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5.1 Manifestações de segregação

5.1.1 Costumes e Crenças

Os chineses admitem a existência de espíritos visíveis e invisíveis e são os exorcistas, possuidores de grandes poderes, que orientam as vontades dos espíritos ocultos e imperceptíveis, assim, “não é de admirar que os feiticeiros gozem de certa consideração no meio social chinês e que a magia seja respeitada e mesmo venerada”319.

Luís Gonzaga Gomes afirma o seguinte:

“[O]receio pelo desconhecido futuro e a premente inquietação provocada pela incerteza de um destino imprevisível vieram compelir o género humano a condicionar todas as suas acções segundo determinadas crenças, criando-se assim as superstições e a prática das mais absurdas e despicientes observâncias, destinadas a tentar desviar ilusoriamente o curso do destino ou a interromper a marcha de inevitáveis fatalidades”320.

O Homem desde sempre acreditou em fenómenos considerados sobrenaturais e estava (ou está) convicto que as suas acções eram submetidas a influências misteriosas. Neste sentido, as convicções e superstições chinesas, não são excepção.

O Eco Macaense referia uma série de crenças religiosas que merecem ser destacadas.

Os redactores deste semanário afirmavam “que em Macau os chinas mantem a mais completa indifferença a respeito da religião”321. Esta constatação apenas tem fundamento, quando os articulistas restringiam a

319 GOMES, 1994: 153. 320 GOMES, 1994 b: 149. 321 EM 14.08.1895, p. 1

religião àquela que era praticada pelos católicos. Esta atitude demonstrava uma ideia eurocêntrica do mundo.

A propósito de uma procissão promovida pelos comerciantes chineses para invocarem a protecção dos seus deuses, a fim de que estes fizessem cessar as doenças que têm afectado os chineses, o periódico fazia este comentário: “Quanto dinheiro desperdiça essa pobre gente, que, aferrada ás suas costumeiras e superstições, não quer ainda abrir os olhos á luz brilhante do Christianismo!"322.

Percebe-se que havia uma dicotomia de valores religiosos demonstrada pelos redactores do Eco Macaense quando, perante acções de gratidão, demonstradas pela comunidade católica (portuguesa e chinesa), por a cidade ter ficado livre da peste bubónica, teciam elogios; em contrapartida, revelavam insensibilidade e menosprezo pelas práticas religiosas dos chineses.

As preces dos chineses, porque diferentes do Cristianismo, seriam uma perda de tempo e dinheiro, os seus costumes e superstições não teriam valor e a sua fé era desconsiderada, quando comparadas com as práticas religiosas católicas.

O Eco Macaense constatava que “toda a manifestação de regosijo da parte dos chinas consiste na bulha de bategas, de tambores e de panchões, o que ás vezes tem seus inconvenientes, como por exemplo, interromper os serviços das repartições publicas"323.

“Visita d’um Ídolo” é com este título que surge no Eco Macaense uma notícia dando conta da passagem de um ídolo pelas ruas da cidade, a convite dos chineses mais devotos, devido às febres bubónicas. Este indivíduo era um milagroso que vinha a Macau “expulsar os máos espiritos que estam causando algumas mortes entre elles [chineses]"324. Este “milagroso” foi levado em procissão silenciosa, pelas ruas da cidade, porque os chineses acreditavam que o fim da peste, em Hong Kong e Cantão, no ano anterior, se ficara a dever à visita deste ídolo. Diziam os redactores do jornal que todos os indícios apontavam para a redução da febre, o que ia ser aproveitado pelos chineses, atribuindo esta circunstancia à visita do milagroso ídolo, e por isso, iriam

322 EM 06.03.1895, p. 3 323 EM 21.08.1898, p. 3 324 EM 01.05.1895, p. 4

continuar a não se preocupar com a higiene das suas habitações e do seu vestuário.

As acções religiosas praticadas pelos chineses eram identificadas com idolatria, acto criticado e subvalorizado pelos redactores.

Os chineses acreditam em espíritos visíveis e invisíveis e são os exorcistas, possuidores de grandes poderes, que orientam as vontades dos espíritos ocultos e imperceptíveis, assim, “não é de admirar que os feiticeiros gozem de certa consideração no meio social chinês e que a magia seja respeitada e mesmo venerada”325.

Sobre a geomância e veneração dos antepassados praticada pelos chineses o Eco Macaense publicava este comentário:

"Em Macau, a remoção de cadaveres chinezes suscitou sempre desordens e conflitos, queixas e amofinações sem fim, porque ha uma crença profunda entre os chinas ácerca dos ossos dos seus antepassados, de modo que são muito melindrosos a este respeito. Elles crêem que taes ossos devem ser consevados e collocados em certos e determinados logares para evitar futuras desgraças para os descendentes. Ha na mente dos chinas uma ligação intima entre conservação dos ossos dos finados, e as esperanças e ambições dos vivos, e por isso os chinas fazem todos os sacrificios para evitar a dispersão e a profanação dos ossos dos seus antepassados, tanto assim que, embora morram os chinas lá muito longe da patria, sempre hão de fazer remover os cadaveres para as suas aldeias a fim de alli serem collocados em logares escolhidos pelos geomantes, porque pensam que da conservação dos ossos dos antepassados depende a futura prosperidade dos descendentes. (...) É uma crença deslocada e louca, mas muito arreigada"326.

Os chineses eram representados como fanáticos, porque segundo os valores religiosos ocidentais, o Fong Shoi, ou seja, a geomância, era uma

325 GOMES, 1994: 153. 326 EM 17.07.1895, p. 2

crença louca e sem nexo. Esta visão resulta da incapacidade de compreensão dos valores não cristãos, quando operada por praticantes do catolicismo.

Os articulistas deste semanário consideravam o Fong Soi “um espantalho”327 que os chineses usavam para encobrir uma oposição acintosa a determinadas questões, o que aconteceu aquando da de remoção das sepulturas chineses, para a construção de estradas, posta em prática pelo Governador Ferreira do Amaral, que terminou com o seu assassinato.

Ainda sobre a influência da geomância na vida dos chineses, o periódico mencionava que os alpendres do mercado municipal da Horta da Mitra, nunca tinham sido ocupados pelos vendilhões "a quem agrada pouco o mercado, por causa, dizem elles, do fongsoi"328.

Outra superstição chinesa denunciada nas folhas do Eco Macaense era o abandono de crianças mortas pelos seus familiares.

“É um facto bem triste mas innegavel, que a superstição muitas vezes impera mais no animo dos chinas do que o amor paterno. O receio phantastico d'uma futura calamidade é capaz de arrastar os paes chinezes a expôr os cadaveres dos seus filhos nas esquinas e nos monturos, o que constitue um dos mais feios estigmas dos costumes chinezes"329.

A justificação apresentada, pelo periódico, era que os enterramentos ficavam caros, pois os cemitérios chineses localizavam-se depois das Portas do Cerco, o que acarretava despesas que os chineses não estavam dispostos a suportar.

O dia-a-dia dos chineses, desde os mais pequenos gestos até às demonstrações colectivas de alegria, estavam impregnadas de simbologia. Neste enquadramento, o jornal citava o facto de uns pescadores terem apanhado uma tartaruga que levava presa na carapaça uma medalha de prata com caracteres chineses. A tartaruga foi libertada "com ceremonias religiosas, queimando muitos papeis e panchões, pois é crença entre os pescadores

327 EM 07.06.1896, p. 4 328 EM 08.08.1897, p. 2 329 EM 05.12.1898, p. 2

chinas que a tartaruga devia ser um genio ou encanto, para que alguem a tivesse libertado com a referida medalha"330.

Segundo os articulistas deste semanário, os preparativos para os festejos do Ano Novo Chinês traziam o costume da limpeza e da liquidação de contas, sendo que o primeiro aspecto “por si só bastaria para fazer nascer o desejo de que se repetissem os dias de anno novo china, por amor da higyene”331.

Os redactores deste hebdomadário congratulavam-se com o facto de se ter formado uma sociedade entre os chineses de Macau "para combater o pessimo costume de estropear os pés das mulheres, obrigando-se os socios a não se casarem com mulheres com pés amarrados, nem a sujeitar as suas filhas a esse pessimo costume. Viva o progresso!"332.

O Eco Macaense publicava uma notícia intitulada “Não é de Admirar”, que demonstrava os diferentes costumes existentes entre povos diferentes e de como estes se mostravam incompreensíveis aos olhos do Outro. O acontecimento relatado era um casamento chinês em que “a noiva, como é costume, caminhou para a cadeira, levada nos braços dos parentes, e ao aproximar-se da cadeira mostrou reluctancia de entrar n'ella; os parentes empurram na forçando para mettel-a na cadeira, e ella resiste; esta scena durou alguns minutos"333. Um soldado europeu, recém-chegado e, por isso, pouco habituado a lidar com os chineses indignou-se com esta cena à qual assistira e preparava-se para dar voz de prisão quando lhe foi explicado que a resistência da noiva era apenas uma farsa que demonstrava o seu pudor, ao ser levada a casa do noivo.