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Vamos abordar agora práticas referentes aos processos de ensino-aprendizagem, ou formativas. Veremos que suas particularidades dentro do território derivam tanto do curso particular de sua história violonística quanto das práticas presentemente levadas a cabo aí, com destaque para os aspectos folclóricos de seu repertório e da disponibilidade de diferentes instrumentos da família do violão.

Uma clivagem importante nas práticas formativas é sua vinculação ou não a um contexto institucional. No primeiro caso, uma segunda diferenciação se dá segundo o

98 Cidade de aprox. 470 mil habitantes, a maior do Noroeste argentino e capital da província de Tucumán. 99 Apesar de situar-se na província cuja capital é Paraná, Gualeguay está geograficamente mais próxima a

pertencimento dessas instituições à esfera pública ou à iniciativa privada100. Essa

última divisão é importante porque as maiores e mais prestigiosas instituições dedicadas à formação de violonistas estão vinculadas ao Estado, que dessa forma se torna um agente legitimador das práticas violonísticas101.

Diferentemente de profissões altamente formalizadas como a medicina ou a física, o ofício violonístico se apoia largamente no ensino de um professor (o profe ou maestro) a um (às vezes alguns) estudante(s), numa trajetória percorrida de forma privada e desvinculada de instituições. É o caso das práticas didáticas de Marcelo Coronel, Martín Neri e seus alunos102. Os caminhos de profissionalização, contudo, tendem a

passar, ao menos em algum momento, pela universidade, embora haja numerosas exceções. Paralelamente a isso, é notável que vários dos violonistas observados hajam trilhado porções significativas de suas trajetórias de forma autodidata, o caso mais notável sendo o de Martín Neri, que jamais estudou música institucionalmente. O autodidatismo parece mais frequente fora do ambiente acadêmico, como seria de esperar num contexto menos formalizado. De toda forma, como já dissemos, mesmo a trajetória mais formalizada, a acadêmica, ainda apresenta um alto grau de informalidade (e oralidade). Ela se baseia em geral no estudo progressivo de obras do repertorio acadêmico formalizado103, realizado principalmente através daquela

relação individual professor-aluno, em encontros semanais de aproximadamente uma hora de duração104. Nestes encontros, a orientação do mestre é transmitida

tradicionalmente por via oral. Manuais, gravações e outros mediadores ocupam um papel secundário em relação ao trabalho prático orientado em aula. Não parece estar consolidada uma sistematização desses percursos que haja sido suficientemente difundida e aceita, e que determinasse quais obras, e a que momentos, deveriam ser estudadas, e de que formas, e que exercícios técnicos e musicais deveriam ser

100 Essa distinção entre instituições formativas públicas e privadas é relevante a ponto de constar na notória lei

26.801, a chamada Ley de la Música, em que figura no caput do Art. 12 como critério de conformação do Comitê Representativo do Instituto Nacional de Música que é objeto da lei (ARGENTINA, 2012)

101 O diploma universitário em violão está entre as mais importantes formas de legitimação social da atividade

violonística cujo efeito depende não necessariamente da prática musical direta, mas deriva antes do prestígio da instituição que o emite.

102 E também de Aguirre, quando confiava sua sobrevivência a sua atividade de professor.

103 O que costuma deixar de fora muita música ainda não sistematizada ou que seja formalizada através da

escrita (e difundida a partir de partituras, artigos, livros, etc.) ou de um corpo teórico que nomeie suas várias práticas. Isso ocorre por exemplo com alguma música pop contemporânea ou de criações híbridas que atravessam vários domínios técnico-estilísticos, ou mesmo de uma boa parte da música de concerto mais experimental, cuja formalização, embora existente, não alcança o território violonístico com força suficiente.

realizados em cada etapa, à maneira por exemplo do ensino da matemática nas escolas primárias e secundárias. O ensino do violão é altamente personalizado, e cada relação professor-aluno cria uma trajetória singular, dependente das diferentes características de cada estudante (dificuldades e facilidades, disponibilidade para o estudo, etc.). Não obstante, houve tentativas, como as de Sagreras e Carlevaro, já discutidas. Esses intentos, se não lograram (talvez sequer se hajam proposto a isso) unificar uma pedagogia formalizada do instrumento, ao menos criaram sistemas pedagógicos coerentes que atuam como mediadores parciais, participando do processo de ensino-aprendizagem violonístico e dotando-o de alguma sistematização. Se bem vários preceitos técnico-musicais desses pedagogos são tidos como indisputáveis nos discursos vigentes no território, incluída sua narrativa histórica, na prática a forma de tocar específica de cada violonista, incluídos professores e alunos, acaba sempre sendo bastante idiossincrática, respeitando a grande variação presente nos diversos aparatos técnicos individuais de cada agente violonista-violão específico: grossura, dureza e formato das unhas, tamanho, flexibilidade e resistência de mãos e dedos, proporcionalidade das dimensões de corpo e violão, características do instrumento, etc.

O que estamos afirmando, em suma, é que os intentos de formalização/sistematização do percurso formativo do violonista, mesmo considerando apenas o meio acadêmico, conseguiram produzir apenas um equilíbrio variável com a tradição oral que se transmite e se atualiza através das gerações, e que inclusive constitui uma chave de leitura das propostas sistemáticas existentes. Não obstante, é preciso notar que o esforço pedagógico de Carlevaro tem um lugar destacado na história violonística de forma geral, e proximidades culturais e geográficas, aliadas a circunstâncias históricas, o fazem particularmente disseminado e aceito em nosso território (basta lembrar que a maior autoridade violonística da região, Eduardo Isaac, foi discípulo de Carlevaro, bem como diversos outros professores importantes como Néstor Ausqui, de Santa Fe, ou Victor Rodríguez, de Rosario); nada disso implica, insistimos, que seja tomado em sua inteireza e literalidade.

Este modelo pedagógico, centrado na (mas não limitado à) relação professor- discípulo, é bastante difundido pelo mundo. Contudo, algumas variações foram observadas. O sistema universitário Argentino se propõe à universalidade, isto é, ao

menos em teoria aceita a inscrição de qualquer pessoa maior de 18 anos que tenha concluído o ensino médio ou seu equivalente105. Isso determina certas características

dos cursos de música pelo país, incluídas as universidades Nacional de Rosario (UNL) e a provincial Autônoma de Entre Ríos, em Paraná (UADER). Em primeiro lugar, existe uma superlotação dos primeiros anos de cada curso, o que exige soluções para atender a um contingente de alunos que frequentemente supera as possibilidades de recursos materiais e humanos. Na Universidad Nacional de Rosario106, talvez a maior

instituição acadêmica da região, o ensino do violão às vezes toma feições coletivas: as aulas individuais tendem a ter seu tempo “ideal” de uma hora reduzido para acomodar os diversos alunos; entretanto, existe a prática da participação de estudantes nas aulas de seus colegas107. Havendo participado, como alunos, deste

curso, no ano de 2007108, pudemos observar o funcionamento do sistema, que acaba

consistindo em aulas “semi-individuais”, quase que em formato de masterclass. É importante esclarecer que a especificidade que estamos marcando aqui reside no fato de que, na prática, o próprio eixo da formação violonística (a relação do professor com seu discípulo) se encontra mais “aberto” do que o modelo que o inspira (as aulas individuais)109.

Na Escola de Música da UADER, embora vija o modelo da aula individual, ele ocorre aqui com uma diferença fundamental. Não há um único professor que seja responsável pelo trajeto do aluno durante sua formação superior, mas sim um processo rotacional através do qual cada estudante trabalha durante um período de um quadrimestre com cada um dos cinco professores de violão (Ernesto Méndez, Silvina López, Pablo Ascúa, Luis Medina Walter Gómez), ao mesmo tempo em que faz de 8-10 aulas anuais com o professor responsável pela área de violão, Eduardo Isaac. Dessa forma, segundo nos informa Méndez (2014),

105 Este benefício é estendido inclusive a outros cidadãos latino-americanos, e não é incomum que as

facilidades de acesso a este sistema atraiam estudantes de vários países vizinhos, o Brasil incluído.

106 E também em outras universidades do país, como tivemos ocasião de experimentar in loco.

107 Isso é favorecido tanto pelo tempo reduzido de aula quanto pela quantidade de alunos que se cruzam

próximos à sala de aula no tempo em que vão transcorrendo as aulas do dia.

108 Cátedra do professor Victor Rodríguez, que também foi professor de Marcelo Coronel.

109 Mesmo no modelo de aulas individuais, práticas coletivas costumam estar presentes nos trajetos

É algo que funciona muito bem. Porque (...) gera outro tipo de vínculos que creio que são muito valiosos, de camaradagem entre nós, entre os estudantes (...) porque há um grande grupo de gente que se sente contida em uma espécie de projeto comum (...), há realmente uma comunidade de gente que se sente mais integrada. [Isso] exige do estudante um juízo crítico e mais protagonismo, porque em algum momento o estudante também tem que fazer certas sínteses de todas as informações que lhe são dadas, porque (...), pela simples razão de sermos diferentes maestros, às vezes não temos a mesma opinião.110

Vemos, portanto, que existe uma preocupação ou pressão, por assim dizer, “coletivizante”, nas práticas formativas acadêmico-estatais no território, em parte alavancadas pela diretriz radicalmente democratizante do ensino superior na Argentina. Méndez (2014) fala numa concepção político-ideológica da universidade argentina: “o conhecimento é para todos”, mas observa que a facilidade de acesso que esse direcionamento ocasiona frequentemente leva o usuário do sistema – o aluno – a uma subestimação de seu valor.

Os violonistas que seguem uma trajetória acadêmica, não só no território mas em toda Argentina (inclusive não apenas no violão), se caracterizam por avançar nela até a conclusão de uma graduação, apenas. Mesmo entre os professores universitários, é bastante incomum a formação acadêmica para além deste nível, e o país oferece pouquíssimos cursos de mestrado em violão111, e não existe no país, ainda, um

doutorado nesta área.

Outras características derivadas do modelo universitário (e social) argentino são os cursos de nivelamento (aplicados por exemplo na UNR, com duração de dois anos), criados porque a universidade tem que lidar com a iniciação musical, em que pese a presença de outras instituições estatais que cumpram esta função (a Escuela Provincial de Música de Rosario Nro. 5030, em Rosario, e a própria Escuela de

110 Es algo que funciona muy bien. Porque (...) genera outro tipo de vínculo que creo que son muy valiosos, de

camaradería entre nosotros, entre los estudiantes (...) porque hay um gran grupo de gente que se siente contenida en uma espécie de proyecto comum. (...) hay realmente uma comunidade de gente que se siente más integrada. [eso] exige del estudiante um juicio crítico y más protagonismo, porque em algun momento el estudiante también tiene que hacer certas sínteses de todas las informaciones que se le da, porque por ahí somos, por el simple hecho de ser distintos maestros, a veces no tenemos la misma opinión.

Música, Danza y Teatro Profesor Constancio Carminio em Paraná), e o tempo relativamente alto de permanência no curso112.

Se a organização do ensino superior argentino deriva neste tipo de variações pedagógicas, também a influência das tradições folclóricas se faz sentir nas particularidades das práticas formativas do território. Toda a prática musical de um músico como Martín Neri advém daí, e professores como Victor Rodríguez, Ernesto Méndez, Néstor Ausqui e Marcelo Coronel centram sua atividade musical neste repertório. Como resultado, tanto na academia quanto fora dela, as tradições musicais folclóricas (bem como o tango, o rock, o jazz) determinam outros percursos de aprendizado. Estes vêm ganhando em formalização e sistematização, conforme pudemos comprovar pelos depoimentos de Coronel (2014) e Méndez (2014), que afirmam a penetração do folclore na academia, e pela existência de recentes manuais dedicados a abordar a pedagogia do violão a partir destas práticas. Além disso, o impacto do folclore na prática musical e violonística é sensível mesmo para o público em geral, como atestam alguns dados que obtivemos referentes à província de Santa Fe.

Estes dados chamam a atenção para a inclusão de conteúdos musicais nas disciplinas do ensino básico oficial. Conforme pudemos comprovar, o material didático oferecido na escola pública neste nível da formação, e que está sob responsabilidade provincial, aborda a Música do Litoral e seus expoentes, e assim indiretamente traz o violão para dentro da formação básica da comunidade. Evidentemente que se trata de uma contribuição modesta dentro de um universo de conteúdos amplos, sem pretensões técnico-musicais, mas que não deixa de ser significativa como prática formativa e institucional. Em 2010, o Ministerio de innovación y cultura de Santa Fe também distribuiu na rede pública um material (CD e caderno) de Música del Litoral, para ser utilizado pelos professores em suas práticas formativas, vinculando-as à cultura local, à música e, de forma menos direta, ao violão.

112 Observamos que os estudantes permanecem cursando um tempo em geral 50% maior que o previsto,

resultando em períodos de 6 a 9 anos de estudos, fora um eventual nivelamento. A característica específica do modelo argentino, no qual é possível cursas as matérias sem as rendir (isto é, prestar os exames finais para obter aprovação), leva a que muitos estudantes acumulem, às vezes durante anos a fio, várias matérias

cursadas mas com exames pendentes, o que pode alongar ainda mais seu tempo de permanência na

Quanto às produções mais especializadas, podemos citar o manual Guitarra Clásica y Música Popular113 (FERRER e RODRÍGUEZ, 2009), que consiste numa proposta de

aprendizado violonístico diferenciada em relação a outras atualmente disseminadas em diferentes partes do mundo. Ela parte de características estéticas e técnico- musicais do folclore argentino para propor um novo trajeto no conhecimento do instrumento e seu repertório. Em lugar de trabalhar os vários toques e formas de produção de som abordados nos manuais tradicionais (CARCASSI, 1979; CARLEVARO, 1979; PINTO, 197?; SAVIO, 19--; SOR, 1896?; TENNANT, 1995?, etc.), que têm como objetivo, desde o início, alcançar a produção de notas com a maior clareza e definição de frequência possíveis – adequando-se às exigências do repertório clássico-romântico europeu canônico -, o método de Ferrer e Rodríguez começa utilizando sons de altura indefinida, percussivos, que são bastante familiares ao universo das músicas ditas “populares” na América Latina, e em especial na Argentina e na região do litoral (o tango incluído). Seguem-se os rasgueados, uma técnica, como veremos, essencial à execução e apreensão desse repertório, e que alcançou uma grande sofisticação e variedade no folclore argentino, para só então chegarmos, e mesmo assim da forma particular dos autores114, às técnicas de

produção de som “dedidilhadas” ou “ponteadas” que são – ou foram durante largo tempo - características do violão de concerto. Em todos os casos, o manual oferece, em lugar das poucas obras de uns poucos autores consagrados que se costuma utilizar nesse período de contato inicial com o instrumento, obras inéditas baseadas em ritmos folclóricos familiares aos habitantes da região. Uma consequência notável deste método é alcançar algum resultado musical num tempo bastante menor que o convencional, já que as técnicas “ponteadas”, mesmo num estágio muito incipiente, exigem precisão e coordenação das mãos, aliadas a uma certa familiaridade com a geografia do instrumento, o que as torna bem menos acessíveis que as técnicas percussivas e de rasgueado.

Outro desenvolvimento pedagógico que podemos citar diz respeito ao trabalho com instrumental diversificado em uso no território, sobretudo guitarrones e requintos. O violonista, professor e pesquisador Ricardo Antonio Pico , da cidade de Gualeguay,

113 Violão Clássico e Música Popular.

114 Que partem da utilização, além dos toques usuais com a musculatura de contração dos dedos, também dos

toques baseados nos músculos extensores, uma técnica pouco convencional no violão se aplicada à produção de notas individuais/melódicas.

difundiu na região (tivemos contato com o material na cidade de Rosario) uma monografia resultante de sua pesquisa com agrupações instrumentais de violões e outros cordofones a ele aparentados, em que propõe um sistema de leitura baseado em diferentes claves transpositoras para cada um dos vários cordofones: o livro se chama Claves para el ensamble de Requinto, Guitarra y Guitarrón, e foi editado em 2006. Os detalhes do sistema desenvolvido por Pico são menos importantes aqui do que o exemplo que ele dá de práticas pedagógicas que podem derivar de uma leitura mais pragmática da realidade do território. Um último exemplo que poderíamos citar é a publicação do livro “Ritmos y formas musicales de Argentina. Paraguay y Uruguay”, de Jorge Cardoso (2006), que reuniu e organizou uma grande quantidade de informações sobre inúmeros gêneros folclóricos argentinos, uruguaios e paraguaios, aplicando-as ao violão.