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Poderíamos dizer que, para que as práticas violonísticas se desenvolvam, é preciso que atue um sem número de mediadores, de administradores de teatros a radialistas, de revisores de partituras a assistentes de palco. No entanto, aprofundando o pensamento de Hennion (2002), preferimos pensar que estas mediações já são a própria prática musical, multifacetada. Hennion afirma que a música não tem senão mediações para mostrar. Segundo ele,

Mediações não são meras condutoras da obra nem substitutos que dissolvem a sua realidade; elas são a arte ela mesma, como é particularmente óbvio no caso da música: quando um performer coloca uma partitura na estante, ele toca aquela música, certamente, mas a música é mais do que o ato mesmo de tocar; mediações em música têm um status pragmático – elas são a arte que elas mesmas revelam e não podem ser distinguidas da apreciação que geram.115

Que uma partitura, enquanto mediadora, continue sendo a própria música, é uma noção quase auto evidente (e ainda assim muito interessante, porque este seu duplo status não é reconhecido pelo senso comum). Mas afirmar que a administração de um centro cultural (assinar papéis, elaborar cronogramas, preparar editais, fazer reuniões, etc.) seja música é uma proposição mais ousada. O truque aqui é fugir da ontologia e reconhecer, pragmaticamente, uma realidade empírica vigente, na qual uma série de práticas se dá em rede, cada uma delas afetando e sendo afetada pelas outras. Socialmente falando, é o conjunto destas práticas que constitui a ritualidade própria da música, evidentemente tributária (e condicionante) do conjunto dos ritos sociais (imaginar a música como uma realidade mais ou menos autônoma em relação ao social é um procedimento analítico até certo ponto correspondente às práticas e ideias dos próprios atores sociais, e portanto útil, mas que tem suas limitações116). Em suma,

não interessa definir certas mediações efetivamente distantes dos domínios acústicos enquanto música, mas sim considerar que existe um conjunto de práticas associadas que são precisamente aquelas que agenciam, conjuntamente, um território musical. O mesmo vale para o território mais especificamente violonístico, e é neste espírito, digamos, rizomático, que gostaríamos de apresentar brevemente algumas considerações a respeito das inúmeras práticas de gestão cultural em nosso território, abordadas em pé de igualdade com as práticas mais propriamente acústicas.

Durante a discussão da auto-gestão, constatamos a carência de profissionais ligados à gestão (de eventos, concertos, carreiras) no território, mas eles existem, embora atuem de forma esporádica ou apenas em certos segmentos do mercado musical. São managers117, produtores executivos e produtores culturais, aos que se veem somar

os administradores de instituições culturais (teatros, centros culturais, museus, universidades, escolas de música privadas, etc.), os ocupantes de cargos públicos responsáveis pela cultura (como secretarias ou ministérios de cultura provinciais e municipais), os membros de associações culturais (como a Asociación Guitarrística de Rosario), os promotores de eventos. Utilizamos a expressão genérica já formalizada Gestão Cultural, mas estaremos tratando, todo o tempo, de seu

116 Das quais Hennion (2002) trata ao fazer uma análise dos resultados da sociologia crítica da música. 117 Termo utilizado no território.

cruzamento com o território, implicando portanto na gestão das práticas violonísticas em Rosario e Paraná.

Podemos destacar uma linha mais discernível no emaranhado que é a gestão cultural: a atuação do poder público. Em Rosario e Paraná observa-se, a nível local, um importante grau de formalização da atuação do Estado na esfera de cultura, com a existência de secretarias ou ministérios (provinciais e municipais) especializados. Não pudemos obter informações a respeito da organização interna destes entes governamentais, embora pareça pouco provável que pudessem alcançar um tão alto grau de especialização que permitisse haver neles um setor específico não apenas para a música, mas para a música para violão118. Não obstante, pela popularidade do

instrumento, é evidente que estas instituições acabam lidando de forma direta com nosso território. Um exemplo disso, e que toca diretamente as práticas formativas, foi a já citada distribuição, por toda a rede pública de ensino da província de Santa Fe (incluindo a cidade de Rosario), de um material (disco e caderno) de Música do Litoral119, elaborado pelo Ministerio de Innovación y Cultura.

A percepção dos artistas do papel destas instituições não é homogênea, mas pode- se perceber que não existe um trato direto de rotina entre eles, seja na forma de elaboração das políticas públicas, seja na forma de eventos de promoção da música, de contratação direta, de participação em licitações públicas, etc. Indiretamente esta relação é mais frequente, através das instituições da “ponta”120 administradas por

estas secretarias (teatros, centros culturais) e pelos efeitos de algumas políticas e programas, que de toda forma não chegam a fazer parte do dia-a-dia do músico. Alguns se ressentem de uma atuação rarefeita e pouco proativa do Estado na cultura: para Neri (2014a), o Estado deveria ativamente promover a cultura ao ponto de afetar diretamente a rotina do músico médio. Para Coronel (2014) existe algum suporte do poder público, com o qual ele se mostra moderadamente satisfeito, mas comenta que não tem conhecimento de evento violonístico que haja sido espontaneamente proposto por um ente cultural do Estado, havendo este sempre que contar com a

118 A nível federal sim existe um instituto responsável por favorecer a atividade especificamente musical no

país, o INAMU – Instituto Nacional de la Música.

119 Dentro da qual, como vimos, o violão é uma presença marcante.

120 Jargão da administração pública que se refere ao funcionário, instituição ou situação de lida direta com o

militância proativa de um violonista; isto é, o Estado não tem demonstrado iniciativa na lida com o mundo musical (ao menos não de forma a afetar diretamente o território violonístico).

Este paradigma parece estar caminhando para uma maior sistematização da interferência estatal no território. Citamos como exemplo destas tendências contemporâneas a promulgação da lei 26.801, chamada Ley Nacional de la Música (ARGENTINA, 2012). Este dispositivo legal, cuja fabricação dependeu fundamentalmente da participação da sociedade civil, mobilizado músicos e entidades de classe por todo o país ao longo de seis anos (ABREVAYA, 2012), e que foi aprovado com rara unanimidade no senado argentino, trata da criação do Instituto Nacional de Música, um ente público não estatal cuja missão é garantir a melhora de condições para a prática musical no país. Ele se divide em seis sedes organizadas por região cultural121, e atua nos diversos âmbitos da cadeia produtiva musical

(criação, performance, escuta, difusão, gravação, legislação, formação, instituições culturais, etc.). É o primeiro órgão do tipo, com abrangência nacional e dedicando-se especificamente à música, a ser implementado no país, e existe grande expectativa quanto a seus impactos (ABREVAYA, 2012). Outro dado importante que diz respeito a isso foi a recente122 consolidação de uma instituição de abrangência nacional

responsável pela cultura, através da transformação da antiga Secretaría de Cultura de la Presidencia de la Nación123 em Ministério da Cultura, a cargo de Teresa

Parodi124.

Vale a pena destacar, ainda dentro da esfera pública, a experiência do Centro Cultural Parque España, em Rosario, Como o violão, segundo nos informa o diretor Martín Prieto, é um instrumento que “invade” a programação do espaço, não é casual a parceria de anos entre este e a Associación Guitarrística de Rosario, associação de caráter privado, para a promoção de uma série de concertos de violão. O Centro Cultural possui outras parcerias de natureza similar, e elas são possíveis apenas graças à existência de uma grande estrutura de gestão e logística, que conta com

121Rosa io e Pa a pe te e sede Ce t o e Lito al .

122 Ocorrida durante nosso trabalho de campo de abril/maio 2014. 123 Anteriormente Ministério da Cultura e Educação (CNCA, 2012) 124 Cantora. Referente da música folclórica argentina.

diversos funcionários para as diferentes funções (administrativas, segurança, programação cultural, curadoria, difusão, etc.). Em Paraná, este espaço é ocupado pelo Centro Cultural Vieja Usina, sob a responsabilidade do Ministério de Cultura e Comunicação da província de Entre Ríos. Conforme dissemos no relato sobre a performance, também nesta instituição a programação relacionada ao violão parece ter um maior destaque e ser a única a justificar uma abordagem da programação musical a partir da instrumentação utilizada. Devido à vocação de Paraná para o violão de concerto, apresentações violonísticas direta ou indiretamente vinculadas a essa tradição e/ou à Música del Litoral (as categorias não se excluem) se destacam, como nos relata Soledad Salvarredi ao narrar o mais importante projeto musical desenvolvido pela instituição, o Música Entre Todos. Tratava-se (foi descontinuado) de um edital público que levava a Paraná aproximadamente vinte e oito grupos ao ano, pagando-os um cachê mutuamente acordado (segundo Salvarredi (2014), este cachê girava, em 2010, em torno dos quinhentos pesos, que em valores atualizados (2014) consistiriam em cerca de trezentos reais) e cobrindo despesas de transporte, caso viessem de fora da província. Salvarredi também relata que grande parte da atividade do centro cultural e de sua relação com os músicos se desenvolve a partir de um contato iniciado por estes últimos, um contato socialmente alimentado pelo “boca-a-boca”, processo de difusão natural não estimulado pela instituição. Este traço de informalidade acusa também carências no plano comunicacional do espaço, situação que ilustra a realidade de várias instituições culturais no território.

Poderíamos citar como outras experiências de gestão cultural as incursões de Carlos Aguirre (e colaboradores) neste campo, criando um selo musical e uma editora. Outros aspectos das práticas “coletivistas” em que se engaja, e que investigaremos em seu perfil no Capítulo IV e no capítulo V, também podem ser vinculados ao âmbito da gestão, como o sistema de áudio coletivo “Cro-Magnon”, criado por músicos da cidade. A participação de Coronel na organização do festival Guitarras del Mundo125

e sua atuação como gestor e idealizador do FIGROS126; a participação de violonistas

como Ernesto Méndez e César Huenuqueo na recente organização do festival de

125 Trata-se de um grande festival dedicado ao violão, este ano em sua 20ª Edição, e que tem apresentado uma

média de 200 violonistas por edição, representando 15 países, e se apresentando em 80 sedes por toda a Argentina. O diretor artístico é Juan Falu, ícone do folclorismo musical argentino.

violão Las dos Riberas, a atuação de Maru Figueroa na execução do festival cultural Mujério em Abril, todos podem ser citados como exemplos da intervenção dos músicos no mundo da gestão cultural, uma prática que a nosso ver está intimamente conectada à auto-gestão. É ela quem primeiro capacita os músicos a gerirem seu campo de atividades e os incentiva a criar eventos que movimentem coletivamente esse campo. Pudemos observar a existência de gestores especializados em música para violão, como os atuantes na Associación Guitarrística de Rosario127, mantida por

contribuições de seus associados e da prefeitura municipal. Além destes, destacaríamos todo o pessoal envolvido no festival Guitarras del Mundo, que, cuja abrangência e continuidade demandam gestores profissionais. Esse dado é coerente com a afirmação da popularidade e penetração social do violão na região, que evocamos em diversos momentos deste trabalho. Nenhum outro instrumento musical pôde promover tamanha especialização e criar estruturas de gestão tão complexas dedicadas exclusivamente a ele, estruturas cuja existência é garantida pela existência de um contingente significativo de aficionados, de um público amplo, e de profissionais especializados diversos (violonistas, luthiers, compositores, etc.).

127 Que em 2010 possuía um staff de 14 pessoas em cargos titulares (ASOSIACIÓN GUITARRÍSTICA DE ROSARIO,