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Diversas são as formas de criação e construção de instrumentos levadas a cabo nos territórios de pesquisa. A produção em série, com fim de abastecer um grande contingente de amadores, é uma delas, e opera dentro de uma lógica mais estritamente comercial que outras, como a luteria profissional ou amadora. Este ofício, por certo também voltado para um mercado, embora talvez mais sensível a outros sistemas de valores84, é quem provê os instrumentos utilizados pela maioria dos

violonistas profissionais ou em vias de sê-lo, uma tradição que se deve em parte à melhor qualidade dos instrumentos artesanais e à possibilidade de personaliza-los a partir do diálogo com o luthier. Trata-se de um ofício em geral praticado individualmente85 e de forma artesanal, o que não impede que possam utilizar

tecnologia de ponta. Todos os violonistas abordados neste trabalho utilizavam violões de construção artesanal.

A luteria, considerada a importância que atribuímos ao longo deste trabalho aos violões, não é secundária dentre as práticas violonísticas como um todo. De fato, para o luthier e para o aficionado, ou até mesmo para alguns violonistas, pode chegar a constituir um fim em si mesmo: o violão, centro dos esforços e do desejo de tantos agentes, se torna um objeto de coleção ou veneração, cuja existência mesma é um objetivo a ser alcançado. Tal objetivo pode parecer, a princípio, apenas um “desvio” em relação ao objetivo principal da prática musical, uma espécie de “parada obrigatória” e também transitória, mas tal visão seria simplificar demasiado as coisas. Importa enormemente ao prazer táctil do indivíduo que interage com o violão, com consequências para suas decisões musicais e pessoais – inclusive seguir sendo um violonista, ou vir a ser um -, as características específicas do instrumento que tem em mãos. A tensão das cordas, o cheiro de madeira e verniz, as cores, o tamanho das casas entre os trastes, o desenho da roseta, os diferentes sons produzidos a partir de diferentes reações deste conjunto aos diferentes toques de mãos e dedos. Importa também, para o compositor, o som do violão e as facilidades e dificuldades sonoras

84 Como valores estéticos, comunitários, relações interpessoais, etc.

85 Eventualmente, um mestre luthier pode aceitar aprendizes que participam em algumas etapas do trabalho,

que emergem de sua interação com um violonista específico – talvez ele próprio. Importa o violão ao ser parte do tocautor. Importa tanto o violão, afinal, que sua construção se converte de meio para fim, ao ponto de para alguns a posse de um instrumento tornar-se uma responsabilidade, conforme nos disse certa vez o professor Victor Rodríguez, da UNR: um violonista precisa “estar à altura” do violão que possui (ou, agregaríamos, que o possui).

Não apenas instrumento musical, ele também é uma obra de engenho e expressão: seu design é ao mesmo tempo ciência e arte, os detalhes constituindo uma forma de expressão particular do luthier (sobretudo a mão do instrumento, ao final do braço, que abriga as tarraxas. Trata-se de um espaço tradicional para a impressão da “marca pessoal” do artesão). É, portanto, por um lado, um aparato tecnológico, por outro uma escultura em madeira. Por outro ainda, um agente com uma meta musical pré- definida, um objeto com o poder de induzir à música.

A construção de um instrumento com tal carga de significados, com um poder tão grande de influência sobre os humanos, não é tarefa simples. Ela é condicionada por uma história (musical, social, técnica), por diferentes desejos (os do luthier, os do violonista), pelos efeitos que deverá provocar. Nesse processo, ocorrem frequentes embates entre as forças em ação, sobretudo entre as diretrizes e possibilidades técnicas e os desejos humanos que operam em várias direções. O resultado final é sempre um compromisso entre estas diversas tendências e agentes envolvidos no ato de fabricação, modificados por uma infinidade de fatores circunstanciais e logísticos como: a disponibilidade de materiais no mercado, a existência e o estado de redes de distribuição e transporte, a possibilidade de difusão de técnicas e conceitos de construção, etc.

O violonista, aficionado, colecionador ou curioso, assim, trará ao luthier suas expectativas em relação às qualidades do futuro instrumento. Começando pelo som: o timbre (brilhante, escuro, variado, uniforme, etc.), a projeção (o que se escuta tocando o instrumento em relação ao que se escuta escutando-o ser tocado a maior distância), a intensidade que é capaz de produzir, e como manifestar essa intensidade (um instrumento leve, que produz mais som com menor aplicação de força, ou um instrumento capaz de suportar a pressão de mãos poderosas), a articulação, a sustentação, etc. Trará também expectativas estético-visuais (cores, padrões dos

veios das madeiras, detalhes de ornamentação, etc.) e até de custo. É tarefa do luthier organizar essas expectativas num conjunto viável de direções para seu trabalho, o que nem sempre é fácil ou possível (como dito, costuma haver contradições, como entre a qualidade do timbre e a intensidade do som, por exemplo, ou entre o desejo do violonista e o custo das madeiras, ou ainda entre o aspecto visual e o som desejado). Às vezes, estas expectativas do cliente (que pode ser ou não um violonista) invadem espaços considerados reservados à expressão pessoal, artística, do construtor, como a mão, a roseta, o filete, e a forma do corpo, levando a negociações mais delicadas; em outros casos, todo o processo é uma experimentação, seja de detalhes de construção, seja por tratar-se da criação de um protótipo, seja um atendimento a uma demanda específica (um violão de dez cordas, ou com um registro sonoro fora do habitual, etc.). Com tudo isso em jogo, o luthier vai se lançar ao trabalho, às vezes sozinho, às vezes acompanhado de perto pelo futuro dono do violão. É comum que, antes disso, em especial quando se trata de um luthier reconhecido, haja um tempo de espera. Os luthiers profissionais possuem “filas” de meses ou até anos86: em geral, um luthier trabalhando em tempo integral produz

aproximadamente um violão por mês87. Essa produtividade determina, é claro, o preço

do instrumento (a venda de um novo violão a cada mês deve dar conta das necessidades/expectativas econômicas do profissional) e o tamanho das filas.

Este último, aliás, é um fator que costuma ser utilizado como um aval, um critério de legitimação da atividade da luteria: quanto maior a fila, maior o prestígio do luthier (e vice-versa), e isso funciona como uma espécie de garantia de qualidade, já que demonstra a aprovação do trabalho pela comunidade violonística. O tamanho da fila também está associado ao preço, embora não em relação direta (o luthier pode utilizar o preço para controlar o tamanho da fila, ao passo que este o confere margem de manobra nos preços que pratica).

Essa fila de espera determina um duplo tempo de gestação, tanto o do instrumento em si quanto o de uma série de novas expectativas, planos e situações que são

86 Os luthiers de projeção internacional podem chegar a ter filas de espera que superam uma década inteira. 87 Não é incomum encontrar construtores com menor disponibilidade, em especial amadores, ou que se

engajem em diferentes projetos de uma só vez, fazendo horas extras e trabalhando em fins de semana e feriados. Nestes casos, é claro, pode-se chegar até a dobrar a produção. Costuma existir uma relação de proporcionalidade entre a qualidade do instrumento e seu tempo de feitura, o que também afeta a produtividade.

imaginados e sentidos, vividos, por seu futuro dono. Sua relação com o violão, quando ele vem, é marcada por essa experiência durante a fase de espera. Coronel (2010b) faz um relato preciso deste momento:

Faz dois anos que espero meu violão. O encomendei em 2006, e finalmente chegou o momento de encontrar-me com ele. Me pergunto como soará... será sensível ao vibrato? Será tenso ou macio o encordoamento? Não é um encontro menor. Será meu companheiro neste anseio de andar soando, durante os anos que virão.

Uma característica particular da luteria violonística é sua abertura à criação. Como parte de uma família de cordofones ampla, o violão vê construtores e tocadores frequentemente seduzidos por congêneres seus. Isso gera um influxo constante de informações num processo construtivo, que, nunca havendo consolidado padrões que – ainda que momentaneamente – se hajam considerados suficientemente definitivos88, encontra-se hoje em pleno momento de expansão e transformação. A

consequência é um estímulo ainda maior para a pesquisa e a inovação. Se no mundo, nas últimas décadas, diversas novas técnicas de construção surgiram, como os violões double top89¸ famosos pela potência sonora e homogeneidade, ou o voicing90,

que possibilita ajustes finos no timbre do instrumento; se novos materiais de construção se difundiram, como o cedro para os tampos, ou reforços estruturais de fibras de carbono, como o nomex91, e criaram instrumentos com características

diferentes que induziram a mudanças estéticas; se tanta transformação se operou

88 Existem hoje ao menos três grandes linhas de construção (tradicional, com armação em leque;

contemporânea, com armação em treliça ou a linha double top). Não obstante, cada construtor desenvolve seu trabalho de artesanal incorporando a ela inúmeras idiossincrasias, que vão desde inovações próprias a

diferentes combinações de ideias das três correntes que citamos.

89 Tecnologia introduzida nos anos 80 pelo luthier alemão Matt Dammann, que consiste num tampo formado

por duas camadas de madeira fina interconectadas por um núcleo cuja composição tem variado ao longo dos a os adei a, o e , et . . O sa duí he soldado po p ess o a uo ou apli aç o o t olada de ola.

90 Ao parecer, a técnica foi sistematizada e registrada pelo, ou ao menos tem sido frequentemente associada

ao, luthier estadunidense de origem húngara Ervin Somogyi.

91 O nomex é um material fabricado pela DuPont Chemical Co., criado pela mesma empresa nos anos 1960, e

que consiste numa fibra aeroespacial em forma de colmeia. É utilizado sobretudo em indumentárias à prova de fogo, tendo também aplicações na construção de foguetes e aeronaves (DUNWELLGUITAR, 2014; DUPONT, 2014). Foi introduzida na luteria de violão pelo alemão Matt Dammann, criador da tecnologia double top, em 1995 (CLASSICALGUITAR, 2013)

dentro deste domínio específico do território violonístico, Rosario e Paraná se diferenciam92 (e propiciam ainda outras transformações) por encontrar-se numa

região onde a presença de certos instrumentos “alternativos” ao violão tradicional é notável, e se faz sentir mesmo entre violonistas acadêmicos adeptos do repertório “universal”93. Essa popularidade de alguns de seus parentes leva a experimentação

na luteria a novas direções, e é comum que os luthiers da região estejam aptos a fabricar ao menos, além dos violões tradicionais, guitarrones e requintos. Durante a pesquisa também nos deparamos com experimentações com violões contrabaixo de diferentes tipos (instrumentos que soam uma oitava abaixo do violão tradicional), um violão quintino ou guitarrín94, violões de 8 e 10 cordas, o charango (já menos familiar

ao violão tradicional e talvez menos incorporado ao território estritamente violonístico) e menções a diversos outros instrumentos da família. O tipo de construção predominante parece ser a tradicional95, usando tampos de cedro e pinho, e

eventualmente alguma experimentação com madeiras nativas96 (não observamos a

presença de construtores de violões contemporâneos97, embora mesmo as técnicas

de construção tradicional hoje vigentes sejam informadas por certos princípios utilizados nestes instrumentos). Ocorre também algum intercâmbio entre construtores de violão e fabricantes de cordas (MORENO, 2014). Há um número de marcas de cordas sendo fabricadas no país, embora não exatamente nas cidades pesquisadas. Elas disponibilizam cordas de diferentes calibres, aptas a ajustar-se aos diferentes violões fabricados aí. Além delas, são encontradas várias marcas internacionalmente difundidas, que oferecem cordas de imitação de tripa, de aço, as de nylon – hoje consideradas tradicionais – e as ditas “de carbono”. Pudemos observar que o uso destas últimas é bastante frequente.

92 E partilham essa diferenciação em particular com outros contextos latino-americanos.

93Dis uti os a e p ess o epe t io u i e sal o pe fil do to auto E esto M dez, o Capítulo V. Vale

notar que, nos locais considerados nesta pesquisa, e conforme discutido por Coronel (2014a) e Méndez (2014,), a diluição das fronteiras estéticas faz com que o repertório folclórico argentino e latino-americano, onde o uso de iol es alte ati os o o o guitarrón e o requinto é comum, penetre mesmo nos ambientes acadêmicos.

94 Nome dado pelo luthier criador deste violão experimental, que soa uma 5ª J acima do violão tradicional. 95Considera-se a construção tradicional aquela derivada dos projetos do espanhol Torres, incluindo a armação

interna do tampo em forma de leque.

96 Mario Moreno, luthier de Gualegay, menciona um manual de luteria escrito em sua cidade na primeira

metade do século XX e que aborda estas madeiras.

97 Double Top de vários tipos, ou com armação em forma de treliça (de madeira ou fibra de carbono), esta

Existe, na Argentina, pelo menos um curso universitário de luteria, em San Miguel de Tucumán98, e vários cursos técnicos e oficinas de luteria por todo o país, incluindo

Rosario (a luteria violonística em Paraná é mais incipiente, embora tenha sido recentemente impulsada pela chegada do construtor jujeño Sergio Quispe (STOPELLO, 2012)). Mas é comum que prática seja ensinada através da tradicional relação de mestre-aprendiz (como no caso do luthier Contesti, de Rosario, por exemplo).

Estas práticas contemporâneas de construção e criação de violões em Rosario e Paraná têm sido influenciadas, nos últimos anos, pelo surgimento de um polo de luteria próximo, na cidade de Gualeguay, província de Entre Ríos99. Um forte

movimento violonístico local tem entusiasmado os construtores da cidade, que, pressionados pela demanda, se engajam na construção de violões tradicionais e não convencionais, como requintos, guitarrones, sopranos, etc. Os violões gualeguayos são reconhecidos em Rosario por sua ótima relação custo benefício (CORONEL, 2014, e RODRÍGUEZ, 2014), e são utilizados sobretudo por estudantes em vias de profissionalização. Também se encontram muitos violões dessa origem em Paraná.