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3 O NACIONALISMO DE TINHORÃO E AS DISSONÂNCIAS AMPLIFICADAS

3.5 O veneno de Tinhorão e as veias abertas da MPB

Se as representações sobre o jazz feitas por Tinhorão tiveram relação direta com o teor de suas críticas à BN e à MPM, como tal postura poderia influenciar o universo da MPB? Neste último tópico se pretende analisar em que medida toda essa discussão sobre o jazz no Brasil, articulada a partir do pensamento de Tinhorão, afetou o campo desse segmento musical.

Com traços de uma ideologia formada pelo comunismo, nos discursos de Tinhorão, a MPB era uma música que, também, flertava com a BN, portanto, com a música estrangeira e com o mercado.212Como discutido anteriormente, a MPB, diante da necessidade de demarcações e categorizações simbólicas, passou a ter como coluna vertebral o engajamento político, sobretudo a denúncia da repressão fomentada pelo Regime Militar, e a defesa pelas raízes populares da música brasileira, como partes fundamentais dos fatores legitimadores da brasilidade musical. Basta lembrar que o debate nacionalismo versus internacionalismo musical ganhou espaço em importantes periódicos, como nos debates realizados na RCB.

Por isto, percebe-se que sua crítica ao imperialismo já vinha de muito antes do estabelecimento do regime militar e da institucionalização da MMPB (posteriormente, MPB). Em face disto, tem-se que a defesa de uma música brasileira ―autêntica‖ também passou por inúmeras conotações que se chocaram entre os anos 60 e 70: desde uma moderna música popular com harmonias sofisticadas, ao teor de engajamento político de seus cultores, passando pela utilização de sonoridades regionais, a fim de estabelecer pontes entre o nacional e o popular. Tais projetos passaram a ser todos criticados duramente por Tinhorão:

Tal retomada da ‗linha evolutiva‘ aparecia como a tentativa de criação, a partir do rock americano e de seu instrumental eletrificado, de um sucedâneo musical

212 Como se analisará no próximo capítulo, o surgimento deste acrônimo coincide com a época dos grandes festivais da canção (que foram eventos de amplo apelo midiático) e com o recrudescimento do autoritarismo do regime militar, fomentando o consumo de uma série de canções de cunho engajado.

brasileiro semelhante ao obtido dez anos antes em relação ao jazz, através da bossa nova. Bem interpretado, o tropicalismo propunha-se a representar em face da linguagem ‗universal‘ do rock, o mesmo que a bossa nova representara em face da linguagem ‗universal‘ do jazz (TINHORÃO, 1998, p. 323, grifos nossos).

Assim, a crítica que recaía ao Tropicalismo residia em uma espécie de ―cordão umbilical estético‖ que o ligava à BN e, portanto, a uma memória de uma música popular que incorporou o jazz e foi por ele incorporado. Neste sentido, para Tinhorão a utilização de procedimentos estrangeiros, assim como o jazz na BN, não passava de uma versão atualizada e em diálogo com o próprio regime e seu projeto à direita de brasilidade nacional- desenvolvimentista.213

Lamarão (2008) informa que a postura de Tinhorão, era visivelmente incômoda para uma MPB que cada vez mais flertava com a indústria cultural, ao mesmo tempo em que o colocava em um lugar de indivíduo com o pensamento atrasado, nostálgico, nacionalista radical, denunciava as contradições dentro da própria ala dos artistas de esquerda.214

Devido essa discrepância ideológica dentro do seio da própria esquerda, Tinhorão se confrontaria até com Sérgio Cabral, crítico que assinou conjuntamente a coluna Primeiras Lições de Samba:

A verdade é a seguinte: a minha formação é marxista, sem pertencer ao Partido Comunista. O Partido Comunista às vezes não era muito marxista. Porque o cara do Partido precisava ter uma visão política para por em prática, obedecer a uma práxis. É o caso do Sérgio Cabral (crítico musical). Ele me chamava de ortodoxo porque achou que em determinado momento, para a revolução que o partido propunha, tinha que haver aliança com setores progressistas da burguesia. E eu não acredito em setores progressistas da burguesia.215

Assim, incomodado com a visão de Tinhorão sobre a MPB, Sérgio Cabral publicaria, em 1976, um artigo n‘O Pasquim intitulado Tinhorão, agente da CIA? que estampava a capa do tabloide e informava:

Não será José Ramos Tinhorão um agente da CIA contra a música popular brasileira? [...] Qualquer relatório sobre a CIA ensina que uma de suas táticas é infiltrar agentes em movimentos hostis aos EUA para que esses agentes não só recolham informações como também prejudiquem os próprios objetivos do

213 Sobre esta guinada ideológica do nacionalismo cf. ORTIZ, 1994.

214 Mais do que isso, podem-se levantar outras teses: a posição de Tinhorão em recusar as novas demandas em relação à cultura brasileira – cada vez menos ligada, atualmente, ao paternalismo com a cultura popular – e a intensa disputa que existe na historiografia sobre suas posições nacionalistas, podem indicar a permanência do debate sobre o problema do nacional e do popular advinda do período do regime militar.

215 O autor teria afirmado, porém, sua filiação na biografia escrita por Lorenzotti (2010). Para mais informações sobre a matéria. Cf. ―Tinhorão e a crítica‖. Revista eletrônica Zagaia, edição de 2011. Acessível em: http://zagaiaemrevista.com.br/article/tinhorao-e-a-critica/. Acesso em 11/05/2016.

movimento com atitudes radicais [...]. Qualquer compositor de classe média que faça música, por mais talento que tenha, é logo acusado de deturpado [...] Noutro dia ele chamou Caetano de mau caráter simplesmente porque Caetano dedicou um de seus discos a Clementina de Jesus. Assim já foram esculhambados por Tinhorão os seguintes artistas: Chico Buarque de Holanda (que uma vez me disse assim: ‗Vou dar um pau no Tinhorão, hein!‘), Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Gilberto Gil, João Bosco, Vinícius de Moraes, Hermínio Bello de Carvalho, Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Edu Lobo e muitos outros. Esses são os chamados pilares de nossa música popular em termos de prestígio de mercado. Atrapalham a penetração da música norte-americana no Brasil. Portanto, o negócio é destruí-los.216

Sérgio Cabral que se colocava contra a BN no começo dos anos 60, desta vez parecia assumir um discurso de defesa do movimento.217 Ainda assim, é curioso perceber no fragmento supracitado como Cabral chegou a se valer de uma postura purista contra o próprio Tinhorão, demonstrando que o combate à influência do jazz tomou maiores proporções, envolvendo a MPB e trazendo à tona desavenças não apenas estéticas, mas políticas também.218 Não tardou, pois, para que o diálogo e a tensão entre os campos comunicacional e estético ficassem ainda mais evidentes no próprio discurso dos artistas ligados à MPB.

Em 1969, em entrevista concedida ao jornal O Pasquim, perguntou-se a Antonio Carlos Jobim se ele conhecia a produção de José Ramos Tinhorão, o músico respondeu que a desconhecia, mas que sentia necessidade de ler suas obras (SOUZA, 2009). E mais: mesmo criticando o fato de Tinhorão – em uma clara atitude zombeteira – ter afirmado que o apelido ―Tom‖ era uma adaptação americanizada, símbolo de alienação cultural, Jobim (conhecido como um dos baluartes da BN), curiosamente, demonstrou certa apreciação pelas ideias de José Ramos Tinhorão. ―O Pasquim: Continua a falar do Tinhorão. Tom: Eu tenho a impressão que ele deve ser um homem honesto. Como sabeis nós somos grandes puristas‖ (SOUZA, 2009, p. 120).

216Acessível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/09/1518580-tinhorao-de-volta-a-roda.shtml. Acesso em 11/05/2016.

217Esta guinada pode ser percebida em textos como ―Em busca da perfeição‖, ―A Bossa Nova‖ e ―Tom: revolução com beleza‖ que foram escritos por Cabral para a série Songbook Bossa Nova (1990), produzida por Almir Chediak no final dos anos 80.

218 O jornalista Fabiano Victor supôs que quando Cabral afirmou no artigo d‘O Pasquim que Tinhorão era ―muito bem protegido‖, estava se referindo, provavelmente, ao sogro de Tinhorão, o veterano da FEB na Segunda Guerra e chefe do Estado-Maior do exército brasileiro no governo Figueiredo, general Antonio Ferreira Marques. Em uma época de intensa censura à imprensa, Cabral relatou que ―na editora Abril, todas as vezes que se falava em demiti-lo, aparecia sempre uma força superior para mantê-lo no emprego‖. Tais insinuações podiam ter relação com o clima de patrulhamento que se instaurou após o golpe. Desde 1964, os militantes de esquerda (inclusive, do PC do B e da VPR) eram vigiados pelo SNI com a ajuda da CIA, a fim de conter as ―atividades subversivas‖ (GASPARI, 2014, p. 156). Além do fato de que a censura e o patrulhamento atingiram internamente as atividades dos jornais de oposição ao regime (KUCINSKI, 1991), como se analisará no próximo capítulo, nos anos 70, o patrulhamento ideológico passará a ser cultivado, também, dentro do próprio campo da MPB. Para matéria de Fabiano Victor cf. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/09/1518580-tinhorao- de-volta-a-roda.shtml. Acesso em 06/05/2016.

Após ter uma atitude passiva em relação às ideias de Tinhorão e, ao mesmo tempo, destacar a influência da música francesa em sua música, Jobim negou as influências do jazz. Paradoxalmente, o artista também teceu críticas sutis aos que defendiam uma visão purista da música popular brasileira:

– Tom: Eu nunca soube tocar jazz. Se tive influência séria foi essa. Mas o diabo é o nosso purismo...

– O Pasquim: E aquele negócio de harmonia jazzística. É conversada fiada, é? – Tom: Harmonia jazzística, tudo isso é conversa fiada. O negócio é o seguinte: o jazz bebeu de todas as fontes, avidamente. Debussy, Ravel, tudo. A oposição purista é um negócio subdesenvolvido; a posição deles lá é uma grande angular que vê tudo. Eles estão abertos a tudo: música havaiana, cubana, brasileira, tudo. Eles estão na de

venha a nós; nós estamos na de deixa pra lá. A gente faz uma batidinha de bossa; no dia que americanos copiam, você é imediatamente acusado de os americanos já terem feito aquela batida. A gente fica sempre por baixo, de subdesenvolvido, não é? (SOUZA, 2009, p. 120-121).

Ainda que Tom Jobim tivesse negado o conhecimento acerca das obras de José Ramos Tinhorão, seu discurso mostra que as críticas à BN não eram esposadas apenas por ele, mas por vários setores da sociedade, principalmente da imprensa musical. É interessante perceber que, tal como Jobim, muitos músicos bossanovistas adotaram estratégias discursivas similares para construírem uma imagem nacionalista, como a denúncia da influência do bolero, a fim de se colocarem ao lado dos ―puristas‖ que criticavam a BN por causa da influência jazzística (CASTRO, 1990).219

Contudo, como se viu, para esses puristas a presença do jazz era imperdoável: a BN, para os simpáticos à visão de Tinhorão, soava-lhes definitivamente como mera mimetização de procedimentos jazzísticos e imperialistas, somada a doses líricas igualmente ―alienadas‖. Essa intransigência cultural não poderia se sustentar no discurso de Jobim, haja vista ter defendido a incorporação indireta de elementos do jazz pela música clássica francesa.

Ademais, após ser acusado de ter adotado um nome supostamente americano, não teria sido difícil interpretar que as obras do crítico se voltassem para uma crítica às influências do jazz na bossa. Curiosamente, em momento algum Tom ou os entrevistadores se lembraram da obra organizada por Augusto de Campos, a fim de rebater os pensamentos de Tinhorão.

219 É evidente o incômodo de Jobim diante dos questionamentos sobre a influência do jazz em sua musicalidade. Sobretudo, neste trecho da entrevista: ―O Pasquim: Mas o contato com a música americana não lhe influenciou? Tom: Olha esse negócio já aconteceu com Carmen Miranda, antes de mim. Quando ela voltou ao Brasil pediu até ao Dorival para fazer aquele samba: Disseram que eu voltei americanizada. Acontece o seguinte: o americano pode passar 20 anos no Brasil e voltar para lá que ninguém vai chamar ele de brasileiro (sic)‖ (SOUZA, 2009, p. 123). Ao sair em defesa da BN, Sérgio Cabral confirmaria este mal estar de Jobim: ―[...] Antonio Carlos Jobim fica aborrecido quando lhe perguntam sobre a influência do jazz na Bossa Nova: – Se há influência, a Bossa Nova influenciou muito mais o jazz do que o jazz influenciou na Bossa Nova. Influenciou a música norte-americana e mudou a música brasileira, acrescento eu‖ (CABRAL, 1990, p. 17).

Fazia apenas um ano que a obra Balanço da bossa havia sido publicada (1968) e possuiu uma série de estudos musicológicos a favor da BN, incluindo o texto Bossa Nova, de autoria do musicólogo Brasil Rocha Brito, texto que foi citado como ―a primeira apreciação técnica fundamentada que se fez da bossa nova‖ (CAMPOS, 1974, p. 12).220

Em contrapartida, o livro inicial de Tinhorão havia sido publicado muito antes, em 1966. Ainda assim, parecia que as ideias contidas nesta obra desta tinham maior reverberação nos argumentos de Jobim. Este fato faz transparecer na entrevista de Jobim uma espécie de retratação ao tocar no assunto sobre a influência do jazz na BN. Em face disto, é curioso perceber o impacto da escrita polêmica de Tinhorão na música popular brasileira.221

Pode-se perceber que, nos anos 70, ainda pairava no âmbito da MPB essa crítica ao jazz como sinônimo de alienação cultural e desnacionalização. Diante disto, ao comentar sobre a possibilidade de circulação e valorização dos músicos de jazz brasileiros no cenário internacional e a percepção de que tal posicionamento se inseria em uma dinâmica global, Caetano Veloso expressou para o jornal O Pasquim, em 1971,quão conflituoso era esse assunto.

O compositor, ao comentar sobre o músico Sérgio Mendes, defendeu que ―em todos os países da Europa há pessoas interessadas em jazz, que se exercitam dentro da linguagem do jazz e que chegam a ser jazzistas, importantes ou não, pouco importa‖ (SOUZA, 2009, p. 159) e que tal opção ―não é necessariamente uma negação da nacionalidade do sujeito‖ (SOUZA, 2009, p. 159). Caetano, então, esboçou o incômodo das ideias de Tinhorão para o seu projeto de música brasileira:

– Caetano: Às vezes eu me lembro dessas coisas quando o Tinhorão, por exemplo, diz aquelas bobagens, que o Tom é americano, que o João Gilberto tem o apelido de Gibi, aquelas coisas nacionalista bobas. Quando toca no seu assunto, no meu interesse que é ver a linguagem musical se desenvolvendo, aí eu vejo que ele me

atrapalha, então naturalmente eu releio e pego os argumentos todos que me vem à cabeça (SOUZA, 2009, p. 162, grifos nossos).

A parcela oriunda das camadas médias, que cobrava um posicionamento dos artistas frente à realidade social e a cultura popular, bebia inevitavelmente em argumentos como os de Tinhorão, razão esta de ele ter causado tantos incômodos no cenário musical da época.

220 Campos (1974) informa que este texto foi publicado originalmente entre outubro e novembro de1960, no jornal O Correio Paulistano, pouco antes de Tinhorão iniciar suas críticas ao movimento.

221 Também é perceptível na visão de Jobim que (embora tenha negado a influência do jazz diretamente) não significaria problema se fosse o contrário: mesmo enfatizando o purismo como traço do brasileiro, do subdesenvolvimento, seria positivo que a música brasileira se pusesse no lugar de desenvolvida, que superasse seu purismo e influenciasse o jazz, para não mais haver o ―complexo de inferioridade‖.

Adiante, saindo em defesa do músico Sérgio Mendes e contrariando os argumentos de José Ramos Tinhorão, Caetano ainda afirmou que:

– Caetano: Eu também poderia dizer que o sujeito tem o direito de não se prender a características nacionais. Mas, de qualquer maneira, se a suposta desnacionalização do trabalho de um artista pode vir a ser um piche para ele, há a defesa de que no caso de um cara que está interessado num determinado campo de arte [no jazz, nesse caso] em outro país não implica uma desnacionalização do trabalho dele. Tudo isso é muito difícil de falar, é muito complicado (SOUZA, 2009, p. 159).

Há uma problemática que ronda esse argumento de Caetano Veloso ao trazer para o centro do debate a figura de um músico que, assim como muitos, não necessariamente utilizava a música para defender um projeto de brasilidade. O compositor acaba enveredando novamente para a questão essencialista da identidade nacional que ainda estava em voga à época, justamente em um momento de tensão, de tentativa de legitimação ideológica. Uma identidade que acolhe o universal, mas se mantém identificável e legítima por certos critérios de autenticidade e originalidade.

De qualquer maneira, fica claro que Caetano, por ser um grande representante da MPB, saiu em defesa da BN e de todo e qualquer manifestação musical que cria algo novo a partir de novas experimentações, das várias informações e elementos culturais, bem como o fez na Tropicália. Não raro, em seu livro Verdade Tropical, publicado em 1997, o artista afirmava que os músicos da pré-bossa e os do sambajazz, como Sérgio Mendes, ao contrário da BN, teriam feito uma ―americanização algo tola‖ e que preferia a ―religação feita entre a ponta da modernidade e a melhor tradição brasileira‖ feita por João Gilberto (VELOSO, 1997, p. 226).222

A defesa do jazz na música brasileira no discurso de Caetano é, neste sentido, a defesa da ―legítima BN‖ representada em João Gilberto e, por conseguinte, a defesa da ideologia tropicalista que sempre se referia ao compositor como o precursor da ―linha evolutiva‖ musical brasileira. Trata-se do embate entre a modernidade e a tradição, novamente em busca de uma música brasileira que possa ser revolucionária, original, autêntica e vendável.

Entretanto, e em relação àqueles que não necessariamente enveredavam por esta linha evolutiva? Qual seria a classificação, ou o lugar desses indivíduos dentro dessa via

222 Caetano (apud CAMPOS, 1974, p. 201), porém, confessou a influência de certos artistas de jazz: ―ouvi jazz, principalmente cantores (Billie Holiday, e os blues tradicionais me encantaram mais que o Modern Jazz Quartet)‖.

nacionalista-tropicalista? Por que tratar dessa questão seria, afinal, tão difícil e complicada para Caetano já que o Tropicalismo prezava pela mistura musical?

Supõe-se que, justamente porque Sérgio Mendes não agia nos limites da BN, nem do Tropicalismo, mas sim, pura e simplesmente, buscava executar o jazz sem agendas ideológicas ou projetos de brasilidade. Um indivíduo que não fomentava a dita síntese tão perseguida, tal como circunscrita pela via internacional-popular da Tropicália. Ainda que defendido por Caetano, Sérgio Mendes representava um possível desvio da evolução da música brasileira.

É sabido que o teor internacional-popular no discurso de Caetano buscava legitimidade por meio da modernização antropofágica, visando correlacionar aspectos da cultura nacional com o consumo mundial. Tratava-se de uma estética nacionalista cuja essência perpassa todo um acabamento padronizado na montagem tropicalista, flertando com as ―referências culturais mundializadas‖ (ORTIZ apud SANTOS, 2015, p. 61), mas sem perder sua brasilidade, única garantia de originalidade.

Por isso mesmo, nem toda a comercialização era bem-vinda. Não há amarras ideológicas tão visíveis e impositivas na Tropicália quanto as de Tinhorão, obviamente, mas ainda assim, vislumbra-se um juízo de valor e um lugar distinto para sujeitos como Sérgio Mendes neste projeto de brasilidade:

– Caetano: De qualquer maneira, o Sérgio Mendes era um cara que dentro do Brasil estava interessado em jazz [...]. Quando ele foi pros Estados Unidos ele descobriu que o que interessava aos americanos eram as características diferentes das coisas que os próprios americanos fazem. Interessava comercialmente pras pessoas que estavam empregando ele, e hoje ele está enganando as pessoas por isso. Ele descobriu que, na verdade, o que venderia mais seria uma característica brasileira diferente com um nível de produção americana, com aquela sabedoriazinha comercial americana de utilizar certos ritmos brasileiros pra dar uma coisa mais ou menos exótica. Isso é um negócio que o Oswald de Andrade chamava de macumba pra turista, entende? (SOUZA, 2009, p. 159).

Diante desta discussão identitária, vale ressaltar que ―a questão nacional, da identidade brasileira, era fundamental em Oswald e nos tropicalistas, apesar de serem críticos da visão dos chamados ‗nacionalóides‘‖ (RIDENTI, 2000, p. 314). Portanto, os comentários tecidos por Caetano fazem lembrar que o Tropicalismo pode ser visto tranquilamente como outra via do nacional-popular que incorporava e parodiava os nacionalismos à direita e à esquerda e que, por isso mesmo, criou seus próprios dilemas.

Neste sentido, acredita-se que a ambiguidade de Caetano no trato com o jazz parte justamente da operação estratégica de ―destruir‖ a noção purista de brasilidade ao modo de

Tinhorão. Esvazia-se o sentido deste ideário radical, julgando-o anacrônico, mas não sem antes tentar substituí-lo por uma ―verdade tropicalista‖, verdade esta que se apresenta como motivo condutor do movimento nos discursos de Caetano.

Então, pode-se inferir que o jazz passa a ter um lugar cativo no discurso tropicalista, contudo isto é possível justamente dentro de uma noção mitificada do Tropicalismo. Neste entendimento a Tropicália passa a ser apresentada cada vez mais como uma ―verdade contínua e continuamente revalidada no cenário nacional‖ (SANCHES, 2000, p. 25). Desta forma, é permitido ser brasileiro e tocar jazz, mas esta opção estará sempre aquém dos