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4.1 Prostituição

4.1.2 Mulheres Floridas e Barcos das Flores

Em relação às mulheres floridas, o Eco Macaense fornece uma descrição pormenorizada de um jantar efectuado a bordo de um dos barcos das flores. Esta notícia surge na secção Correspondência em forma de carta, assinada por Seu B. e dirigida a um Conde. Aí é retratado um ambiente restrito frequentado por chineses ricos e outros, em que as funções das mulheres floridas não se limitavam unicamente à prática de sexo, mas também servindo- os com requinte, obsequiando-os com boas maneiras e seduzindo-os pela sua beleza.

Nessa carta referem-se as saudades das folias e as impressões causadas por altura da Festa das Sete Irmãs251. O excerto seguinte é disso exemplo:

“Recordo me nitidamente das mais pequenas particularidades d’aquella deliciosa tarde. Foram sem duvida bem passadas as duas horas antes do jantar, ao declinar do dia, n’aquelle immenso barco de flores (...) em que

248 Segundo Isabel Nunes podem ser vários os motivos que associaram a flor às meretrizes e ainda à prostituição em geral, “mas o mais decisivo foi provavelmente o hábito das meretrizes chinesas se adornarem com flores, o que lhes mereceu o epíteto de mulheres floridas”. As flores eram usadas no cabelo, na decoração das casas e altares por ocasião da Festa das Sete Irmãs (NUNES, 1991: 101). 249 “Desta prostituição praticada a bordo podem distinguir-se dois tipos, segundo o ambiente do local que a rodeava, isto é, segundo o tipo de barco, ou segundo as suas características envolventes. No seu nível mais baixo, a prostituição praticada em modestos tancares, pobres e sem qualquer requinte de ambiente, cheirando a miséria e pobreza, exercida por tancareiras, que habitualmente acumulavam esta profissão com a de prostitutas. (...) A sua clientela era constituída pelas tripulações dos barcos ancorados no porto (...) também os soldados fizeram parte da sua clientela, durante as folgas de serviço, que aproveitavam para se deslocar às embarcações. (..) A outra forma de prostituição, envolvida em luxo, portanto de um nível muito superior, era praticada em requintados barcos de flores” (NUNES, 1991: 103). 250 “O seu nome encontra-se associado ao instrumento de música, p’ei-pá, que habitualmente tocavam, e ao som do qual cantavam. É [um] instrumento de quatro cordas, composto por uma caixa de ressonância em madeira, bojuda, em forma de pêra” (NUNES, 1991: 102). Além deste outros instrumentos eram tocados por estas mulheres.

251 Festa das Sete Irmãs ou Festividade das Tch’ ât-Tchêk, consagrada às raparigas solteiras, festa por excelência das meretrizes que, por isso, primavam no requinte das decorações floridas” (NUNES, 1991: 101).

se advinha o prazer antecipado de uma noite de delicias em libações de chá, opio e arroz. Alli vem outra embarcação pejada de raparigas (...). Infelizes parias! Qual foi o vosso passado e qual será o vosso futuro?! Nada sabeis. Carinhos maternos nunca conhecestes... Encantos dos lares nunca saboreastes. A mulher que vos guarda em casa e vos dá diariamente duas tijelas de arroz, essa só vos dispensa cuidados quando a vossa saude põe em perigo o capital com que ella vos comprou no mercado. Aquelle abutre humano só se interessa pela frescura das vossas pelles e pela gordura das suas gallinhas.(...) [N]ão deis nunca credito ao que a patroa, tantas vezes, vos conta da possibilidade do casamento com algum de vossos freguezes. D’entre mil homens, talvez um se deixe prender pelo feitiço de vossas melodias, pela pequenez de vossas mãos, se amerceie de vos e vos tire do lodo.

O desembarque n’aquella unica ponte tão escorregadia como nunca vi outra, é digno de ver-se. Chinas sadios e alegres envoltos em sedas de diversas cores, correm presurrosos para os theatros de prazer; e raparigas barulhentas, arrebicadas até aos cabellos, flores nos penteados, ostentando vestes riquissimas, rendilhadas de bordados os mais phantasiosos, fervilham em toda a parte.

O quadro é d’uma feição exclusivamente chineza.

(...) Afastamos-nos silenciosos para a varanda e já era noute completa. Um formigueiro de luzes a tremelicarem ao longo do canal. Entra dentro um ruido insolito acompanhado de um bafo quente.

Guitarras, tam-tams, pifanos, charamellas entoam por todos os lados prelúdios de uma nova vida; vendilhões noctivagos soltam aos quatro ventos pregões cadenciados; vozes feminis gemendo as primeiras notas d’umas canções mysticas.

Tudo isto se cruzam e chocam no espaço. Alli á esquerda, no meio do rio, um grupo de embarcações profusamente illuminadas, scintillantes, chamou particularmente a nossa attenção.

- ? - É alli.

- O que? - O jantar. (...)

Lá vamos rio abaixo em direcção áquellas luminarias. (...) Chegámos. Faltam apenas aves, quanto ao mais, o quadro está completo.

Um chãos de luzes, flores e sedarias. Longas fitas de jasmins alternadas com outras de malvas roxas cobrem o tecto da embarcação. Riquissimos bordados revestem as paredes, matizando o ambiente repleto d’espelhos gigantescos. (...)

- Ora ahi tem, meu caro Conde, todo o papel d’quellas creaturas destas festas, além dos seus infernaes cantos. É isto immoral?

Seria injusta, uma tal apreciação.

Desafio o mais escrupuloso moralista que venha descobrir alli já não digo um acto, mas uma ideia immoral.

Posso asseverar que não haverá em todo o império um único china que ouse affrontal-as com uma acção, ou com um dito inconveniente. Lá dentro, ellas cantam, preparam cachimbos, comem amêndoas, bebem chá, deixam-se tocar nas pontas dos dedos e absolumamente mais nada. São como nos nossos jantares os copos vermelhos e verdes, que servem para enfeitar a mesa.

Se é questão de salvar as apparencias, pelas quaes o mundo faz o seu juizo, vinde ó moralistas commigo, munidos de imparcialidade e de um lapis e caderno para registar factos”252.

As mulheres floridas são descritas como tendo um passado e um presente infeliz, sendo usadas pelas suas donas enquanto servem os propósitos da prostituição.

O ambiente destas festas caracteriza-se pela luz, cor, riqueza, ruído e animação. À primeira vista, aos olhos de um ocidental, o costume é eticamente reprovável, contudo numa análise despida de preconceitos (ocidentais) nada havia ali que se pudesse censurar.

De seguida, o autor da carta faz comparações entre uma soirée dançante organizada segundo os “costumes ocidentais” e a festa no barco de flores:

“Entremos primeiro onde funcciona o que a boa sociedade chama uma soirée dançante. Antes de tudo distinguiremos a ordem da sociedade pelo grau de nudez das mulheres. A orgia é tanto mais selecta quanto as damas mais se descobrem. Notaremos em seguida o peralta de rubona requestando uma dama para uma valsa; ella inclina-se para os hombros do galão, elle recebe-a nos braços e aperta-a contra o peito; e lá vão ambos, elle e ella, n’um rodopio insano e vertiginoso, com pretexto de seguir os compassos da musica. Não registamos os segredinhos reciprocados nem as consequencias d’essa soirée dançante.

Entremos agora n’um barco de flores, onde a orgia é tanto melhor quanto as damas mais se cobre. Lá estão tambem os peraltas de rabicho orientalmente repotreados em sophás de bambus, saboreando chá ou opio, n’uma atmosphera confusa de cheiros, luzes e de ruidos differentes. Concluiremos, portanto, que não vimos nas nossas salas compostura dos chinezes, nem nos barcos de flores notamos o bailado e as piruetas proprias para excitar a concupiscencia. (...)

Onde é que reina mais senso commum, não fareis o favor de me dizer? Os chinas n’este capitulo estão de perfeito accordo com o sr. Júlio Diniz, que diz que as funções do estômago e do coração são antagonistas. No nosso caso, elles trazem n’um barco separado as suas esposas, filhas e creadas, e n’um outro os seus empregados subalternos.

São fantasias orientaes dignas de todo o respeito. Por que não estão d’accordo com as occidentaes, segue-se que devem ser condemnadas? Completo engano! Claro está que portas fora não respondo nem pelos chinezes nem pelos nossos”253.

O autor deste excerto, talvez um português, com uma, mais ou menos, longa permanência em Macau, apresenta-se tolerante em relação aos costumes chineses, despojado de uma visão eurocêntrica. Mostra-se crítico em relação aos “moralistas” que frequentam as soirées dançantes e não vêem nada que ofenda a moral e bons costumes da sociedade macaense apesar do que lá se passa (nudez das mulheres, contacto físico entre o corpo dos homens e das mulheres tendo como pretexto a dança e a música, segredinhos ditos ao ouvido e possíveis consequências destes encontros). Contudo, esses moralizadores repudiam as festas nos barcos das flores, unicamente por se revestirem de costumes e hábitos diferentes dos praticados no Ocidente. Segundo o autor desta carta, nada de imoral ou repugnante aí acontece.

Camilo Pessanha, professor do Liceu de Macau, escreveu este poema:

Ao Longe "Os Barcos de Flores"

Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranquilla, – Perdida voz que de entre as mais se exila,

– Festões de som, dissimulando a hora. Na orgia, ao longe, que em clarões scintilla

E os lábios, branca, do carmim desflora… Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquilla. E a orchestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,

Cauta, detem. Só modulada trila A flauta flebil…Quem há-de remil-a? Quem sabe a dor que sem razão deplora? Só, incessante, um som de flauta chora…254