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2 OS AMALGAMAS DO JAZZ: UM PANORAMA DE SUAS ORIGENS ÀS

2.3 To be-bop or not to be cool? As alternativas de modernidade do jazz

2.3.1 De volta às origens: o ―revivalismo‖ e a produção de sentidos sobre o jazz

Depois de apresentar informações sobre o universo do jazz, tomando como recorte suas origens e algumas escolas modernas – sendo estas escolas as principais influências da BN, do sambajazz e do sambalanço, como se verá –, o presente tópico visa dar atenção a alguns fatores no consumo e na forma de tratamento que uma parcela considerável do público estrangeiro (europeu e norte-americano) deu ao jazz entre os anos 1930 e 1950. São informações bastante úteis para a análise que se fará a respeito das sínteses e sentidos forjados em torno do jazz por Tinhorão e Tárik de Souza.

Ao tratar sobre as formas de consumo do jazz na Europa e EUA, Hobsbawm (2011, p. 93-95; 2016, p. 457) demonstra que o período que vai dos anos 30 ao final dos anos 50 foi fortemente marcado por um intenso movimento de revival (―renascimento‖) do jazz ―puro‖.

61―Refere-se à costa leste dos EUA onde estilos e escolas de jazz, no caso o bebop, stride, hard bop, etc., eram liderados pela cidade de New York‖ (JACQUES, 2005, p. 113).

62 ―Denominação do jazz produzido na costa oeste dos EUA, principalmente na Califórnia a partir dos anos 50 e que se tornou uma escola [...] um jazz musicalmente mais cerebral, mais elaborado, mais arranjado, adicionando instrumentação inusitada [...] como flauta, trompa, trombone [...]‖ (JACQUES, 2005, p. 333).

63 ―Escola de jazz surgida em fins dos anos 50 e nos anos 60, embalada pelo que se denominou de ‗movimento de vanguarda novayorkino‘ caracterizando por adotar um estilo completamente livre. Livre de ligações formais harmônicas e rítmicas, utilizando-se de escalas atonais e de temas modais ou ainda baseadas em modos exóticos‖ (JACQUES, 2005, p. 134). Entre alguns de seus iniciadores estão: Ornette Coleman, John Coltrane, Cecil Taylor, Don Cherry, Archie Shepp e os conjuntos Art Ensemble of Chicago e Sun Ra‘s Arkestra. (JACQUES, 2005).

Como pontua Jones (1967 p. 207) ―formaram-se corpos completos de crítica em torno do debate destituído de sentido, a respeito de ‗qual era o verdadeiro jazz‘‖. Esses movimentos, segundo Hobsbawm (2011, p. 94), não surgiram ―nem da lógica interna do desenvolvimento do jazz – isto é, de tendências que evoluem a partir dos próprios músicos – nem da lógica do comercialismo‖. Em outras palavras, essas grandes campanhas possuíam uma lógica própria, forjada em seu campo e ―eram quase que totalmente produtos de doutrinas intelectuais destinadas, antes de qualquer coisa, a redescobrir as fontes esquecidas e ‗puras‘ do jazz e da música folclórica que havia por trás‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 94).

Como se pode perceber, esse resgate ao jazz ―verdadeiro‖ foi encabeçado por produtores, pesquisadores, músicos, intelectuais, escritores, e críticos musicais especializados em prol da produção, divulgação e preservação do jazz ―autêntico‖. As empreitadas privilegiaram, nesse sentido, apenas os estilos Dixieland e New Orleans, analisados anteriormente.

Diz-se, ainda, que havia uma clara motivação à esquerda de retornar às ―origens do movimento político norte-americano‖ e, por conseguinte, ―às origens da cultura americana‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 95). Esse posicionamento podia ser uma resposta à tentativa de outros grupos em incutir no jazz seus valores ideológicos liberais, valores esses que, também, tiveram um impacto significativo na simbolização do jazz.64 Assim, no período que compreende de 1930 a 1940, viu-se ―os intelectuais indo ao povo‘, coletando, gravando e cantando a sua música com satisfação‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 95).65

Tal posicionamento angariou simpatizantes entre os amantes e críticos de jazz na Europa, que pregavam o retorno às origens do jazz mais como um protesto contra o comercialismo. Assim, ―os colecionadores e críticos começavam a organizar sistematicamente gravações de artistas de blues e jazz esquecidos‖, pois visavam ―recapturar o jazz quintessencial, que era o de New Orleans‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 95).

A partir de então, os críticos e produtores franceses – que regulavam e controlavam a importação de discos e, em consequência disto, impuseram seu gosto musical ao público,

64 Hobsbawm (2016, p. 473) comenta que a Era do Swing coincidiu com a era de Roosevelt e, nessa época, surgiu uma espécie de ―ideologia do swing‖. Esta ideologia (presente em revistas especializadas famosas como a

Downbeat de Chicago) pregava o antirracismo, a igualdade e a liberdade, mas se esforçou para propagar o jazz como um sinônimo de modernidade e de busca pelo progresso. Esta posição era uma resposta à esquerda norte- americana que visava utilizar o jazz como ferramenta de protesto. Assim, para os defensores da ―ideologia do swing‖, o jazz deveria simbolizar o anticomunismo e o antinazismo, com a finalidade de instrumentalizá-lo em prol do american way of life.

65 Nesse momento, o blues e os spirituals, por exemplo, foram utilizados em movimentos sindicais, muito por conta do impacto do New Deal (HOBSBAWM, 2011, p. 94). Trata-se de uma referência ao Public Works of Art

Project, de 1933, no qual a ―arte de qualidade‖ deveria exprimir valores nacionais da cultura norte-americana. Para saber mais cf. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo401/arte-do-new-deal

iniciando uma série de gravações influentes no universo do jazz (HOBSBAWM, 2011). Nomes como o de Hugues Panassié e de Frederic Ramsey Jr., produziram, respectivamente, discos apenas do estilo New Orleans e livros pioneiros da historiografia do jazz (como a obra Jazzmen, de 1939), que refletiam o mesmo interesse de culto ao jazz ―verdadeiro‖.

Assim, ―no mundo internacional dos amantes do jazz, cada uma dessas gravações e publicações [...], criava sensação‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 96). Durante a Segunda Guerra, esses mediadores culturais iniciaram a busca por músicos idosos e aposentados ―comprando dentaduras e trompetes para tanto e lançando-os para um público receptivo de jovens brancos‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 96).66

Hobsbawm (2011) demonstra, ainda, que o revivalismo se espalhou por várias partes da Europa e Estados Unidos, entre os anos 40 e 50. Foi por essa época que se iniciou as publicações da revista francesa Le Jazz Hot, cujos fundadores e editores foram Hugues Panassié e Charles Delaunay, e que contava com o patrocínio de alguns intelectuais vanguardistas (HOBSBAWM, 2011).67

Após o surgimento dos estilos modernos de jazz, essas campanhas ficariam ainda mais acirradas. Diz-se que ―esse movimento começou como um processo muito saudável de conscientização das fontes do jazz [...], mas isso não tardou a degenerar-se numa visão clichê e simplista do ‗jazz tradicional‘, fortemente rejeitada pelos músicos afro-americanos‖, e, portanto, ―não havia nessa Dixieland-renaissance um único músico importante de pele negra – por mais surpreendente que isso possa parecer‖ (BERENDT; HUESMANN, 2014, p. 42).

Desta forma, ―sob a influência da sonoridade então vanguardista do bebop, muitos amantes do jazz se afastaram do desenvolvimento musical de seu tempo‖ e, assim, ―com aferro crescente, passou-se a valorizar as origens do jazz e o ideal de uma música simples. Foi quando aconteceu o renascimento do jazz de New Orleans, um revival como se dizia então, que se espalhou pelo mundo‖ (BERENDT; HUESMANN, 2014, p. 42).

O surgimento do jazz moderno marca, então, um momento de radicalização do discurso de ―autenticidade‖ do jazz, contribuindo para o surgimento de duas escolas críticas bastante influentes no trato com a história do jazz: os Tradicionalistas e os Modernistas. Como indica Hobsbawm:

66 Hobsbawm pontua, porém, que, nos anos 40, ―os jovens negros eram imunes ao movimento de restauração‖ (2011, p. 96), e que, ―o jazz ‗revivalista‘ não [era], absolutamente, uma música para públicos de cor, mas para jovens intelectuais brancos‖ (2011, p. 103).

67 Diz-se que esses autores escreviam muitos livros mesmo com parcos conhecimentos sobre música, ―mas as proverbiais certeza e lucidez gálicas os ajudavam, e o resto do mundo escutava‖ (HOBSBAWM, 2011, p. 310). Os músicos revivalistas, igualmente, eram, em geral, amadores (HOBSBAWM, 2011).

O público de jazz sempre esteve dividido, porém antes da revolução modernista normalmente essa divisão só se dava em termos de ―puristas‖ e ―impuristas‖; isto é, entre aqueles que queriam preservar o jazz das inovações porque acreditavam que levava, em última instância, ao horror da comercialização, e aqueles que reconheciam relutantemente que nem todas as inovações transformavam o jazz em música pop. O modernismo, porém, produziu escolas de ―puristas‖ rivais, embora em seus primeiros estágios, os defensores do jazz ―puro‖ do velho estilo quisessem vê-lo apenas como mais um novo truque comercial. O jazz moderno, no entanto, estava longe de ter como objetivo o apelo de massa (2011, p. 148).

Essas escolas críticas ajudariam a formar uma verdadeira polifonia discursiva, na qual a musicalidade do jazz, suas escolas, trajetória, enfim, sua história constituiria um campo de disputas, imaginários e construções simbólicas em torno do gênero musical. Nomes como o de Robert Goffin, Hugues Panassié, Gilbert Chase, Rudi Blesh, Rex Harris, Ernest Bornerman, Bill Russel, Nestor Oderigo e Charles Edward, empreenderam estudos, programas de rádio e produções no meio musical, a fim de preservar o jazz ―autêntico‖, motivando o revival do jazz tradicional.

O principal argumento desse grupo era o de que o bebop rompia com suas raízes negras, com o blues, portanto, não era ―hot‖, como os estilos tradicionais já comentados.68 Por

isso, tais autores apresentaram, muitas vezes, o discurso de ―decadência do jazz‖, baseados na noção de que o jazz moderno estava voltado para o consumo apenas da camada média branca e intelectualizada, ao contrário do hot jazz.69 Isto tudo significa que para esses tradicionalistas a ―autenticidade‖ do jazz residia em questões raciais, sendo os negros os ―verdadeiros‖ músicos de jazz e os brancos, os ―falsos‖ ou ―imitadores‖. Curiosamente, estes estereótipos foram difundidos em obras de historiadores brancos (HOBSBAWM, 2011, p. 334).70

68 Porém, Hobsbawm (2011, p. 151.) ressalta que o bebop, por exemplo, não abandou o blues: ―o blues está no coração do jazz moderno como no de todo jazz‖.

69 Neste ponto, convém desmistificar que essas vertentes do jazz haviam ―embranquecido‖. Jones (1967, p. 213) informa, por exemplo, que: ―a ‗aspereza‘ e a ‗assimetria‘ do bebop estavam muito mais próximas do conceito afro-americano tradicional da música do que a maioria de seus detratores jamais se deu ao trabalho de compreender‖ e que ―o termo [cool] jamais pretendeu conotar a nova música popular morna da classe média branca medianamente intelectualizada. Ao contrário, era exatamente essa América diante da qual se devia ser cool (calmo)‖ (1967, p. 216). Já, Berendt e Huesmann (2014, p. 47-48) afirmam que, a partir dessas vertentes modernas, ―a ‗música negra‘, tal como difundida por muitos músicos e também pelo escritor e ideólogo LeRoi Jones (Amiri Baraka), tornara-se mais negra que nunca, pois seu principal elo com a música europeia – a organização harmônica – havia se quebrado‖. Sobre essa discussão cf. CARLES, Phillippe; COMOLI, Jean- Louis. Free Jazz/Black Power. American Made Music Series, University Press of Mississippi, 2015. Ou, também: a dissertação de Edimar Luciano Silva, intitulada We insist freedom now suite: o ativismo político de

Max Roach no movimento de direitos civis através do jazz (Estados Unidos, 1950-1960).

70 Quanto a esses estereótipos, trata-se de um debate que resultaria em outros problemas, ultrapassando os limites deste trabalho. Cabe apenas informar sobre o que o pesquisador Les Back (2004, p. 219) chamou de ―colorização do som‖, questionando os estereótipos racistas construídos nos EUA, quais sejam: a visão do ―branco imitador/deturpador‖ e do ―negro inventor/produtor‖, e vice-versa. Para saber mais sobre o conceito cf. WARE, Vron (org.). Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

Embora essa questão extrapole os limites deste trabalho, vale pontuar que para Castro (2007, p. 44) isto não passava de um ―mito romântico do jazzista como uma espécie de ‗bom selvagem‘‖, criado pelos críticos franceses. Ou seja, segundo o autor, tratava-se de um discurso racistas desses pesquisadores, pois estavam temerosos de que a comercialização e apropriação do jazz pelas camadas médias brancas ameaçasse a ―pureza‖ do gênero.

Em contrapartida, havia um grupo que se colocavam contra o jazz ―primitivo‖: os chamados Modernistas. Essa vertente foi formada por nomes como André Hodeir, Leonard Feather e Barry Ulanov e defendiam a modernização do jazz.

Por fim, houve um subgrupo que defendia uma linha estética ―eclética‖, com o discurso de superação daquelas outras escolas. Entre eles estão, Marshall Stearns, Nesuhi Ertegun, Charles Delaunay e Nat Hentoff. Esses foram alguns dos autores que se confrontaram por meio de suas produções e discursos nesse período.71

Vale cravar que nessa época, não apenas esses autores influenciaram alguns críticos de música brasileiros por meio de suas empreitadas editoriais, como há indícios de que muitos deles chegaram a contribuir em artigos publicados em jornais e revistas brasileiras. Na RMP, por exemplo, houve vários artigos de Nestor Ortiz Oderigo72, Frederic Ramsey Jr. e Eugene Williams, acerca do ―verdadeiro‖ jazz.73

A hipótese de Labres Filho (2014) de que as primeiras publicações de jazz brasileiras tinham um discurso muito similar às estrangeiras faz mais sentido ao ver que a invenção de um jazz ―autêntico‖ ia além da mera questão estética. Como se viu, estas narrativas foram historicamente construídas e tiveram, muitas vezes, motivações claramente ideológicas.

Pode-se dizer que a síntese que se fez do jazz pela crítica brasileira dos anos 50 e 60 foi influenciada por essas visões, pois o padrão de consumo de jazz esteve atrelado a esses empreendimentos estético-ideológicos. É necessário pontuar sobre como isso se apresentou em uma das revistas mais influentes do período, a RMP. O objetivo é apenas demonstrar como o jazz estava sendo abordado em uma das fontes de pesquisa de Tinhorão e uma referência para Tárik de Souza.

71 Os próprios fundadores da Le Jazz Hot, Panassié e Delaunay se desentenderiam por conta dessas interpretações divergentes (MELLO, 2014).

72 Quanto à publicação em outros suplementos brasileiros, Nestor Oderigo publicou artigos nas revistas Pensamento da América (Rio de Janeiro) e Quilombo (Rio de Janeiro). Mais informações cf. ODERIGO, Nestor Ortiz R. Estetica del jazz, Buenos Aires: SAEC, Recordi Americana, 1951.

73 Críticos como Eugene Williams, aliás, estavam vinculados a um grupo de puristas que muniam uma devoção quase apostólica somente ao jazz tradicional e a tese que música brancos eram incapazes de tocar o jazz fidedignamente. Para mais informações cf. SUHOR, Charles. Jazz in New Orleans: The Postwar Years through

1970. Studies in jazz, 38. The Scarecrow Press Inc. Lanham, Md., & London, and Institute of Jazz Studies, Rutgers – The State University of New Jersey, 2001. Mais informações sobre esses e outros críticos de jazz cf. GENARI, John. Blowin’ hot and cool: jazz and its critics. The University of Chicago Press, Chicago, 2006.

2.4 Crônicas de uma decadência anunciada: uma possível contribuição da RMP nas