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FIGURA 10 – Martín Neri (Fonte: NERI, 2014b)

Rosario, 1977

Compositor, arranjador, violonista, cantor e professor em Rosario. Especializado e re o he ido de tro do fol lore arge ti o, j te do tra alhado o artistas renomados

como Teresa Parodi ou o Dúo Salteño.

Chego à casa de Martín às 14h. Ele não me abre imediatamente, é preciso ligar. Me explica que não havia escutado. Enquanto levamos sua cadela para um passeio, ele comenta que saía de um fim de semana desgastante, em decorrência do que – ele agregaria depois – ficou dois dias sem tocar violão. Esse desgaste foi o que o deixou aturdido a ponto de não ouvir a campainha, e o afastamento de seu instrumento por 48 horas lhe parece notável, ou no mínimo incomum, dada a ênfase com que o relata. Ele me conduz por uma casa bem localizada no centro de Rosario, uma zona de classe média movimentada e ruidosa. É um lugar organizado e sem luxos, através do qual rumamos a um estúdio que fica bem no interior do quarteirão onde vive. O espaço

é pequeno – 2,5m x 2,5m, aproximadamente – mas está desobstruído e limpo. Há um sofá confortável, onde me assento, ao lado de um violão de sete cordas. Diviso outro violão, de cedro canadense172, à frente, e alguns equipamentos de gravação e

performance. Ele já entra contando, com evidente contentamento, como construiu esse estúdio vinculando-o a um cômodo separado no andar superior, que funciona como sala de controle para gravações. Os dois estão conectados por cabo, e mais recentemente ele instalou um teclado sem fio que o possibilita, com a ajuda de um monitor, operar o computador acima remotamente. Isso o permite trabalhar sozinho. Ele frisa a importância que atribui a trabalhar em casa, com comodidade (para usar uma expressão sua, com “mate e amigos”), opondo a isso o ambiente do estúdio profissional, ao qual agora recorre apenas para o serviço de masterização do que grava. Fica evidente que ele possui familiaridade com a tecnologia de áudio e dos softwares multipista usados para gravação, embora, como se verá depois, suas relações com ela sejam dúbias. Ele me oferece água e parece muito à vontade em seu espaço. Sua postura, e a presença do sofá, para além do conteúdo e da tranquilidade de sua fala, indicam a importância que dá a associar seu trabalho com o conforto doméstico (em algum momento, ele se senta no chão, toca descompromissadamente, e descompromissadamente abandona dois violões lado a lado sobre o tapete, sem maiores cuidados). Como discutimos em “Economia”, no Capítulo VI, algo que pode estar relacionado à integração, ou não-separação, entre o âmbito pessoal e o profissional.

Não é preciso esperar a conversa para sentir a influência da música brasileira: o violão de sete cordas não é comum como suporte grave das texturas musicais do folclore argentino, onde o mais frequente é o uso do guitarrón173. Mais tarde, Martín detalhará

172Os iol es de ed o a ade se ostu a s o o side ados ais g atos de to a ue os de pi ho, a

opinião de vários violonistas (como RODRÍGUEZ (2014) e ZANON (2003)). Ambas as categorias se referem à madeira usada na construção do tampo, responsável pela maior parte das qualidades sonoras do instrumento. Isso inclui não somente a qualidade sonora geral mas a força e definição dos ataques das notas, as

possibilidades de variação tímbrica, o tempo de maturação do par madeiras/som, etc. Em todos estes aspectos, o cedro apresenta mais estabilidade que o pinho, sendo uma madeira que já está próxima de seu máximo potencial sonoro ao fim do processo de construção do violão (o pinho amadurece lentamente, ao longo de meses ou anos, e é mais suscetível a mudanças tais como a frequência com que é tocado, ambientais, etc.), de menor variedade tímbrica e ataque mais definido, com uma resposta mais imediata ao toque. O fator táctil (a resposta sensível obtida pelo músico ao interagir com o violão) e a qualidade sonora são os fatores em geral mais relevantes na escolha da madeira/instrumento pelo violonista.

173 Como já dito, este instrumento soa uma 4ª J abaixo do violão tradicional. Além disso, e diferentemente do

violão de sete cordas brasileiro, possui um corpo mais avantajado e, na Argentina, está servido pela oferta de uma infinidade de calibres de cordas para violões de diferentes registros sonoros. Tudo isso lhe confere, para

a importância dos territórios acústicos brasileiros em seu trabalho. De momento, apenas este traço – forte traço – marca o encontro de um brasileiro e um argentino para conversar sobre uma música argentina com influências brasileiras.

Diferentemente de Coronel, mais propenso à fala e bastante desapegado do violão em momentos como esse, Martín é um melômano crônico que não consegue se afastar de seu instrumento e a cada tanto toca algumas notas, ou algumas frases, ou uma música inteira. Natural portanto que o encontro não se detenha mais que escassos minutos em conversações de boas-vindas e rapidamente tome o caminho da música. Não faz cinco minutos que estou no estúdio e já estamos ouvindo gravações de um novo disco que está preparando.

É um trabalho bastante “conceitual”, para usar uma expressão sua, que desenvolve com Leopoldo Castilla, “el Teuco”, um poeta salteño 174que é filho de Manuel Castilla,

autor de inúmeras letras de música do repertório do célebre Dúo Salteño175. O

entusiasmo de Martín por este trabalho não é gratuito: o Dúo ocupa um lugar central em sua experiência musical ao longo da vida, e além disso seu parceiro é um poeta de larga trajetória com vários livros publicados em diferentes países, traduzido a seis línguas. Martín é um entusiasmado pela leitura: “Me gusta mucho la poesia (...), me apasiona mucho también la cuestión filosófica”. Esta paixão pela palavra, que ele retomará em vários momentos da entrevista, explica a característica mais marcada deste trabalho que, num primeiro momento, seria musical: o som predominante é o da voz falada. Mas não é uma voz falada qualquer, e sim a singularmente grave e melodiosa voz del Teuco, “um monstro cavernícola”, segundo o próprio Martín. Por debaixo deste primeiro plano que emerge como que de profundezas insondadas, se desenvolvem sutis texturas musicais que se poderia chamar de matéricas176, pouco

além das frequências absolutas que alcança, uma sonoridade muito própria, com um timbre tendente ao grave, ue os iolo istas ostu a defi i o o es u o .

174 De Salta, província do Norte argentino, próxima à Bolívia.

175 Conjunto musical formado por dois cantores da província de Salta, especializado no repertório folclórico

argentino: Néstor Echenique e Patricio Jiménez. Atuaram desde a década de 60 ao ano 2009, com o

falecimento de Jiménez. Lançaram ao todo 8 álbuns inéditos. Seu trabalho se caracteriza pelo refino tímbrico e expressivo da voz e pelas texturas contrapontísticas a duas vozes, nas quais se destaca o uso frequente de dissonâncias fortes, inclusive em finais de frase. Esse traço e outras peculiaridades estilísticas provavelmente derivam da direção musical de Cuchi Lenguizamón, célebre pianista argentino que acompanhou o dúo durante largo tempo de sua trajetória.

176 Para GRELA (Informe dado durante uma aula na Universidade Federal de Minas Gerais, em 2008), as formas

propensas a desenvolvimentos. Pequenos e delicados fragmentos musicais de existência efêmera, de sonoridade cristalina e distante, sobrepostos a poemas concisos sobre o universo, um universo dentro do qual o humano é apenas uma parte qualquer da Manada, que é o nome do álbum: somos imediatamente remetidos a um campo de experiências mais amplo que o da música folclórica argentina, pela qual Martín se reconhece e é reconhecido. Abrem-se aqui os caminhos para outros territórios que nos remetem ao Hai-Kai japonês ou à lente cinematográfica, do zoom capaz de amplificar o micro. Se da paixão de Martín pela palavra já temos suficiente prova (ele aprova a comparação com o Hai Kai), é apenas mais adiante na entrevista que ele revelará sua formação acadêmica: graduou-se em direção cinematográfica, embora nunca tenha exercido o cinema como profissão. Parece, antes, que ele se apropriou musicalmente da experiência:

(...) e o cinema... eu sou diretor cinematográfico. Estudei esse

curso faz muitos anos. Foi umas de minhas melhores escolas para estas três atividades musicais [tocar, compor, dar aulas]. A realização audiovisual me abriu um panorama fantástico ao musical. Esta obra que estamos terminando de gravar [Matriz del

Água, um trabalho paralelo ao primeiro] son (sic) doze

composições, quer dizer, doze cenas sobre a história dessa família de pescadores. Cinematograficamente falando es como um drama, (...) são doze pinturas dessa situação177.

Apesar de haver realizado estudos universitários, sua formação em música é bastante menos formal:

Eu comecei aos seis anos com o violão. Ou seja, faz trinta e um anos. Já é como uma forma de vida. A música é uma linguagem

suas características sonoras intrínsecas mais que para cumprir um papel funcional num discurso musical (esse último comportamento sendo próprio do que chama formas discursivas.

177 (...) y el cine... Yo soy diretor cinematográfico. Estudié esa carrera hace muchos años. Fué una de mis

mejores escuelas para estas tres actividades musicales [tocar, componer, dar clases – N.A.]. La realización audiovisual me abrió un terrible panorama a lo musical. Esta obra que estamos terminando de grabar [Matriz del Agua, um trabalho paralelo ao primeiro] son (SIC) doce composiciones, o sea, son doce escenas sobre la historia de esa família de pescadores. Cinematograficamente hablando es (SIC) como um drama, (...) son doce pi tu as de esa situa i .

que eu creio que já a esta altura, não poderia conviver sem isso, conviver no mundo (...) E não simplesmente por tocar, mas porque é um cântaro de energia, uma coisa constante onde eu me alimento, entende? Uma ferramenta interminável. É uma forma de vida. (...)

Pedi a meu pai que compre (sic) um violão. (...) Ma mandou a um professor, Don Hugo, creio que se chamava, e comecei a estudar, aos seis anos. (...) [minha formação musical] evoluiu de forma autodidata. Isto é, tomei aulas com diferentes professores assim [de forma] particular, e depois comecei a fazer música. A inquietude, entende?, sempre. [Comecei] a me relacionar com músicos, a cantar, sempre cantei, sabe? Sempre compus canções com letras, e depois comecei a compor músicas instrumentais... e bom, e depois de forma autodidata, entende? Tentei a universidade. Mas me trataram de uma maneira que não gostei e... e nunca mais fui depois. (...) Fui três meses. (...) E bom, aí comecei a procurar informações, a escutar muita música, a ficar com a orelha em pé, entende? A escutar às pessoas... me apaixona muito também a questão filosófica, eu gosto muito de poesia... e o vínculo, começar a descobrir toda a música que têm as palavras... e a tirar música disso, das situações... isto, este momento tem música! E aí a composição me prendeu e daí não parei. É o meu eixo, a composição (...) E a partir disso, “componho e existo”. 178

178 Yo empecé a los seis años com la guitarra. O sea, hace treinta y un años. Ya es como uma forma de vida. La

música es un leguage que yo creo que ya a esta altura, no podría convivir sin eso, convivir en el mundo. (...) Y no simplemente por tocar, sino porque es un cántaro de energia, una cosa constante donde yo me alimento, viste? Una herramienta interminable. Es uma forma de vida. (...)

Le pedí a mi viejo que me compre (sic) uma guitarra. (...) Me mandó a un profesor, Don Hugo, me acuerdo que se llamaba, y empecé a estudiar, a los seis años. (...) [mi formación musical evolucionó] de manera autodidacta. O sea, tomé classe com distintos profe así [de forma] particular, y después empecé a hacer música. La

inquietud viste, siempre. [Empecé] A relacionarme com músicos, a cantar, siempre canté, viste? Siempre compuse canciones com letras, y después empecé a componer músicas instrumentales... y bueno, y después de forma autodidacta, viste? Intenté la universidad. Pero me trataron de uma manera que no me gustó, y... y nunca más fui después. (...) Fui tres meses. (...) y bueno, ahí empece a buscar data, a escuchar mucha música, a parar la oreja, viste? A escuchar a la gente... me apasiona mucho también la cuestión filosófica, me gusta mucho la poesia... y el vínculo, empezar a descobrir toda la música que tienen las palabras.... y a sacarle música a eso, a las situaciones... esto, este momento tiene música. Y ahí me atrapó la composición y de ahí no paré. Es

Vemos portanto alguém para quem o sonoro nunca se apresenta desvinculado de um contexto, está sempre integrado a circunstâncias e agências que transcendem aquilo que se convencionou designar como o estritamente “musical”. É a própria noção de “música” que perde força, já que para ele, ao refletir sobre o que faz, não há espaço para imaginar estruturas sonoras cirurgicamente isoladas da realidade, mas integradas a ela de forma indissociável, incluídos aí outros fenômenos sonoros que ela abarque. “Este momento tem música”. Trata-se antes de abordar o “momento” a partir do acústico – mas o acústico enquanto domínio isolado da experiência sendo apenas um ponto de partida – que de uma busca deliberada em isolar ritualmente essas duas categorias experienciais, que é o que se faz, por exemplo, na tradição da música de concerto179. Esta é outra afinidade de Martín com o que se vem chamando

muito genericamente de Arte Sonora180, para além de seu trabalho com el Teuco

Castilla. Suas músicas são “cenas”, “pinturas” ... em outro momento se refere à música como “esculpida”. Existe portanto um forte cruzamento com outras artes em seu fazer musical, mas mais que isso, existe uma noção de música que desafia o conceito estabelecido de um domínio autônomo, de um campo de saberes claramente delimitado. Ao longo da entrevista, isso vai ficando mais claro: quando inquirido sobre seus métodos didáticos, por exemplo, ele diz: “me transformo numa orelha gigante”, explicando que se esforça ao máximo para fazer-se sensível às necessidades de seus estudantes. Ou seja, ele outorga à escuta responsabilidades relacionais bastante deslocadas do contexto estrito de “música”, ela se faz o principal ponto de referência em sua relação com o outro. A música portanto não é só uma arte, ela transcende esse domínio social para se tornar uma “forma de vida”, uma vida acústica; ela baliza as relações entre as pessoas; ela se deixa penetrar por outras disciplinas e artes, se

179 O ideal da música de concerto são precisamente as formas musicais per se, e deste objetivo deriva a

ritualidade do concerto, onde o indivíduo é convidado a abstrair todos os demais sentidos e tornar-se ape as um ouvinte, isolando um produto musical que ali se apresenta (uma obra) de qualquer outra interferência, inclusive acústica.

180 A arte sonora é uma categoria artística contemporânea vigente nas sociedades industriais, cuja delimitação

precisa é difícil de definir e é alcançada sobretudo através de sua construção histórica. Ela parece querer instalar-se no contexto daquilo previamente considerado música (ALDRICH 2013), ou próxima a isso, mas passando a habitar novos espaços concretos, como galerias, e sobretudo propondo ritualidades inéditas dentro das sociedades onde existe. Se alimenta da ampliação do campo de possibilidades acústicas ocorrido no pós- guerra (e das revisões formais que acarretou), da sobrevalorização da ideia sobre a forma típica da arte conceitual – este o ponto de contato mais forte com o pensamento de Martín -, dos avanços tecnológicos do século XX, e da intrusão de várias disciplinas (filosofia, psicologia, ecologia, antropologia, a lista é extensa) em seu ideário e práticas, sendo a instalação – com sua noção de ambiência - seu estereótipo mais característico e conhecido (ALDRICH, 2013). Sua localização no mundo da arte pós-conceitual (ALDRICH, 2013) parece análoga à categoria de arte pós-autônoma de Canclini (2012).

faz conceitual. Canclini (2012) fala em artes pós-autônomas, pois de fato elas são informadas por uma tradição em que foram autônomas, ou quiseram sê-lo; mas agora estão diluídas nos (e atravessadas por) vários campos da vida social. É assim para Martín. Se é um exagero rotular sua produção como arte sonora, ou afirmar em seu nome uma completa dissolução do acústico ou musical na vida, no “momento”, ou no ser – um conceito seu que, ao parecer, utiliza para descrever algo que diz respeito, ou abarca, o hic et nunc, a autenticidade do produto musical e o artista -, por outro tampouco parece produtivo forçar seu encaixe na categoria música, ainda que ele se veja aprisionado a ela em seus afazeres cotidianos por uma série de questões práticas e usos sociais (aos quais, sem dúvida, ele também é apegado de alguma forma). Talvez Martín – e sobretudo em sua intimidade com a música e seu pensamento sobre ela - opere na iminência (Canclini, 2012, p. 63), tanto do ponto de vista do surgimento de uma nova categoria do práticas humanas (onde o acústico não se isole dos outros aspectos da vida, ou o faça de uma outra forma, talvez conjugado com outros elementos da realidade) como por situar-se no (ou remeter-se ao) instante em que do “momento” emerge o som, sempre entre duas coisas, no ponto onde, por nada haver-se ainda concretizado, tudo é, ao menos em potência.

Parece que, por opção, possibilidade ou casualidade, Martín não radicalizou essa leitura da realidade, nunca chegando a redefinir suas práticas a partir dela. Ele continua atuando em muitas frentes classificáveis como “atividades de músico”, num sentido mais tradicional. No entanto, esssas concepções que venho discutindo ainda assim se refletem em suas práticas instrumentais, e é o que ele relata quando o pergunto como ele se prepara para tocar. Já de saída é preciso reconhecer que existe certa inadequação da pergunta. Ela parte da divisão tripartite do trabalho musical característica da música de concerto, que separa criação, performance e escuta (ver FERNANDES, 2013, p. 117 ). No entanto, Martín explica:

Tudo [suas atividades musicais] vem da composição. (...) Componho e depois arranjo o que componho... todo o resto de que falamos [tocar violão, dar aulas, fazer arranjos] vem da composição.181

181 Co po go despu s a eglo lo ue o po go... todo lo de s que hablamos [tocar violão, dar aulas,

Ora, o ato de criar está portanto intimamente relacionado ao de tocar, ambos se condicionam de tal forma que é preciso muita cautela com sua separação esquemática. Um outro aspecto a se considerar é sua “maneira” de tocar, que revela outros aspectos da relação promíscua entre composição e performance. Martín afirma: “sempre toco da mesma forma”. Mas que “forma” seria essa? “Sempre é um momento único, insisto no ser”. Ou seja, uma “forma” que consiste precisamente na ausência de forma! Tocar envolve uma imersão no aqui-e-agora que particulariza cada performance, ele não executa uma música duas vezes do mesmo jeito. “Sempre toco diferente. (...) Se faz Sol, se chove...” Em termos mais diretos, podemos dizer que sua performance envolve um alto grau de improvisação, ou criação em tempo real - como aliás é frequente em várias tradições musicais (como o jazz) em que acumula experiência. Tocar é criar.

Em todo este fazer musical, Martín não está sozinho, mas inserido numa rede com outros agentes, em que o violão tem um papel destacado. “O violão convida a compor uma música” (NERI, 2014), ele diz, explicando como cada diferente violão atua sobre ele. Note-se que ele não usa a expressão mais usual “ser inspirado por”, mas, ao contrário, confere ao instrumento toda a iniciativa do ato criador. O instrumento traz em si uma proposta, um convite... talvez um programa ou meta, para usar a terminologia de Latour (2001, p. 205-206). Estamos voltando àquela força ativa do instrumento já abordada no capítulo II. O instrumento sugere e modifica ideias, é um co-criador. Criar é tocar.

Assim, parece não existir separação, e sim continuidade, tanto entre os atos de criar, executar e escutar quanto entre o som e a vida. O resultado não poderia ser outro. Para alguém que vivencia a música de forma tão intensa e constante, deixando-se afetar tão fortemente pelas circunstâncias, a resposta àquela pergunta, “como você se prepara para tocar”, é direta e enfática: “não me preparo”.

Não quero, contudo, mistificar a prática. O próprio Martín se encarrega de esclarecer que “você está o dia todo tocando [pega o violão e mostra uma passagem], a coisa vai se aprimorando sozinha”. Evidentemente ele se refere ao fato de que passa várias vezes pela mesma música ao longo de seu processo de trabalho (sempre de forma diferente!), mas ela “se aprimora sozinha” porque ele não desenvolve uma

metodologia ou rotina exclusivas, conscientes ou sistemáticas de preparação de um dado repertório para performance. Isso faz imaginar duas coisas: a primeira, que ele mantém “disponível para performance imediata” – o que às vezes se chama na música de concerto de “preparado” - todo o seu repertório (ou a parte dele que corresponde aos trabalhos desenvolvidos nos últimos meses ou anos), todo o tempo; a segunda,