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3 O NACIONALISMO DE TINHORÃO E AS DISSONÂNCIAS AMPLIFICADAS

3.1 Considerações tempestivas sobre o nacionalismo musical dos anos 60

3.1.1 Os ruídos discursivos da crítica musical: defensores da tradição versus detonadores da

Como se procurou demonstrar no tópico anterior, a produção musical dos anos 60 havia sido afetada pelas questões políticas e sociais que se impuseram após o governo JK. Neste cenário de conflitos estéticos e ideológicos, que foram erigidos no seio da música popular brasileira, surge, também, uma resposta daqueles que se propuseram a pensar e avaliar essa mesma produção musical.

Buscando definir, assim, as bases da identidade nacional por meio da produção musical, surgiram, nos anos 60, diversas estratégias discursivas e mecanismos de legitimação no seio da crítica musical brasileira. Estas posturas traziam as marcas das bases ideológicas do ISEB e, posteriormente do CPC, órgãos que, como se viu, intentavam discutir e transformar situação econômica e cultural do Brasil.

Um importante periódico que serviu de espaço para esses embates, documentando não somente os vieses ideológicos que recaíam sobre a música popular brasileira, mas, também, a noção de que esta passava por um período de ―decadência‖ foi a Revista Civilização Brasileira, periódico que começou a circular logo após o golpe civil-militar e que durou três anos, de 1965 a 1968.

A RCB uniu o interesse em discutir e analisar a conjuntura brasileira nos anos 60, chegando a apresentar debates em torno da própria situação da música popular brasileira, o que simbolizava o papel político e ideológico que se refletia sobre a produção musical. Um exemplo evidente está na sétima edição da revista, na qual se promoveu um debate intitulado Que caminhos seguir na música popular brasileira?.103Enne (2008) e Naves (2010)

103 Entre os debatedores estavam Flávio Macedo Soares (crítico), Caetano Veloso (compositor), Nelson Lins e Barros (crítico), José Carlos Capinam (poeta), Gustavo Dahal (cineasta), Nara Leão (cantora) e Ferreira Gullar (poeta). A seção de música abria declarando: ―em virtude da crise atual da música popular brasileira a ‗Revista Civilização Brasileira‘, reuniu músicos, compositores, intelectuais e estudiosos de música popular para um

demonstram que músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto estavam envolvidos nesses debates identitários, podendo, inclusive, serem vistos como parte dessa inteligência da música popular brasileira.

Neste sentido, Naves (2010) comenta que houve nos anos 60 dois principais projetos culturais que discutiam a música popular pelo víeis da ―alta cultura‖. Em outras palavras, haveria um debate sobre a música presente eminentemente no ambiente livresco, intelectual: ainda no domínio das elites culturais que disputavam um lugar hegemônico na cultura brasileira.

José Ramos Tinhorão e Augusto de Campos foram estudiosos que ajudaram a fomentar o debate em relação aos critérios de autenticidade, brasilidade, inovação e originalidade na música brasileira. Em diálogo com os seus pares, influíram na reflexão sobre música popular e seus critérios de brasilidade, chegando a tratar a presença e a influência da música estrangeira no país de diferentes formas.

Mais simpático aos ideais do PCB, acredita-se que Tinhorão herdaria, em parte, o conteúdo programático das chamadas teses de 1958. Isto porque, além de esboçar a confluência entre o nacionalismo e o comunismo, o conteúdo programático das teses se defrontava não com o imperialismo de forma genérica, mas, a partir deste momento, dava-se ênfase no imperialismo norte-americano, apresentando-o como principal responsável pelo atraso econômico do país (DOMINGOS, 2014).

Como esclarece Francischini, a influência externa, que antes era vista com certa dubiedade, se transmutou em completo repúdio pelo jazz:

No âmbito da crítica musical, se elevarão a níveis contundentes as críticas nacionalistas à influência dos gêneros musicais americanos. Assim, encabeçada por José Ramos Tinhorão, essa ala mais radical que, outrora, tinha dúvidas em relação ao Jazz e seus referenciais de musicalidade vão optar pela sua repulsa, com o argumento de que se trataria de uma ferramenta imperialista dos EUA [...]. Já no período entre guerras, na medida em que os Estados Unidos firmavam-se no cenário mundial como uma superpotência – fazendo dos veículos de comunicação em massa um instrumento de difusão de seu ―American way of Life‖ –, os nacionalistas brasileiros fizeram da política imperialista desse país – e do jazz como um símbolo desse imperialismo – o seu alvo preferido (2009, p. 61-62, grifos nossos).

Se por um lado se radicalizou a postura dos estudiosos da música popular brasileira contra a música norte-americana – esboçada de forma diferenciada no começo do século XX com os estudos de Mário de Andrade –, por outro, surgiram vozes dissonantes que se __________________________

debate sobre os caminhos da música popular, que foi organizado e coordenado por Airton Lima Barbosa, do Quinteto Villa-Lôbos‖ (REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1966, p. 325).

apresentaram, muitas vezes, como uma espécie de antítese dessa visão, enveredando pelo discurso da modernização da música popular.

Um dos marcos dessa postura vinculada à ideia de modernização foi o livro Balanço da Bossa, organizado pelo poeta concretista Augusto de Campos e que foi publicado dois anos depois da obra Música Popular: um tema em debate (1966), de José Ramos Tinhorão. Ambas as publicações, entretanto, traziam à tona discussões que se iniciaram no começo dos anos 60 e que se alastraram pelas colunas de música popular de periódicos nacionais.104

Contudo, na época, o próprio Campos (1974) declarou que aqueles estudos sobre a BN publicados em jornais ―passaram despercebidos ao público aficionado em música‖ (1974, p. 11) e, provavelmente por conta disso resolveu-se investir na publicação do livro. Nesse momento, segundo Bollos (2007, p. 231) tem-se ―a mudança da recepção crítica da Bossa Nova, das páginas jornalísticas para o livro impresso, agora com mesmo material crítico do jornal, ou parte dele, reunido em livro‖. A partir de então, aquele material passou a preservar sua ―razão de ser, já que [poderia] ser lido várias vezes ao longo de muitos anos‖ (BOLLOS, 2007, p. 231).

Percebe-se, então, a tentativa de levar a relação de poder à construção de uma narrativa que possa perdurar e se propagar por meio dos livros, sem correr o risco do esquecimento, caso permanecesse meramente nos cadernos culturais.

Foi a partir do Balanço da Bossa que se propagou a visão de críticos, intelectuais e músicos pautados em uma retórica mais estética e densa no trato com as questões técnicas da BN e de outros movimentos musicais brasileiros. Ter-se-á, então, dois grupos: o primeiro formado eminentemente por musicólogos e músicos de formação acadêmica como Rocha Brito (aluno do musicólogo Hans-Joachim Koellreutter na Escola Livre de Música), Luís Cosme, Ricardo Goés, Eurico Nogueira França e Diogo Pacheco.105

A partir desse grupo, segundo Bollos (2007) haveria um subgrupo, mais voltado a uma retórica estético-inventiva, alinhavados pelo discurso de linha evolutiva. Neste grupo estão inseridos: Augusto de Campos, Júlio Medaglia, os irmãos Rogério e Regis Duprat, Damiano Cozzella, Willy Corrêa de Oliveira e o compositor Gilberto Mendes, um dos

104 O Balanço da Bossa se tratou de uma compilação com os mais variados intelectuais e demonstrava não apenas a tentativa de abordar a influência do rock (a exemplo dos Beatles para o iê-iê-iê), do jazz (em se tratando do movimento BN) e de outras influências, mas, também, de confrontar o projeto cultural nacional-popular. Vale lembrar que Campos era adepto dos preceitos concretistas e foi um dos responsáveis por incorporar na literatura brasileira procedimentos desse movimento artístico e cultural de origem europeia. Portanto, a importação de procedimentos artísticos estrangeiros e a busca constante por inovação estética se harmonizavam na visão de Campos, extrapolando o campo eminentemente literário e desembocando na música popular.

105 Outro defensor do jazz na música brasileira que merece destaque foi o jornalista Júlio Hungria, participante de reuniões de jazz com músicos da BN, como Roberto Menescal e Luiz Carlos Vinhas (CASTRO, 1990).

envolvidos na criação do concretista Manifesto Música Nova, publicado na revista Invenção, em 1963. Isto é, logo depois do impacto da apresentação da BN no Carnegie Hall.

Acredita-se que a publicação do Balanço da Bossa não apenas fazia eco ao impacto da BN na opinião pública, mas deixava explícito também o debate polêmico em torno da presença da música estrangeira na cultura brasileira.

Embora Bollos (2007, p. 244) considere a postura de Campos como ―antinacionalista‖ (ou seja, tangencial a de Tinhorão), entende-se que ambas as posturas partiam de parâmetros nacionalistas e se debruçavam, constantemente, sobre as ideias de Mário e Oswald de Andrade.

Em outras palavras, Campos e Tinhorão se remetiam à fortuna crítica modernista, de forma a repaginar a relação entre a música e a identidade nacional e sustentar suas posições estético-ideológicas. Ribeiro sustenta esta afirmação quando esclarece que:

os objetivos desta nova crítica, contudo, permaneceram inalterados, ou seja, engajados na definição de projetos de brasilidade através da música. Acreditamos que todos os agentes sociais em disputa em finais dos anos 50, e, sobretudo, no decorrer dos 1960 cada qual seu modo, tentaram construir símbolos de nossa identidade através da música (2008, p. 137, grifos do autor).

Assim, se por um lado Campos (1974, p. 161) afirmava ser contra ―o nacionalismo ufanista, fechado e fanfarrão‖, por outro, defendia que, ―ao invés do nacionalismo tacanho e autocomplacente‖, a cultura brasileira deveria se voltar para ―um nacionalismo crítico e antropofágico, aberto a todas as nacionalidades, deglutidor-redutor das mais novas linguagens da tecnologia moderna‖.

E, curiosamente, Campos (1974, p. 60) se valeu das concepções modernistas dos próprios Karl Marx e Friedrich Engels para defender o universalismo. Ou seja, dos processos globais que envolviam a experiência da modernidade: o ―intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações‖, uma ―literatura universal‖, etc. Condenava-se, assim, a ―estreiteza e exclusivismo nacionais‖ e ao que tudo indica como resposta às interpretações de Tinhorão.

Desta forma, parte da crítica musical se alinhou ao projeto estético nacional-popular, enquanto outra, ainda defensora dos pressupostos estéticos de modernização – supostamente afastados de questões políticas –, erigidos no período JK, preferiu a tendência internacional- popular. Como se vê, esses pensadores da música popular passaram a endossar a roupagem ideológica, e, assim, promoveram o embate entre ―modernidade versus tradição, engajamento versus alienação, universalismo versus nacionalismo, ruptura versus continuísmo‖, fazendo

crer que, de fato, ―gravitavam de forma homóloga em torno desses binômios tanto os projetos e rumos da arte como os da política nacional‖ (FERNANDES, 2010, p. 52).

Esse quadro de tensões reafirma o que Hall (2016) esclarece a respeito das representações culturais, pois segundo o autor, ―em toda cultura há sempre uma grande diversidade de significados a respeito de qualquer tema e mais de uma maneira de representá- lo ou interpretá-lo‖ (HALL, 2016, p. 20).

No caso de Tinhorão, como indica Ribeiro (2008), havia certas continuidades em suas representações sobre o jazz, herdadas da tradição crítica dos anos 50, como o programa do radialista Almirante106 e pela RMP. No entanto, deve-se destacar que Tinhorão começava a difundir uma concepção radicalizada desses discursos folcloristas, buscando se diferenciar da crítica musical dos anos 50.