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3 O NACIONALISMO DE TINHORÃO E AS DISSONÂNCIAS AMPLIFICADAS

3.3 Samba: o início, o fim e o meio de resistência ao jazz

3.3.3 Uma questão de classe(s)

Ao analisar a metodologia de análise de Tinhorão, Paixão (2013) relembra as considerações do historiador sobre a função da classe média carioca em um suposto processo de desenraizamento daquela considerada como a legítima música popular brasileira, pois ―para Tinhorão tratava-se de uma classe média sem identidade nacional, o que facilitou, tempos depois, mudanças na estrutura do samba e a penetração de valores dos grandes centros no Brasil‖ (PAIXÃO, 2013, p. 21).

Portanto, a questão de classe surge imbricada à questão de uma identidade autêntica em seus estudos, a fim de provar como um grupo pode se apropriar e deturpar a cultura popular de maneiras distintas ao longo da história.

O autor entendia as questões culturais como ―reflexo da sociedade de classes‖, sendo as ideias de Marx ―usadas por ele como elemento propulsor da cultura popular (operária/camponesa) – esta sim representando a ‗autenticidade‘ do Brasil‖ (LAMARÃO, 2008, p. 09). Residiria nas diferenças culturais entre as classes, ao mesmo tempo, o fenômeno que forjaria a síntese das diferentes culturas, a delimitação do ―povo‖ e, por conseguinte, o

154 Ortiz (1994) pontua que intelectuais como Corbisier esforçaram-se em implantar a visão dualista e hegeliana centrada na relação entre colonizado e colonizador, incutindo a questão da dominação cultural. O colonialismo se daria, nesse sentido, pela ―exploração econômica das matérias primas e importação de produto acabados‖ (ORTIZ, 1944, p. 58). Ainda segundo o autor, esta analogia com a economia ―[levou] alguns autores a afirmar que a importação do Cadillac, da Coca-Cola, do chiclete, do cinema [implicaria] o consumo (antropofágico?) do Ser do Outro‖ (ORTIZ, 1944, p. 58). Essa análise equivocada e um tanto pessimista, segundo Ortiz (1994, p. 58), ―marca até hoje as discussões sobre cultura brasileira‖, mencionando, por exemplo, as críticas dirigidas à penetração da música soul nas comunidades negras brasileiras.

aparecimento dos símbolos nacionais por excelência. Na música, destacam-se o choro e o samba.155

Entretanto, seria justamente na fronteira e na desarmonia entre as classes (paradoxalmente, o fator fundante do Estado Brasileiro moderno e da unidade nacional) que atuariam as forças determinantes para o reconhecimento dos ―autênticos‖ e os ―inautênticos‖ músicos populares brasileiros. Assim, ao fazer novamente a comparação da música brasileira com o jazz, Tinhorão defendia que

o problema da evolução da música popular está diretamente ligado a um processo geral de ascensão social, que faz com que a música das camadas mais baixas seja estilizada pela semicultura das camadas médias [...], para acabar sendo ―elevada‖ à categoria de música erudita pelas minorias intelectualizadas. É isso que explica que o jazz, por exemplo, tenha nascido entre os negros de Nova Orleans, criadores de

blues e spirituals ainda improvisados, para depois passar, sucessivamente, à comercialização dos jazz-bands de Chicago e Nova Iorque, e, finalmente, acabar na pretensão encasacada dos crioulos do Modern Jazz Quartet, que andam pelo mundo (e ainda há tempos estiveram no Municipal) divulgando à custa do Departamento de Estado a nova cultura universal norte-americana (1970, p. 59, grifos nossos).

Nesse sentido, Naves (2010) pontua que a recusa de Tinhorão em relação à BN, embasava-se, primeiro, pela crença na falta de autenticidade do gênero musical, uma vez que este apresentava procedimentos do jazz, e porque esta criação havia sido feita por jovens oriundos da camada média da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Napolitano (2006, p. 1143) informa que, para Tinhorão, ―a trajetória da música popular no Brasil era o maior exemplo de ‗expropriação cultural‘ das classes populares (rurais e urbanas) pelas elites, representadas pela classe média ‗branca e americanizada‘‖. Por conta disso ―com a Bossa Nova e com o primeiro ciclo dos festivais da canção‖ esse processo ―teria se tornado irreversível, articulando-se a um poderoso esquema de produção comercial de canções voltadas para a classe média consumidora‖ (NAPOLITANO, 2006, p. 1143).

Tal argumento alcançaria até mesmo alguns artistas vinculados à BN. Em um debate intitulado O Universalismo e a Música Popular Brasileira, publicado na edição de Setembro/Dezembro de 1968 da RCB, o compositor Sidney Miller declarou que essa questão

155 Em seu ensaio, Fernandes (2005) pontua que não há indícios de que Tinhorão tivesse tido contato com os intelectuais formadores da chamada Escola de Frankfurt, especificamente Theodor Adorno e Max Horkheimer. Contudo, para o autor, já em tempos de jornalista, Tinhorão adaptava o método da tradição materialista-histórica para analisar a música popular urbana brasileira o que o colocava ―tanto contra a corrente marxista no campo das ciências sociais, para quem tais estudos não valiam um vintém em razão de a cultura – sobretudo a popular – não se alçar à categoria de objeto de análise legítimo‖ e também ―contra a corrente idealista, que enxergava nas obras artísticas a pura manifestação imediata de alguma ‗essência‘ humana‖. O texto está disponível em: https://www.academia.edu/18919991/Jos%C3%A9_Ramos_Tinhor%C3%A3o_Uma_an%C3%A1lise_cr%C3% ADtica_de_suas_vida_e_obra. Acesso em 08/12/2016.

socioeconômica estava supostamente afetando a qualidade musical. O compositor sustentava que a partir da BN, com uma reconfiguração do mercado musical e os novos valores de consumo insurgentes, a influência dos valores capitalistas dos consumidores e dos produtores da classe média eram os principais motivos da ―decadência‖ da música brasileira. Nas palavras de Sidney Miller:

de fato, desde o surgimento da bossa nova, como tentativa de satisfazer os anseios musicais de um novo público consumidor, a interferência desta classe empresarial se faz sentir de forma crescente, com a descoberta dos festivais, com a transformação de compositores e interpretes em ídolos (em que pese a penetração da TV), com a proliferação de falsos valores individuais (de grande interesse comercial e nenhum valor artístico), e outras iniciativas que fazem da música popular um brinquedo de todos, uma catapulta de ascensão social em que o critério seletivo é mais uma questão de aspiração e persistência do que, propriamente, sensibilidade (1968, p. 210, grifos nossos).

Vale ressaltar que Sidney Miller, assim como muitos artistas associados à MPB, vinha da classe média e era universitário, tendo cursado Sociologia e Economia.156 Tal como muitos desses artistas, ele aderiu à BN engajada (combatida por Tinhorão157) e participou igualmente dos famosos festivais da música popular brasileira que critica em seu comentário, experiências que ajudam a situar seu discurso.

Ao associar à BN como marco de um consumismo exacerbado que poria em cheque a qualidade da música brasileira, Miller abre espaço para o argumento defendido por Tinhorão: a ausência de ―autenticidade‖ de uma música produzida unicamente para atender aos anseios consumistas da classe média.

Por tudo isso, eis algo basilar e que diferencia o discurso de Tinhorão em relação à reação folclorista de estudiosos como Francisco Guimarães, Jota Efegê, Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes, haja vista que o folclorismo destes não destacava a luta de classes como eixo definidor do que deveria ser a ―genuína‖ música brasileira.158

Assim, para Tinhorão (1998), a subordinação da cultura nacional (formada pela cultura das elites e pela cultura das camadas populares) às culturas estrangeiras foi sempre um traço da história do Brasil, algo resultante de uma dupla dominação: a classe dominada (a

156 Cf. http://jornalggn.com.br/noticia/70-anos-de-sidney-miller. Acesso em 13/08/2016.

157 Tinhorão (1975, p. 234), aliás, também iria criticar as tentativas de popularização da BN engajada por parte de Miller, como a criação do Movimento de Integração em Copacabana e na Tijuca (por meio do Grupo Corrente e do Grupo Unidade: células do movimento no Rio de Janeiro) e também em Brasília, com o Grupo Decisão. 158 Como esboçado anteriormente, os argumentos contidos nos livros Sambistas e Chorões (1962) e Panorama da Música Brasileira (1964), percebe-se que o jazz surge como uma referência para que se empreendam pesquisas sobre o samba, igualmente. A trajetória de críticos como Lúcio Rangel e Ary Vasconcelos, aliás, demonstra a proximidade que tinham com o jazz, sendo defensores, de maneiras distintas (e ambíguas), do gênero no Brasil. Suas primeiras obras faziam mais um apanhado de relatos e documentos, com o objetivo de discorrer sobre a história do samba. A discussão ideológica ainda não pregava a repulsa ao jazz.

popular) se torna sujeita à classe nacional dominante e esta, por conseguinte, é dominada por outras culturas (TINHORÃO, 1998).

Diante disto, pode-se argumentar que os ataques de Tinhorão à mistura musical – vendo-a como um sinal de crise da música brasileira e que alcança seu auge com a ―decadência‖ proporcionada pela BN – carregam em si uma relação dialógica não apenas com a RPM, mas podem ir mais longe, inclusive, relacionando-se discursivamente com a produção intelectual dos que buscaram inventar e valorizar as ―coisas brasileiras‖, como Afonso Arinos, Gilberto Freyre e, principalmente, Mário de Andrade, no início do século XX.

Tal tese encontra embasamento em Ribeiro (2008, p. 17) quando defende que ―as ideias modernistas esquematizadas a partir da década de 1920, tiveram bastante ressonância naquele contexto, o que evidencia certa continuidade histórica entre tais formulações teóricas e sua aplicabilidade nos anos 60‖.159

Portanto, pode-se supor que ao se preocupar com a ―evolução socioeconômica‖ das classes populares habitantes das zonas urbanas e seu impacto na música popular, Tinhorão apresentou características discursivas atualizadas, não somente em relação aos folcloristas tradicionais, pode-se defender que o autor promoveu também uma operação de atualização do discurso dos folcloristas urbanos dos anos 50.

Tinhorão se assemelha àqueles últimos na medida em que se interessa pela produção musical urbana ―autêntica‖. Mas, diferente deles, instrumentaliza folclore e cultura popular urbana para validar um método histórico e, por conseguinte, utiliza esse elemento diferenciador para sustentar e se legitimar no campo da crítica musical. Percebe-se, então, que Tinhorão compõe uma das vozes que polemiza e oferece sobrevida a essa longa discussão identitária: verdadeira polifonia que se interessou em discutir de maneiras distintas a influência e as consequências do jazz na música popular brasileira.

Assim, estabelecidos os principais pontos do pensamento de Tinhorão sobre o jazz e sobre a BN, analisar-se-á o embate que foi travado entre ele, críticos musicais e artistas da música popular brasileira acerca da influência da música estrangeira no Brasil. Objetiva-se, pois, analisar tais discursos no momento em que se entrecruzaram.

159 Embora tenha tentado se diferenciar dos folcloristas afirmando no programa Roda Viva que ―a música do mundo rural, por exemplo – que cai na área do folclore, não tem nada a ver com o meu campo de estudo‖, não significa que o seu objeto (música popular urbana) seja analisado sem qualquer ranço doutrinário folclorista. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=meTizBT9grY. Acesso em 10/06//2016.