Uliana era a menina mais velha, com cerca de seis anos, a mais alta das crianças e muito linda. Recebia-me na porta e me apresentava a tudo e a todos. Pintava em minutos e sem nenhum interesse corações monocromáticos aprisionados. Mas, um dia,

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Publicado como “A impressionante disciplina de trabalho em pinturas de crianças pequenas”, in revista Avisalá número 10, abril de 2002.

ofereci cola e areia, além da saudosa guache Gato Preto azul ciano, magenta e amarelo. Ela tentou fazer um coração, mas a meleca na ponta do pincel impediu a repetição da forma. Então ficou totalmente absorta, pesquisando cores, desimpedida de formas, começou a pintar! Depois desta mandala explosão, uma sobriedade nas cores, pungente, Uliana disse que nunca mais ia ficar sem pintar.

Fig. 4.1 – Uliana (6;0). Sequência de pinturas. Osasco, Casa do Aprender, 2001. Nesta pintura [fig. 4.2] com guache nas cores CMYK - azul ciano, magenta (a maravilhosa vilã da novela Avenida Brasil outro dia queria vestir uma blusa ma- gen-ta!) e amarelo, Pedro, quando tinha cerca de cinco anos, alcança alto grau de eloquência. As cores que ele cria a partir das primárias são copiosas e variadas – e ele ainda tem a delicadeza de deixar uma janela para cada uma das primárias puras. Falei para ele: Pedro, você é um pintor. E ele: Eu sei.

Fig. 4.2. – Pedro (5;2). Osasco, Casa do Aprender, 2001.

A próxima postagem no Facebook já corresponde ao trabalho atual, pinturas realizadas em 2010, de modo que o Pedro autor do cinema– transatlântico na figura abaixo (fig. 4.3), e protagonista do vídeo que acompanha nosso trabalho (aqui referido como Ped), não é o mesmo autor da pintura acima.

Essa é uma impressionante e mais que singela pintura do Pedro, que aos quatro anos frequentava a creche Casa do Aprender. É feita com guache azul ciano, preta e branca em gradações que dão o volume – e se bem me lembro, ele veio do mais escuro para o mais claro – a sua referência é o branco do papel. Disse o Pedro: tô fazendo um cinema! Entretanto passado um tempo vi na imagem um transatlântico, só umas cabecinhas dos passageiros entrevistas lá em cima. Se eu tivesse agora a sutileza do Pedro (que ele demonstrou também em várias outras pinturas) estaria à altura do Pedro e de todas as crianças – comemorando o DIA DAS CRIANÇAS!

Fig. 4.3. – Ped (5;3). Osasco, Casa do Aprender, 2010.

O primeiro momento com as crianças na Casa do Aprender, em Osasco, 2001, abriu um imenso universo de possibilidades: brincando com as cores, as crianças nos revelavam o segredo da criação, a gênese da pintura no trabalho autorregulado e disciplinado: cor, ritmo do gesto com pincel, fluidez da tinta com mais ou menos água, implantação da imagem no branco do papel por coordenações cognitivas sucessivas e simultâneas e finalmente o entregar-se à experiência estética, como no caso de Uliana que mencionamos acima. Pedro, realizador da pintura com as janelas abertas a cada uma das três cores primárias, mostrou nas demais atividades que é de fato um pintor, sabedor do trabalho que dá para sê-lo. Em uma de suas pinturas deixou uma janela para – viemos a sabê-lo com o resultado – uma determinada qualidade de cinza que ele buscava. Em um copinho descartável de café, misturou pouco a pouco, temperando-as, as três cores primárias disponíveis. Estando a mesa forrada de jornal, ele experimentava a cor obtida traçando amostras no jornal, próximas à janela em aberto; afastava-se da mesa fechando um dos olhos para observar o resultado, retornava e acrescentava à mistura o que julgava necessário. Como resultasse demasiado escuro, pediu-me tinta branca, de que felizmente dispunha. Este procedimento durou um bom tempo, ao menos meia hora, e é bom lembrar-nos que Pedro tinha cerca de 4 anos e meio de idade naquele momento. Um dos fatores que nos levaram à presente pesquisa foi o tempo de

concentração das crianças. Nós, educadoras, aprendemos ser curto o tempo de concentração em crianças pequenas, mas nos casos de crianças mergulhadas em sua própria experiência estética, ele se revelou surpreendentemente longo, em torno de quarenta minutos, uma verdadeira absorção na própria atividade. Quando Pedro deu os trâmites por findos, vemos que naquela pequena janela não poderia estar outra cor senão aquele cinza cuidadosamente obtido: este deu à pintura a sua unidade, funcionou como coordenador de envolvimento para que Pedro ficasse satisfeito com seu quadro. Ora, não podemos supor uma intenção (como no caso de um colega de Pedro, Wesley, que dizia: eu quero um escuro para mim!52); tampouco podemos afirmar que seu trabalho é fruto do acaso. Pela observação dos procedimentos de Pedro, buscamos pesquisar como nos afetamos e como nos expressamos pela cor. Em seus procedimentos com a cor – pintar/ combinar/ retocar/ misturar/ criar tonalidades/ relacionar, vemos Pedro articulando um jogo de exercício – repetição/ prazer funcional/ exploração lúdica, e um jogo simbólico – criação e atribuição de sentido a uma imagem. Em síntese, participamos com Pedro de uma experiência estética.

Sendo a cor um fenômeno fugidio, que exige percepção de gamas infinitas, nos pareceu possível articular sensibilidade às cores, ou mobilização estética na pintura, com gênese de conhecimentos, procurando responder à pergunta: como algo ganha existência? Neste caso, imagens pintadas: como, em superfícies das cavernas, em espaços de luz (veja-se a seguir trabalhos de James Turrell), em telas ou na cartolina branca (suporte oferecido às crianças), combinando cores com a leveza e o peso de seus gestos, como são construídas as imagens?

Durante dez anos, andamos com pinturas das crianças da Casa do Aprender debaixo do braço. Em primeiro lugar, com as educadoras da Casa, toda a produção de seus alunos espalhada pelo chão, para que em uma longa e produtiva conversa víssemos, ou melhor, se tornasse observável para nós, a conduta das crianças. Uliana, por exemplo, libertou-se de uma forma já conquistada – um coração, estereótipo que literalmente a aprisionava, apenas pela oposição que cola e areia colocaram à sua ação estagnada. Diversidade

de ações resulta em trabalhos que expressam o modo de ser de cada criança, em uma mesma faixa etária, ao passo que pinturas prontas de acordo com o estereótipo – céu azul, casa, árvore e sol sorridente no canto esquerdo do papel – não nos deixam entrever seus autores. Crianças de aproximadamente 1 ano e meio de idade se lançam em gestos como pesquisadoras de cores e água, o material oferecido. Durante um longo tempo, produzem séries de três trabalhos, em que tampouco podemos falar de intenção ou acaso, mas de experiência estética.

Depois deste primeiro momento, mostramos a produção das crianças em âmbitos de formação de educadores, e outras crianças produziram pinturas a partir das três cores primárias – individualmente, como Alex, que anima a epígrafe deste capítulo, ou coletivamente, na creche central da USP, onde estivemos pesquisando com Lino de Macedo (2003), entre outras situações. Com um grupo de gestoras da cidade de Campinas, no curso Nossa

mobilização estética e a educação infantil, em 2006, partimos da realização de

tabelas de cores a partir das cores primárias e chegamos à elaboração de uma estrutura curricular, que intitulamos currículo Gandhi:

UMA ESTRUTURA CURRICULAR PARA EDUCAÇÃO INFANTIL Mobilização inicial (a partir do indivíduo) Prática Ação transformadora (individual)

Procedimentos gerados na ação (compartilháveis entre os indivíduos) Conteúdos expressos (coletivos)

Conhecimentos aprendidos (individuais e coletivos) Teoria Mantendo-se a coerência, este currículo é reversível:

Conhecimentos aprendidos (individuais e coletivos) Teoria Conteúdos expressos (coletivos)

Procedimentos gerados na ação (compartilháveis entre os indivíduos) Ação transformadora (individual)

Mobilização inicial (do indivíduo) Prática Os procedimentos, isto é, os nossos comos, dão origem, criam algo e por isso são o espelho entre teoria e prática e única garantia de reversibilidade do sistema criado (DEHEINZELIN, 2012, p. 197, no prelo).

Acreditamos que esta estrutura curricular poderá servir mais adiante, se pensarmos em desdobramentos de uma possível didática em base estética. Por enquanto, avancemos um pouco mais em nossas considerações sobre cor.