• Nenhum resultado encontrado

O modo que a criança escreve

No documento Elizângela Sponholz - Dissertação final (páginas 106-111)

5 Resultados e discussão

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.2 EXPRESSÃO ORAL E ESCRITA DA CRIANÇA: ANÁLISE DO DISCURSO E DA EXPRESSÃO TEXTUAL DAS CRIANÇAS ENQUANTO SUJEITOS ENVOLVIDOS

5.2.5 O modo que a criança escreve

De acordo com a perspectiva histórico-cultural, a criança se aproxima da linguagem escrita muito antes de frequentar a escola, visto que está inserida em um ambiente letrado, tendo acesso ainda muito cedo à linguagem escrita que reside na embalagem do iogurte, na estampa das suas roupas, na sua escova de dente, ou seja, em toda parte.

Luria (1988a), ao analisar a relação entre o sujeito e o desenvolvimento da escrita, destacou que este processo tem um longo caminho já percorrido quando esta é inserida na escola:

O momento em que uma criança começa a escrever seus primeiros exercícios escolares em seus cadernos de anotações não é na realidade, o primeiro estágio do desenvolvimento da escrita [...] podemos até mesmo dizer que quando uma criança entra na escola, ela já adquiriu um patrimônio de habilidades e destreza que a habilitara a aprender a escrever em um tempo relativamente curto. Se apenas pararmos para pensar na surpreendente rapidez com que uma criança aprende esta técnica extremamente complexa, que tem milhares de anos de cultura por trás de si, ficará evidente que isto só pode acontecer porque durante os primeiros anos de seu desenvolvimento, antes de atingir a idade escolar, a criança já aprendeu e assimilou um certo número de técnicas[...] (LÚRIA, 1988a, p. 143).

Fontana e Cruz (1997) destacam que é por intermédio da mediação do outro que o sujeito se apropria da escrita, mesmo antes do seu ingresso no âmbito escolar, imitando o adulto na tentativa de escrever e fazendo suas “suposições”. Já, ao ingressar na escola, a

relação da criança com a escrita passa a ser diferente, intensificada e sistematizada, visto que, a partir desse momento, a escrita deve ser convencionada e sua apropriação é intencionada e explicitada.

Vygotsky (1994) defende que a escrita, em uma relação de desenvolvimento filo e ontogenético, é, para o sujeito, a descoberta de que a fala pode ser expressa graficamente, primeiro por meio de desenhos e rabiscos e depois por símbolos, culturalmente estabelecidos. “Foi essa descoberta, e somente ela, que levou a humanidade ao brilhante método de escrita por letras e frases; a mesma descoberta conduz as crianças à escrita literal” (VYGOTSKY, 1994, p. 153).

O sujeito é, historicamente, constituído em uma sociedade letrada, formada por costumes, habilidades e condutas humanas, sociais e culturais que regulam a consciência, o comportamento e a relação com o outro e com o mundo utilizando cada vez mais a linguagem escrita para sua comunicação (BORDIN, 2010).

[...] a linguagem é uma atividade criadora e constitutiva de conhecimento e, por isso mesmo, transformadora. Nesse sentido, a aquisição e o domínio da escrita como forma de linguagem acarretam uma crítica mudança em todo desenvolvimento cultural da criança (BORDIN, 2010, p. 11).

A partir dessa afirmação, compreende-se que a linguagem escrita, enquanto processo cultural, social e historicamente constituído, representa um instrumento para o sujeito expressar seu discurso interno, de modo que se faça compreender pelas pessoas as quais, julga serem relevantes para propagação de seus pensamentos, indagações, críticas (SMOLKA, 2017).

É por meio da linguagem que o sujeito tem a possibilidade de ultrapassar os limites que se apresentam no decorrer do seu desenvolvimento, ampliando suas experiências, sendo a palavra a peça “fundamental da linguagem”, visto que denomina tudo que cerca o sujeito, as coisas, os sentimentos, as ações, os fenômenos, ou seja, “é a palavra que codifica a experiência” (GERKEN, 2008, p. 555).

A palavra não somente designa uma coisa e separa suas características. A palavra generaliza uma coisa e a inclui em uma determinada categoria, ou seja, possui uma complexa função intelectual de generalização (...) Ao generalizar os objetos, a palavra converte-se em um instrumento de abstração e generalização, que é a operação mais importante da consciência (...) Isto significa que a palavra não é somente um meio de substituir as coisas, é a célula do pensamento, precisamente porque a função mais importante do pensamento é a abstração e a generalização (LURIA, 1987 apud GERKEN, 2008, p. 555).

Para esta pesquisa, foi de fundamental relevância que o sujeito tivesse a capacidade de externar, através da linguagem escrita, o “discurso interno” que foi assimilado, associado e internalizado ao longo da intervenção. Sendo assim, é imprescindível:

“...levar em conta, numa análise da linguagem escrita, suas condições e funções: a escrita De quem? Para quem? Como? Quando? Onde? Ser explicativa não é uma característica, uma propriedade específica da escrita. É um efeito do seu uso em determinadas circunstâncias” (SMOLKA, 2017, p. 6).

Observou-se, na expressão textual dos estudantes participantes da pesquisa, alguns aspectos considerados relevantes no processo de intervenção proposto. Sendo a escrita uma ferramenta de mediação do sujeito, com a qual externa seus pensamentos utilizando símbolos e signos (FONTANA; CRUZ, 1997), o que este sujeito escreve, durante um processo de intervenção social, reflete o que está sendo processado em seu interior.

Além das mudanças em relação aos conceitos trabalhados, que demonstram que houve uma alteração no conceito inicial, também é possível verificar que, durante os encontros, os estudantes foram, gradativamente, apropriando-se do tema, analisando com os fatos ocorridos, cotidianamente, na escola, identificando-se vítima, agressor ou espectador e transformando sua postura frente as situações de bullying.

Para a criança em desenvolvimento, conforme afirmam Brites e Cássia (2012), os fatores pessoais e a sociedade em que convive são fundamentais para embasar sua maneira de pensar e comunicar seus pensamentos e sentimentos. Nesses processos, a linguagem desempenha um papel de extrema relevância (BRITES; CÁSSIA, 2012).

A oralidade das crianças pesquisadas foi sendo transformada, durante os encontros, visto que uma proposta de respeito às diferenças e valorização do ser humano estava sendo trabalhada de maneira positiva, repudiando a violência em todos os aspectos, principalmente nos aspectos que trazem referência ao bullying e exaltando as qualidades individuais e do grupo.

Episódio 13 – Grupo 2 – Segundo encontro PESQUISADORA - só que chegou a um ponto...* Risos pela graça

CRIANÇA 21 - deixa eu ver, essa foi engraçada Pesquisadora, foi bem feito pros valentões, né? CRIANÇA 19 - bem feito, isso que dá

PESQUISADORA - Mas será que é a melhor solução? VÁRIOS - nããão

CRIANÇA 11 - e os outros ficaram calados daí CRIANÇA 17 - mas bem que eles mereceram

Episódio 14 - Grupo 2 – Sétimo encontro

PESQUISADORA - vocês acharam que a atitude do Andreu (personagem do livro) foi ...

CRIANÇA 21 - boa

PESQUISADORA - foi boa? VÁRIOS - foi

CRIANÇA 23 - é naquela folha que lá que nós fizemos todos numa sala? PESQUISADORA - éé

CRIANÇA 23 - eu sabia a resposta

PESQUISADORA - alguns não escreveram...por que a atitude do Andreu

(personagem do livro) foi boa?

CRIANÇA 15 - porque ele criou um projeto para acabar com o bullying na escola PESQUISADORA - o que vocês fariam

CRIANÇA 19 - ele fez um projeto para isso... PESQUISADORA - para evitar

CRIANÇA 19 - para acabar a agressão

Nestes dois trechos de transcrições acima, do segundo e do sétimo encontros, da turma multisseriada do 4º e 5º anos, é perceptível que o estudante CRIANÇA 19, que foi delatado pelos demais estudantes como agressor do colega CRIANÇA 13, sugere, ao ver o filme produzido por crianças, que seja feito por eles um projeto semelhante. Tal fato sugere uma mudança de comportamento da criança.

Verifica-se, nas transcrições do 3º ano, que o mesmo fato ocorreu com os estudantes apontados como agressores. No segundo encontro, os estudantes CRIANÇA 8 e CRIANÇA 10 relatam uma briga dos dois, sendo que a CRIANÇA 8 afirma que em vários momentos o colega, CRIANÇA 10, o agride repetidamente. Já, no último encontro, os estudantes são mais suaves no uso da palavra e defendem a prática do respeito.

Episódio 15 - Grupo 1 – Segundo encontro

CRIANÇA 8 - é que nem um dia, o CRIANÇA 10 tava puxando meu cabelo daí eu peguei e dei um chute no “saco” dele, daí alguém contou pra ele

PESQUISADORA - você acha que fez uma coisa legal

CRIANÇA 8 - não mas daí, alguém foi lá e falou pro professor L, e o professor L falou bem feito

Pesquisadora - mas foi uma coisa legal? TODOS não

PESQUISADORA - nem um dos dois fez uma coisa legal, por quê?

CRIANÇA 10 - que ele me deu chute, isso dali ele mentiu, mas que eu tava puxando os cabelos dele é verdade

CRIANÇA 8 - verdade, é verdade e eu dei um chute nele Episódio 16 - Grupo 1 – Sétimo encontro

CRIANÇA 4 - eu gostei daquela parte, eu não gostei daquela parte que eles também tavam chamando ela, daí na parte que eu gostei que eles ficaram amigos

PESQUISADORA - exatamente, ééé CRIANÇA 10

CRIANÇA 10 - eu achei engraçado uma hora o Cebolinha pediu que a Magali queria sorvete ficou com uma cara engraçada??????????????????????

CRIANÇA 9 - ô profe eu gostei daquela parte lá que a Mônica falou “você não vai mais me chamar nem mais de dentuça, nem de gorducha?”... daí o Cebolinha, ele falou “eu prometo”

“eu plometo”

PESQUISADORA – CRIANÇA 8

CRIANÇA 8 - eu gostei, quer dizer eu não gostei daquela parte que o Cascãozinho chamou ela de gorducha

CRIANÇA 9 - dentuça

CRIANÇA 8 - dentuça e gorducha CRIANÇA 4 - e baixinha

PESQUISADORA - shshsh (pedido de silêncio) deixa um por vez

CRIANÇA 8 - eu gostei daquela parte que eles ficaram amigos naquela pedra e com aquelas roupinhas, eu gostei

PESQUISADORA - foi legal, né?...CRIANÇA 13

CRIANÇA 13 - eu gostei naquela parte que eles viraram amigos PESQUISADORA - foi legal, né? CRIANÇA 7

CRIANÇA 7 - eu gostei daquela parte lá que ficaram meio chamando a Mônica de CRIANÇA 4 - baixinha, orelha de burro

PESQUISADORA - CRIANÇA 6

CRIANÇA 6 - eu gostei daquela parte em que eles ficam amigos também, PESQUISADORA - foi legal, né? CRIANÇA 5

CRIANÇA 5- foi legal aquela parte, eu gostei daquela parte que, se ele não fez nada com o Mônica...a como que é? Eu nunca te vi com essa cara tão brava assim

Ao verificar a mudança no discurso, pode-se compreender que a linguagem desempenha um papel determinante no processo de ressignificação das opiniões prévias, inclusive da ausência de opinião sobre o tema em questão. Isso ocorre porque a comunicação é o principal componente da mediação entre indivíduos, adultos e crianças (SCHADECK, 2014).

A mediação do adulto, entretanto, é considerada fator fundamental para que a criança consiga realizar a apropriação dos instrumentos da cultura, sendo esta apropriação o fator que permitirá seu desenvolvimento enquanto humano. Este processo é essencial para qualquer criança, apresentando ela algum tipo de deficiência ou não. É por meio da mediação, por exemplo, que somos capazes de aprender os diferentes usos que existem para a linguagem, e por meio destes usos, descobrimos as diferentes funções desta habilidade. E é pela linguagem que as pessoas, especialmente as crianças, têm acesso aos conhecimentos com os quais eles não têm contato direto, o que não apenas facilita, mas torna possível todo o processo de apropriação humana (SCHADECK, 2014, p. 21).

Sempre lembrando que, ao falar sobre linguagem, Vygotsky não se refere apenas à fala. Para o autor, a linguagem abrange um complexo de ações do comportamento do sujeito (expressão corporal, como na linguagem de sinais, escrita, desenho, fala) que possibilitam a comunicação e, consequentemente, organizam as informações recebidas, porém, a fala é apenas um dos meios de “expressão da linguagem”.

Nos textos e transcrições expostos acima, bem como no restante do material coletado durante os encontros, foi possível identificar que, ao longo do processo, os estudantes

apresentaram alterações consideradas relevantes em relação aos objetivos pretendidos pela pesquisa.

5.3 EXPRESSÃO GRÁFICA (DESENHOS): ANÁLISE DA EXPRESSÃO GRÁFICA DAS

No documento Elizângela Sponholz - Dissertação final (páginas 106-111)