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3 O NACIONALISMO DE TINHORÃO E AS DISSONÂNCIAS AMPLIFICADAS

3.3 Samba: o início, o fim e o meio de resistência ao jazz

3.3.1 Há perigo na esquina e na periferia da modernidade

Como se destacou anteriormente, entre o final dos anos 50 e início dos anos 60, a intelligentsia da música popular brasileira passou a defender uma maior valorização e preservação do samba frente às influências musicais externas que aportavam no país. Foi nesse ínterim que se desenvolveram e expandiram novas tecnologias, como a televisão; o LP de 33 rpm; o disco de 45 rpm e, posteriormente, o disco de 78 rpm; a utilização de novos

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instalada‖ (MELLO; SEVERIANO, 1998, p. 83). ―Opinião‖ (encenado por João do Vale e Zé Kéti) se tornaria um musical e título também de uma música associada à BN engajada que criticava a ditadura, ―daí a razão do sucesso e do musical, que instituiu um esquema de contestação ao regime, logo adotado por diversos grupos‖ (MELLO; SEVERIANO, 1998, p. 86-88), o que demonstra a utilização do repertório regional como estatuto de autenticidade e arma de resistência nos anos 60.

137 Cf. http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/ver/herminio-bello-de-carvalho. Acesso em 30/09/2017.

138 Este termo é utilizado por Fernandes (2010, p. 41) para designar aqueles agentes preocupados com questões ―maiores‖ ao tratarem da música popular, ―tais quais as de ordem política, econômica, nacional etc.‖. O autor frisa, ainda, que na confluência entre os êmicos e os éticos havia uma espécie de ―retroalimentação‖ discursiva na formulação de ―verdades‖ sobre o campo da música popular brasileira.

métodos de gravação de sons por intermédio de fitas magnéticas; a máquina de múltiplos canais, que substituiu o antigo registro de cera; além das então modernas eletrolas, denominadas ―Hi-Fi‖ (MELLO; SEVERIANO, 1997,1998).

Em relação aos instrumentos musicais, o músico de sambajazz Fernando Lichti recorda que nos anos 60 houve ―uma ebulição musical, inclusive por causa da tecnologia muito modesta que existia na época, então a música era improviso‖.139 Como se pode

perceber, o comentário do músico indica que, naquele momento, a insipiente aparelhagem tecnológica influenciou nas execuções instrumentais, causando um boom de bandas influenciadas pela forma de improvisação do bebop e do hard bop.

Logo, o aparato tecnológico se tornou alvo dos que prezavam pela ―pureza‖ da música brasileira, pois, por meio da indústria cultural, se disseminava o repertório do jazz via cinema, discos e programações de rádio. Em relação ao rádio, foi nessa época que aumentou a influência dos programadores (disc-jockeys) quanto ao gosto dos ouvintes, que consumiam um repertório formado majoritariamente por músicas estrangeiras, muitas das quais se tornaram os novos sucessos daquela época (MELLO; SEVERIANO, 1997).

Então, como se pode perceber, não apenas os novos instrumentos musicais, sistemas de gravação, mas também, os meios de comunicação massivos foram cruciais para as mudanças no cenário musical brasileiro. Por causa disso, Tinhorão não se furtou a criticar os momentos em que houve uma suposta influência nociva desses meios tecnológicos na música popular brasileira140.

Sobre esta questão, Paixão explica que:

para o pesquisador [Tinhorão] todos os meios de difusão – disco, rádio e depois a TV – foram palcos de divulgação da música americana e da música nacional que mais se assemelhasse com a música dominante. A nova produção musical em quase nada lembraria os primeiros sambas-canções, mas teria se constituído em uma música que incorporava um modo novo de cantar – um modo sussurrado – e orquestrações americanizadas, elementos que desaguariam na Bossa Nova (2013, p. 24-25).

Percebe-se que, na visão de Tinhorão, os próprios meios de comunicação massivos ameaçavam as bases originárias sociais da música popular. Em suas obras, o próprio Tinhorão diversas vezes traça um paralelo que busca comprovar que, com o avanço da tecnologia e dos

139 Cf. http://www.sescsp.org.br/online/artigo/9450_50+ANOS+DE+SAMBAJAZZ#/tagcloud=lista. Acesso em 03/07/2016.

140 Em se tratando dos momentos de evidente avanço tecnológico e de impacto da cultura norte-americana no Brasil, Napolitano (2000) entende que, na visão de Tinhorão, a década de 1960 vislumbrou muito mais danos à música popular brasileira que a década de 1930, período marcado pela chamada Era do Rádio.

meios de comunicação, a música ―autenticamente‖ brasileira passou por um processo de descaracterização em decorrência de influências danosas, até chegar à BN.

Trata-se, portanto, de uma ―linha degenerativa‖ que se alastra pela música brasileira a partir da chegada de bens tecnológicos. Isto porque para Tinhorão a divulgação massiva privilegiava os gêneros estrangeiros, contribuindo para a descaracterização da produção musical nacional:

E foi assim que, quando a esse sistema de gravações em cilindros, ainda muito precário, se acrescentou à novidade do disco, a partir do início do século XX, a música estrangeira, divulgada pelos gramofones, começou a disputar o mercado brasileiro, efetivamente, ao lado da música nacional. Estabelecida essa possibilidade de competição industrial-comercial, a música popular brasileira, enquanto produto cultural passou a sofrer a influência do concorrente estrangeiro. E como a nascente classe média urbana da nova era industrial do início do século XX entrava a identificar-se com os padrões do equivalente da sua classe nos Estados Unidos, o disco — primeiro grande instrumento de divulgação de música na era tecnológica — passou a contribuir para a popularidade, não da música popular brasileira, mas exatamente da importada.141

Essa postura defensiva e de ataque à modernidade e ao capitalismo pode ser lida como um traço compartilhado pelo romantismo revolucionário que circundava o pensamento das esquerdas nos anos 60. Porém, as ideias de Tinhorão sobre a cultura popular urbana partiam de uma síntese distinta do pensamento folclorista, antes a valorizando como a verdadeira manifestação popular, diferenciando-se dos cepecista, como já foi abordado.

Porém, buscando classificar a posição de intelectuais como Tinhorão, Araújo (2013) optou por colocá-lo também no grupo ―nacional-popular‖, pois para o autor o livro de Tinhorão foi ―produzido num período em que o determinismo econômico imperava na maioria das análises marxistas‖ e, portanto, ―traz uma interpretação da cultura fundada numa certa leitura do materialismo histórico, com que estabelece relações de determinação entre os níveis econômico e cultural da sociedade‖ (2013, p. 340).

Então, ―esse colonialismo cultural estrangeiro, na área da música popular, seria imposto ao povo do país economicamente dominado‖ (TINHORÃO, 1998, p. 11-12). Isso aconteceria pela via econômica no momento de transformação da música urbana em mercadoria e ao se destinar ao lazer por meio de ―um complexo industrial eletro-eletrônico de grande peso na economia mundial‖ (TINHORÃO, 1998, p. 11-12).

Neste raciocínio, a música projetada para os países desenvolvidos seria aquela que já passou por um processo de produção, de investimento de capital e que será vendida sobre a

―chancela de atual‖. E, assim, ―o som importado leva os consumidores nacionais ao desprezo pela música do seu próprio país, que passa então a ser julgada ultrapassada e pobre, por refletir naturalmente a realidade do seu subdesenvolvimento‖ (TINHORÃO, 1998, p. 13).

Tal direcionamento era marcado muito por conta da orientação do PCB no início dos anos 60 que direcionava o debate para ―o capitalismo dependente, cuja tendência dominante atrelava-se a gigantescos monopólios e oligopólios presos ao capital financeiro de origem norte-americana‖, e também pela ―discussão sobre a concentração fundiária ligada às elites empresárias brasileiras‖ (CONTIER, 1998, s/p.).

Contudo, à luz do debate levantado por Napolitano em sua palestra Música: entre o popular e o erudito, pode-se perceber que Tinhorão se afastava da noção do ―nacional- popular‖ gramsciniano, ao optar pela total negação do material estrangeiro. Isto porque no pensamento de Gramsci perpassava a ideia de síntese, de mistura entre o material folclórico e o estrangeiro, apontando para um projeto ―em busca de um idioma cultural‖.142

Ao negar essa linha marxista de pensar a cultura, Tinhorão acaba trazendo para o debate questões sobre o imperialismo e não um interesse na produção de uma música que sintetizasse as várias informações e procedimentos que circulavam por intermédio dos meios de comunicação de massa. Mas, sobretudo, levava o debate sobre alienação musical ao seu sentido mais positivista: o de uma ―linha degenerativa‖, ou ―involutiva‖ da música popular brasileira.

Em termos culturais, de uma identidade nacional com seu símbolo principal (a música urbana) maculado pela presença de elementos de outra cultura. E, assim, para Tinhorão, um dos problemas dessa modernização tecnológica perpassava a descaracterização progressiva dos elementos tradicionais da música popular brasileira, mesmo que esta estivesse voltada para o ambiente mercadológico.