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2 OS AMALGAMAS DO JAZZ: UM PANORAMA DE SUAS ORIGENS ÀS

2.4 Crônicas de uma decadência anunciada: uma possível contribuição da RMP nas

É importante destacar neste último tópico a RMP como um momento no qual se inicia o interesse do pensamento crítico da música brasileira pelas manifestações musicais urbanas, até então pouco estudadas por Mário de Andrade, e que servem de ponte para a discussão central deste trabalho. Acredita-se que ao destacar, ainda que brevemente, sobre como o jazz foi abordado no periódico em questão, a análise nos próximos capítulos será mais completa.

A revista reuniu os chamados folcloristas urbanos, cujos discursos visavam ―exaltar essa maravilhosa música que é a popular brasileira. Estudando-a sob todos os seus variados aspectos‖ e focalizar em seus ―grandes criadores e intérpretes‖.74 Entre os seus colaboradores,

encontravam-se jornalistas, escritores, poetas, radialistas, além de nomes importantes do ambiente intelectual da época. Tais nomes foram reunidos por Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes, no sentido de dar mais legitimidade a uma forma de produzir artigos sobre a música popular urbana, objeto negligenciado pelos folcloristas interessados em música brasileira, Mário de Andrade e Renato Almeida.75

Segundo Wasserman (2002, p. 03), o periódico não apenas ajudou a legitimar tais artistas populares, alçando-os à categoria de ―gênios‖ e, sobretudo ―autênticos‖, como também engendrou conceitos e metodologias que foram utilizadas pela historiografia da música brasileira. Todas as capas eram estampadas com artistas como Pixinguinha, Aracy de Almeida, Linda Batista, Orlando Silva, Jacob do Bandolim, Carmen Miranda, Dorival Caymmi, Inezita Barroso, entre outros.

Assim, os colaboradores da revista em vários de seus números não apenas louvavam esses artistas como o faziam no sentido de combater as influências externas e a ―decadência‖, que, segundo eles, processava-se na música popular brasileira até então. Não é o objetivo analisar cada um desses textos, mas vale o destaque para alguns fragmentos. O primeiro, de Lúcio Rangel, ao divulgar um projeto chamado Antologia da Música Brasileira teve como objetivo regravar e popularizar discos antigos:

74 RANGEL, Lúcio. ―Apresentação‖. Revista da Música Popular, nº 01, 1954, p. 03.

75 Atesta-se isso pelas críticas de Rangel presentes em seu primeiro livro sobre samba, em que afirma ―positivamente, Mário de Andrade não quis fazer o estudo definitivo sobre a mais popular música do Brasil‖ (RANGEL, 1962, p. 32-33), além da frustração de Mário de Andrade ter escolhido estudar ―certas manifestações musicais observadas em pequenos núcleos da população‖ e não o ―grande samba, cantado e dançado por milhões de brasileiros, embora influenciado pelas modas internacionais, como tinha que ser‖ (RANGEL,1962, p. 23).

[...] O folclore musical e a música popular brasileira estão sofrendo o impacto de

influências estranhas à medida que o progresso – no caso representado pelo rádio –, penetra nas camadas mais pobres da população e nas regiões mais afastadas da civilização que são a fonte de todo nosso patrimônio musical [...]. No Rio de Janeiro, por exemplo, rara é a música de compositor popular ou de sambista, atualmente, que não está eivada de modismos e estilos pertencentes ao bolero, à rumba, à música popular americana e principalmente sob a influência estética do atonalismo, através do ―be-bop‖ (grifos nossos).76

Ou, ainda no seguinte comentário do crítico Claudio Murilo: ―não souberam os nossos músicos reagir às influências estrangeiras; o resultado aí está: choros ―be-bop‖, sambas, boleros, etc... [...] O samba desnacionalizou-se [...]‖.77 Percebe-se que os autores

recorriam à questão das influências externas para legitimar o mito de que a música brasileira ―autêntica‖ estava em decadência.78 Outros colaboradores como Brasílio Itiberê, Ary Barroso

e o folclorista José Cruz Cordeiro tentaram validar esse discurso de decadência no periódico. Brasílio Itiberê desabafou sobre o cenário musical da época no texto Carta a Lúcio Rangel: ―– Música? Deus meu! Que coisa melancólica o panorama musical... Tudo contorcido, hemiplégico, salafrário!‖ 79, e depois, ao escrever a apresentação para o livro

Sambistas e Chorões (1962), afirmou também: ―em matéria de música popular a coisa foi calamitosa e a devastação total, pois ela foi ferida de morte na sua parte orgânica mais preciosa [...] Começaram, então, a surgir as formas híbridas – samba-rumbas, sambaladas, samboleros – como quistos aderentes ao nosso populário [...] (ITIBERÊ, 1962, p. 07).

Mesmo confessando ter sido influenciado pelo jazz no início de sua carreira profissional quando pianista (EFEGÊ, 2007), Ary Barroso fez questão de defender em tom saudosista tal percepção do ambiente musical da época, afirmando: ―antigamente não havia ‗acordes americanos‘ em samba [...]. E o samba andava pelos ‗cabarets‘, humilde e sem dinheiro [...]. Antigamente, samba era uma coisa, hoje é outra. Decadência! Decadência! Decadência!‖.80

Já, Cruz Cordeiro, geralmente lembrado pelas críticas que havia feito na revista Phono-Arte às músicas Carinhoso (1916) e Lamentos (1928), de Pixinguinha e Donga – por apresentarem supostamente influências do jazz –, escreveu um artigo intitulado Folcmúsica e música popular, na tentativa de separar o samba ―inautêntico‖ do ―verdadeiro‖, afirmando

76 RANGEL, Lúcio. ―Antologia da Música Brasileira‖. Revista da Música Popular, nº 01, p. 27, 1954. 77MURILO, Cláudio. ―Vamos tocar bem alto‖. Revista da Música Popular, nº 02, p. 14, 1954.

78 Segundo Wasserman (2002, p. 37) o repertório de samba, samba-canção e marchas, embora variável, tinha um percentual total de 50 a 60% de espaço nas rádios, enquanto que ―os ritmos internacionais, como o bolero, o tango, a rumba e o fox tomavam 20% do repertório‖, o que reforça a tese desse ―mito‖ ser uma estratégia para legitimar antigos artistas da música brasileira, vistos como os mais ―autênticos‖, segundo o gosto desses autores. 79 ITIBERÊ, Brasílio. ―Carta a Lúcio Rangel‖. Revista da Música Popular, nº 13, 1956, p. 12.

que ―se o samba, música popular, tal como vimos, entrou em decadência, o samba, folcmúsica, por isso mesmo, persistiu [...]. Talvez por isso é que o samba, música popular, tenha decaído pros ‗be-bop‘ lacrimosos dos ‗crooners‘ das buates e das rádios sofisticadas‖.81

À primeira vista, poder-se-ia interpretar que a revista se colocava totalmente contra o jazz e sua propagação no Brasil. Entretanto, o periódico não se limitou apenas à ―verdadeira‖ música popular, mas também se propôs a divulgar o ―verdadeiro‖ jazz, ―a grande criação dos negros norte-americanos‖, e tentava combater o jazz ―falso‖. Isto é constatável nas colunas de jazz da RMP. Entre elas, pode-se mencionar: Jazz, Notas de Jazz, Os fatores essenciais do jazz, Discografia Selecionada de Jazz Tradicional, entre outras.

Para esta empreitada, a RMP contou com críticos como José Sanz, Marcelo Miranda, Jorge Guinle (autor do livro Jazz Panorama, 1953), os críticos tradicionalistas Frederic Ramsey Jr., Nestor Ortiz Oderigo e Eugene Williams, sem esquecer as colaborações de Sérgio Porto (autor do livro Pequena História do Jazz, 1953) e Vinícius de Moraes, que, também, publicava, nos anos 50, artigos sobre jazz em revistas como a Senhor, Sombra, Diretrizes, Vanguarda, Flan, entre outras.

Ribeiro Júnior (2016a, p. 78) demonstra que, em meio a essa ―segunda geração‖ de críticos, atuante entre os anos 50 e 60, havia entusiastas de jazz agrupados, basicamente, entre Tradicionalistas e Modernistas, sendo Jorge Guinle e José Domingos Raffaelli os únicos representantes dos chamados Ecléticos no jornalismo musical brasileiro.82 Então, exceto Guinle e Raffaelli, a maioria considerava que o jazz estaria dividido em duas formas naquele momento: por um lado, havia o tradicional, que foi lido como ―autêntico‖ por seus cultores, mas ―primitivo‖ para os modernistas. Por outro lado, o jazz moderno era visto como evoluído para os seus defensores, mas inautêntico para os tradicionalistas.

Para estes grupos, portanto, um era melhor que outro, formando em torno do jazz uma espécie de ―comunidade de gostos‖ (RIBEIRO, 2008, p. 113) e espalhando significados divergentes do gênero musical. Essas disputas fomentaram uma verdadeira polifonia em torno do jazz e, mais ainda, exerceram uma grande influência na música brasileira, em especial para os tradicionalistas, pois esses mesmos possuíam uma visão purista da música popular urbana.

Sérgio Porto e Vinícius de Moraes (2013), por exemplo, embora comparassem o jazz e o samba como gêneros de origens comuns e tivessem apreço por ambos, muitas vezes, proferiam discursos ambíguos em relação à influência do jazz. Sérgio Porto defendia a

81CORDEIRO. José Cruz. ―Folcmúsica e música popular‖. Revista da Música Popular, n.º 07, 1955, p. 40-41. 82 Para uma apreciação geral a respeito desses e de outros críticos de jazz brasileiros e estrangeiros, bem como de suas atividades em prol da produção e divulgação de material sobre o jazz, cf. LAGO, Sylvio, 2005.

―autêntica‖ música popular contra a influência do bebop e, ao mesmo tempo, criticava a pouca difusão do jazz no Brasil em seus artigos (RIBEIRO JUNIOR, 2016b, p. 08).83

Isto porque, segundo explica Calado (1990), a partir do contato com o bebop e com o cool jazz no Brasil, passou a haver um confronto entre músicos e críticos paulistas contra os cariocas em relação à modernização do jazz. Os primeiros mais afeitos à ―autenticidade‖ do jazz tradicional, enquanto que os cariocas, ao contrário, eram defensores do bebop e outras vertentes que surgiam no final dos anos 50.84 Esta tese se confirma no momento em que se analisam os discursos dos músicos brasileiros de jazz, tais como o pianista italiano radicado Brasil, Edoardo Vidossich, membro do São Paulo Dixielanders.85

Vidossich era visto como ―um dedicado estudioso do jazz tradicional‖ e um músico ―irremediavelmente impermeável às inovações‖ que seguia ―os princípios de seu famoso colega argentino, o escritor Nestor Oderigo‖, pois este ―considerava que a pureza do jazz tinha ido por água abaixo na Era do Swing‖ (MELLO, 2007, p. 13). Vidossich chegou a produzir, no final dos anos 50, um estudo sobre jazz e sua inserção no Brasil. Nesse estudo o músico chegou a declarar que:

O ―jazz‖ não precisa de renovadores, nem harmonicamente, nem ritmicamente, nem instrumentalmente, nem cerebralmente, nem historicamente. Essa música é um fenômeno tão puro, tão instintivo, tão ligado às tradições de uma raça, que não pode tolerar tentativas de desvio, de revoluções progressistas e modernistas de que hoje é vítima [...]. Não pode existir um ‗jazz‘ futuro, pois o fenômeno pertence essencialmente ao passado (COEUROY; VIDOSSICH, 1957, p. 223, grifos nossos).

Doravante, outros pensadores da música popular, tais como Lúcio Rangel e José Sanz, que antecederam Tinhorão, também defenderam nas páginas da RMP tal posicionamento (muitas vezes saudosista) em relação ao jazz e ao samba.86 Não por acaso,

83 Para uma melhor apreciação da discussão do conteúdo de alguns desses artigos e dos primeiros livros nacionais interessados em jazz (a saber, Jazz Panorama e Pequena História do Jazz) cf. Ribeiro Júnior, 2016a, p. 73.

84 Isso explica, muito provavelmente, o revival das vertentes tradicionais do jazz em São Paulo e, por outro lado, o surgimento da chamada MPM nos anos 60, desenvolvida nas boates do Rio de Janeiro (CALADO, 1990). Abordar-se-á a questão da MPM com mais atenção ao longo do trabalho.

85Além deste conjunto, Vidossich participou do Paulistania Jazz Band, outro grupo paulista de jazz tradicional (MELLO, 2007).

86 Nesse momento, em que se começa a misturar o jazz moderno com o samba (no que iria criar o samba jazz e outros gêneros), percebe-se que há uma introjeção no Brasil da dúvida em relação autenticidade (baseada em critérios supostamente raciais) do bebop e do cool. Por isso, há uma clara relação de poder entre os defensores do jazz tradicional e do jazz moderno, em que o segundo era acusado de se ―embranquecer‖. A prova disso é a existência da coluna do crítico José Sanz, intitulada Gato por lebre na RMP, a defesa pelo jazz moderno por parte de Jorge Guinle e a divisão dos fã-clubes de jazz. Entre os anos de 1940 e 1950, não fica claro em muitos discursos de críticos e fãs se se passa a repudiar apenas a execução do jazz de vertente moderna no Brasil, ou o próprio fato dos músicos brasileiros buscarem executar o jazz tradicional de forma fiel, como os norte- americanos.

foram convidados os norte-americanos Eugene Williams, Frederic Ramsey Jr. e o folclorista argentino Nestor Ortiz Oderigo para abordar as origens do jazz na revista.

Para todos eles, o bebop simbolizava a decadência do jazz, um desvio de suas raízes ―autênticas‖, tal como pregado pelos críticos estrangeiros tradicionalistas.

Partilhava, também, desse ideal tradicionalista – ainda que de maneira ambígua – um dos fundadores da BN, Vinícius de Moraes, que foi um ―entusiasta da música negra tradicional‖ (FERRAZ, 2013, p. 20). Isto fica mais claro nesta entrevista concedida a Luiz Carlos Maciel, publicada n‘O Pasquim, em agosto de 1969:

– Luiz Carlos Maciel: Você ainda gosta de jazz?

–Vinícius de Moraes: Outro dia mesmo tive uma discussão com Fernando Sabino porque ele acha que o jazz é a maior contribuição musical do século e eu não acho. Acho que a música brasileira mais importante e mais rica que o jazz, o fenômeno musical mais importante do século. Me refiro (sic) à música popular brasileira, porque a erudita, com exceção de Villa-Lobos e Santoro, já acho menos.

– Luiz Carlos Maciel: Você acha que o jazz está ficando cada vez pior, que bom mesmo era o antigo?

– Eu acho que o jazz acabou, não existe mais.87

Como se pode perceber no discurso de Vinícius de Moraes, a exaltação da música brasileira traz à tona uma frustração com os rumos do jazz naquele momento. Neste sentido, Vinícius (2013) demostrava antipatia em relação às formas modernas de jazz, propondo-se a fazer odes apenas ao jazz ―genuíno‖ em seus artigos sobre jazz escritos naquela época.

Percebe-se, então, que para Vinícius, no momento em que este estilo musical se modernizou, ele teria sofrido descaracterizações, enveredando-se para o comercialismo e, supostamente, perdendo suas qualidades autóctones, ―autênticas‖, fato que o fez romper com sua militância em prol do jazz.88 Ironicamente, essa visão negativa que se construiu em torno do jazz moderno atingiria a própria BN.

87 No final dos anos 60 estilos como o free jazz já deveriam estar causando impactos na opinião pública, pelas mudanças radicais que propunha para o jazz. Mas, é curioso perceber por meio dessa entrevista a postura passiva de Luiz Carlos Maciel (responsável pela coluna ―Udigrudi‖, de 1969 a 1972, n‘O Pasquim) no trato com as vertentes modernas de jazz como o bebop: o estilo que influenciara escritores associados à contracultura (a Geração Beat) tão louvada por críticos como ele. Parece que, se por um lado novas ideias advindas do existencialismo francês e do chamado ―underground‖ foram absorvidas pela nova esquerda dos anos 70, por outro, havia ainda certa posição reacionária em relação à influência do modernismo na musicalidade do jazz. 88 Como mostra Ferraz (2013), em sua temporada em Los Angeles como vice-cônsul representando o Brasil nos Estados Unidos, Vinícius de Moraes interagiu com diversos músicos, como Louis Armstrong, Kid Ory e um dos criadores do bebop, Dizzy Gillespie. Chegou até a cogitar ―dar um pequeno curso ilustrado‖, sobre jazz, assim que retornasse ao Brasil (FERRAZ, 2013, p. 10). Na posição de diplomata, estabeleceu também uma forte amizade com um dos responsáveis pelo revivalismo do jazz tradicional, o produtor Nesuhi Ertegun, dono da famosa loja de discos Jazz Man Record Shop (MIDANI, 2008; FERRAZ, 2013). Na época (entre o final dos anos 40 e início de 50), o poeta era simpático ao comunismo, tecia críticas ao macarthismo e ao modelo de vida norte-americano que imperavam. Entretanto, em seus discursos o jazz tradicional era o único que escapava dessa visão negativa do país (FERRAZ, 2013).

Após o surgimento do movimento BN, Lúcio Rangel – que proporcionara o encontro entre Tom Jobim e Vinícius de Moraes – pôs-se a combater a nova sonoridade. Isso porque para puristas como Rangel e outros da RMP, o surgimento da BN significava a incorporação de um jazz ―inautêntico‖ no samba. Até então, muitos desses críticos apoiavam que se tocasse o ―verdadeiro‖ jazz no Brasil, de forma que criticavam quando isso não era feito de maneira satisfatória.89

No momento em que começaram a surgir experimentações com o jazz moderno, o discurso mudou de tom e a BN ajudou a agravar esta postura. Assim, no mesmo ano do lançamento do LP Chega de Saudade (1959), de João Gilberto, Rangel publicaria um texto na revista Mundo Ilustrado, intitulado Carta a Vinícius de Moraes, no qual dispararia seus ataques à BN:

Os gêneros verdadeiramente autênticos não estão nos tais ―compartimentos‖, estão soltos nas ruas e nos pratos das vitrolas, para quem quiser ouvir; resistem ao tempo, não estão sujeitos às modas efêmeras, estão sempre prontos para o sucesso [...]. Está claro que você e Antonio Carlos Jobim, dupla inventada por mim quando você procurava um compositor de talento para musicar o seu Orfeu da Conceição, têm direito de fazer ―as suas músicas para que o povo as cante‖, ―com ritmo de samba ou não‖, ―dançável ou não‖. Sim, todos têm esse direito. Mas o povo ―aceitar‖ é que são outros 500 mil-réis [...]. É que o samba é o mesmo, hoje ou amanhã. É um gênero substantivo, ao contrário do jazz, que é verbo. Um samba (composição) vale pelo que é, uma composição qualquer que pode ser ou não ser jazz, ficando sua grandeza dependendo unicamente dos músicos que a tocam [...]. Por isso, achei infeliz a sua comparação do samba com o jazz, que tem escolas ou formas que marcam perfeitamente as suas diversas épocas: o samba, não, é um só [...] (2007, p. 118-119).

Pode-se perceber que, na impossibilidade de fomentar um revivalismo do jazz,90 tal como estava sendo realizado em outros países, muito por conta da descrença de que os

89 Isto fica evidente quando Murilo afirma ―no Brasil toca-se ‗be-bop‘, toca-se ‗cool‘ e difundem-se as duas coisas. ‗Tocam‘ não é bem o termo: tentam tocar‖. MURILO, Claudio. ―Espírito de Imitação‖. Revista da

Música Popular, ed. 1, p. 13, 1954.

90 Esta tese advém da constatação de que os críticos de jazz da RMP tentaram apoiar o projeto de revivalismo do jazz no Brasil, informações contidas em uma matéria da RMP intitulada ―Apoio a um projeto‖, de autoria de José Sanz. Informa-se que, em busca do estabelecimento de ―relações entre as formas musicais dos povos negros‖, José Sanz e Jorge Guinle planejaram trazer para o país, por meio de subsídios do Departamento Cultural do governo, o renomado produtor norte-americano de jazz, William Grauer Jr.. Grauer era responsável, na época, pela direção da revista The Record Changer, da gravadora Riverside e principal encarregado pelos materiais disponíveis no Institut of Jazz Studies. A princípio, Sanz inicia este artigo louvando o fato de que a união de empresas e gravadoras de disco como a Folkways (dirigida por Marshall Stearns) e a Riverside fomentou, não apenas a criação da National Jazz Foundation em Nova Orleans, mas também, subsidiou a ida de ―especialistas a todos os países de civilizações afroamericanas, como Cuba, Haiti, Martinica, Trinidad e Brasil‖. Ao contrário do Brasil, entretanto, todos esses países ―deram apoio efetivo a esse projeto, facilitando o trabalho dos enviados daquelas organizações‖. Sanz informa ainda, com claro tom de pesar, que o mesmo não ocorreu no Brasil por falta de recursos, pois na época o governo investia em outros eventos como o Congresso de Folclore de São Paulo. Cf. SANZ, José. ―Apoio a um projeto‖. Revista da Música Popular, nº 05, 1955, p. 36-37.

brasileiros pudessem tocar o jazz ―autêntico‖ de forma fiel, esses críticos investiram esforços para causar esse revivalismo na música popular brasileira.

Mas há esperanças. Pode ser que os músicos feridos no seu orgulho, no seu amor- próprio, iniciem um movimento de reerguimento moral das nossas coisas e esqueçam que são profetas a anunciar ―news‖ disso e ―news‖ daquilo. É certo que podemos evoluir, mas uma evolução vinda de nós mesmos, de dentro para fora e não de empréstimo. Para isso, teríamos de voltar às formas puras; teríamos que revolver o passado, quando o samba não possuía ainda solos ―cool‖ ou mil e outros ―new sounds‖. Então, poderíamos produzir com arte, com pureza, sem a consciência a nos taxar de carbonos. Só assim, recusando o que não nos pertence é que poderemos tocar bem alto, para que o mundo inteiro nos escute e fique com água na boca por não poder fazer igual (grifos nossos).91

Percebe-se, então, que na passagem para os anos 60 vigorava visões divergentes e ambíguas acerca do jazz na música popular brasileira e que, possivelmente, influenciaram ideologicamente nas escutas e interpretações que iriam se processar entre 60 e 70. Contudo, cabe analisar as idiossincrasias que se instauraram com o surgimento da MPB, cenário em que há o advento de novas diretrizes nacionalistas e conflitos ideológicos no universo musical.

Uma vez que um dos objetivos deste trabalho consiste em analisar como Tinhorão e Tárik de Souza abordaram sobre o jazz, cabe lembrar que eles e tantos outros críticos e interessados em música popular foram fortemente influenciados pela produção da RMP. Acerca disto, Tárik de Souza (2006, p.18), certa feita, afirmou ter sido Lúcio Rangel (diretor do periódico), ―talvez o principal formador do pensamento crítico da MPB na metade do século passado.‖

Assim, após as informações levantadas neste capítulo, acredita-se ser possível agora