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Capítulo 2. “Qual é a função da escola?”: uma análise da crise escolar e da intervenção

2.2. Uma crise de autoridade? Hierarquias e diálogos entre professores e alunos

Duas questões destacam-se dos relatos de professores acerca da crise escolar: a indisciplina (representada na figura do aluno que, sozinho, é capaz de “desestruturar toda uma sala”) e o auxílio de especialistas. Elas indicam que é no plano da relação com o aluno e no plano do conhecimento técnico que se fortalece um sentimento de crise de autoridade.

O professor tem um papel político. De acordo com Arendt (2000), ele é responsável pela inserção da criança na esfera pública (o que, sob outras perspectivas, se denomina “socialização”) e pela concretização da função educativa, a saber, mostrar ao aluno o que a sociedade realmente é. Mas, acima de tudo, cabe ao professor “salvar o mundo da ruína da permanência”. Ele deve permitir o estabelecimento de um diálogo entre o passado e o presente, o antigo e o novo, já que a criança porta consigo a possibilidade da renovação das relações. A crise de autoridade do professor — isto é, de sua função política — consiste então na dificuldade da educação contemporânea e de seu profissional de garantir o trânsito entre a permanência e a mudança trazida ao mundo pela criança.

Transpondo a consideração de Arendt ao nosso contexto mais imediato — aquele em que a infância se constitui de diferentes aspectos inéditos, incluindo uma experiência de “não infância” (a depreciação das crianças que frustram os desejos adultos e a confusão entre as especificidades infantis e adultas) —, seria plausível cogitar que o professor se prende ao “antigo” (a preceitos e estratégias de disciplina que impossibilitam um diálogo a partir do qual docente e aluno se realizariam como indivíduos autônomos) e refuta a “revolução” infantil ao tomá-la como indisciplina, falta de limites e desrespeito à autoridade adulta46

. Um indício da

46 É preciso enfatizar que não se defendem aqui as agressões físicas e verbais perpetradas por alunos contra os

profissionais de educação. E tampouco as agressões praticadas por estes contra aquelas. Mas, assim como todas as formas de violência, é preciso compreender o problema subjacente.

valorização do passado poderia ser identificado na repetição nostálgica, dentro e fora das escolas, da ideia transmitida em relatos como o do professor Everton:

Tinha problema, a gente era expulso [da escola]. Quantos foram expulsos da escola! Então o aluno começava a fazer muita coisa, chamava uma vez, duas vezes, três vezes, expulsão. Aí tinha que ir pra escola particular que era inferior à nossa. Era outra época. (Everton, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).

O antigo também se refere ao conhecimento pedagógico, seja ele apreendido em seu aspecto de conhecimento geral formalizado em conteúdos a ser transmitidos aos alunos, seja o conhecimento pedagógico em si, técnico e, por isso, dominado pelo professor. O primeiro é facilmente acessado pelas crianças mesmo fora dos muros escolares, em razão do advento da internet e dos usos das tecnologias, os quais as crianças dominam mais facilmente do que os adultos. A crise da autoridade estabelece-se nesse nível devido a uma indefinição do que é próprio ao conhecimento do professor e o que é ao do aluno (foram identificadas no capítulo anterior as implicações desse tipo de indefinição no que toca ao mundo infantil e a vida adulta). Restam-lhes as interações cotidianas fundadas nas hierarquias e nos diálogos. Já em relação ao conhecimento técnico pedagógico, alguns professores participantes da pesquisa insistiam na utilização de métodos e técnicas de ensino aprendidas durante seu curso de formação superior, há cerca de vinte anos. Outros, diante da ineficiência da instituição escolar em desenvolver as competências discentes e docentes (especialmente no que se refere, neste caso, à gestão de conflitos), reforçavam a necessidade de atualização do conhecimento técnico do profissional de educação.

Prevalece nas relações entre alunos e professores, observadas em trabalho de campo, a ênfase dada às hierarquias, à contenção do corpo infantil e ao disciplinamento. Hierarquias são escalas de autoridade. Nos termos foucaultianos, hierarquias são desigualdades de poder que regulam as relações sociais. Hierarquizar é, nos dispositivos disciplinares, um procedimento que possibilita — em conjunto com os atos de identificar, medir e comparar — situar o indivíduo em seu espaço dentro de uma instituição, vigiá-lo e agir sobre seu corpo, seus comportamentos e seus conhecimentos. A maquinaria que se constitui determina as diferenças entre as crianças. Anotam-se desempenhos, aptidões e caráter pessoal a fim de estabelecer classificações rigorosas e relativas à normalidade (FOUCAULT, 1991b). Nela, o olhar que vigia e examina cria um saber sobre o ser humano a ser trabalhado. A criança torna-se, portanto, um objeto de conhecimento e de intervenção pedagógica (e também médica).

E assim elas são tratadas em sala de aula. Em diferentes momentos do campo, professores dirigiram-se a mim para informar as condições de aprendizagem de um determinado aluno e fazer comentários sobre seu rendimento escolar. Alguns mais discretos murmuravam para que ninguém mais os escutasse. Outros, contudo, comunicavam, em alto e bom som, as deficiências do aluno como se ele não pudesse compreender o que era dito em sua presença. Os professores pareciam desprezar o fato de que eu me encontrava do outro lado da sala e de que, estando o espaço repleto de crianças, todas elas ouviam o que era dito negativamente sobre seu colega.

É interessante notar que esse tipo de relação hierárquica entre o adulto (que fala e sabe) e a criança-objeto (que ouve, mas não compreende os “assuntos de adultos”) estabelecia-se também em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil (BARBARINI, 2011; 2015). As diferentes hierarquias constituídas naquele espaço (entre profissionais e leigos) mantinham a criança em suas posições mais inferiores. Ela era um caso médico e um objeto de discurso cujas deficiências eram relatadas pelos pais aos demais adultos. Aparentemente, eles ignoravam que a criança presente ouvia, compreendia e sentia o que se falava sobre ela.

Mais do que um poder que se possui, a autoridade é uma relação, um jogo de forças. Em uma ponta há quem conhece (isto é, domina os saberes técnicos ou as experiências de viver o mundo) e, na outra, quem deve ser ensinado. O jogo nunca está totalmente equilibrado, pois o sujeito de autoridade existe tão-somente na presença e a partir do consentimento do outro. Um médico não é uma autoridade social apenas devido ao seu diploma e ao saber que ele representa (embora esses elementos confiram-lhe legitimidade em uma relação de poder-saber). Ele o é também por consentimento de seu paciente, de seu colega de trabalho, da comunidade científica, da sociedade. Diante de um desvio de sua função ou de uma imagem ideal do bom médico, sua autoridade pode ser contestada47

.

A autoridade do professor também é consentida. Em interação com alunos, famílias, colegas de trabalho e especialistas, os docentes disputam um constante jogo de forças. E as situações de sala de aula são fontes ricas para a compreensão dessas relações de autoridade escolar. Lá, a crise de autoridade do professor é popularmente entendida como o desrespeito alimentado pelo aluno em relação ao profissional de educação. Ela implica a

47 Observei no ambulatório mencionado que, nas interações entre especialistas e leigos, os médicos dispunham

de estratégias para conquistar seus pacientes (por exemplo, não deslegitimar, logo no primeiro encontro, as experiências ou as opiniões dos pais), bem como as mães mobilizavam concepções de lealdade, proximidade e confiança para avaliar o desempenho do psiquiatra. Nas escolas, por sua vez, alguns professores contestavam a intromissão dos especialistas no espaço escolar, chamados por seus colegas a lhes instruir sobre como lidar com uma criança com dificuldades de aprender.

desobediência e o enfrentamento (físico, verbal e simbólico), noções que se conjugam com a indisciplina.

Os confrontos observados em campo irrompiam, geralmente, de discussões e embates físicos e verbais: o aluno que tomava a caneta do professor quando ele anotava seu mau comportamento no livro de ocorrências ou o desentendimento entre um docente e uma criança, em sala de aula, acerca de um bilhete enviado pelo primeiro à avó da segunda. “Eu não ligo” e “e daí?!” eram expressões, usadas nas discussões, que pretendiam mostrar certa indiferença do aluno para com ameaças feitas pelo professor (tais como ficar sem material, sair da sala, ser excluído do grupo etc.). Outras atitudes que podem ser citadas, no sentido da indiferença, são o ignorar uma repreensão do professor e continuar a agir como antes ou ainda manter o caderno fechado — enquanto se tomava suco — durante uma explicação ou a correção da tarefa.

O enfretamento das hierarquias também ocorria coletivamente e em sentido simbólico. As crianças uniam-se, principalmente, quando se tratava de desafiar as normas e as figuras de autoridade da instituição escolar. Cito um acontecimento. O inspetor foi chamado a uma sala de sexto ano para substituir momentaneamente a professora. Sem emitir qualquer palavra, os alunos começaram a bater os pés no chão de madeira no ritmo de “We will rock you”, uma música do final dos anos 70 que simboliza, por meio de seu conjunto harmônico, o enfrentamento.

As tentativas de restabelecimento da ordem disciplinar, feitas por docentes, se expressavam em ações como anotar comportamentos e ameaçar alunos. Em diferentes momentos do trabalho de campo, alguns educadores usaram minha presença, enquanto observadora externa com um caderno de anotações à mão, como um recurso para ordenar os alunos e obter atenção e obediência: “ela está observando seu comportamento. Imagina o que os professores dela vão achar de vocês”. Outros diziam veementemente: “ela não está aqui para conversar com vocês”. Já as ameaças envolviam punições mais claras ao mau comportamento: “Vocês voltam piores do recreio. Se continuarem assim, vão só descer para comer o lanche e voltar”. O restabelecimento da ordem entre professores e alunos implicava, do mesmo modo, a imposição de formas de tratamento que denotavam o respeito à hierarquia. Respondendo ao aluno que a chamou pelo primeiro nome, a professora Julia disse-lhe, enfatizando sua postura de autoridade: “Professora Julia! Eu não sou sua colega de sala”.

As ações de restabelecimento da disciplina em sala (nem sempre exitosas) coexistiam com obstáculos à instauração da comunicação entre professores e alunos. Embora a flexibilização das relações entre adultos e crianças seja um fenômeno contemporâneo,

favorecido pelos programas governamentais de educação escolar, o diálogo não se realizava efetivamente.

As crianças me perguntavam: “você conversa com os bagunceiros?” ou “você anota o que os mais bagunceiros fazem?”. A repetição desse tipo de indagação permitiu-me identificar, com convicção, que estávamos em um ambiente disciplinar. Ao explicar-lhes que meu objetivo era registrar acontecimentos e falas significativos à compreensão da realidade escolar, foi possível desconstruir uma ideia pré-concebida de que, na escola, os adultos somente anotam e conversam com as crianças a fim de vigiá-las e puni-las. Estabelecia-se então um diálogo entre adulto e criança fundado na troca (ainda desigual) de experiências.

Minha presença nos espaços livres e nas salas de aula despertava a curiosidade de alguns alunos. Eles questionavam quem eu era, o que fazia ali, qual classe observaria. Aproximavam-se para conversar comigo, contar suas histórias, perguntar se eu sabia “plantar bananeira”, oferecer-me comida, me abraçar. Certo dia, escutei meu nome ressoar pelo pátio. Era o Gustavo vindo da cantina com um cachorro quente em uma mão e uma caneca de suco na outra. Com a boca cheia, contava-me sobre seu fim de semana. Talita vinha pelo outro lado pulando e dançando, como sempre fazia, até mesmo para ir ao lixo da sala de aula e apontar seu lápis.

Esse tipo de relação, menos hierarquizada, se estabelecia também entre alunos e professores que, mesmo mantendo sua postura de autoridade, permitiam a aproximação da criança e ouviam seus relatos. De modo geral, os profissionais de todos os estabelecimentos de ensino visitados conversavam com os estudantes, indagavam-lhes sobre suas rotinas e hábitos fora da escola, entre outros assuntos. No entanto, o diálogo que não se efetivava (ou se fazia com resistência) diz respeito à construção conjunta de regras, conhecimentos, pautas de ação no espaço escolar e comunitário e às dificuldades de aprender. Ou mesmo à compreensão mútua dos sentimentos e problemas enfrentados por crianças e professores. Esse tipo de comunicação concretizava-se mais comumente no programa de educação não formal. Já nas escolas convencionais, sobretudo em sala de aula, a interlocução estabelecida entre educadores e educandos visava destacadamente a fazer uma criança relatar aquilo que havia presenciado acerca de um acontecimento polêmico (como o caso da garrafa de água do Leo, chutada por alunos durante o recreio sem sua autorização) ou a delatar os colegas envolvidos nele.

A instituição do diálogo construtivo em sala de aula é uma demanda. Questionado sobre quais seriam as possíveis medidas adotadas pelos professores em casos de alunos com dificuldade de aprender, Luan respondeu:

O professor podia ir lá e ajudar o aluno (silêncio). Nas maiores dificuldades ainda. Falar menos do aluno... E se o aluno começasse a ficar meio nervoso com ele de chamar tanto a atenção, ele começar a abaixar um pouco, né?! Porque se a pessoa estiver imaginando alguma coisa... depende. Se ela tiver um trauma e não conseguir resolvê-lo, aí tem que pedir alguma ajuda, né, profissional. Mas se estiver pensando coisas boas, não tá atrapalhando nem a aula, depois, qualquer coisa, o professor passa a matéria pra ele. (Luan, 13 anos. Entrevista concedida em 01 jul. 2013).

A comunicação entre educador e educando pode se estabelecer, conforme a reflexão do menino, pela cooperação. Por um lado, o professor conscientiza-se da dificuldade do aluno e o auxilia (ainda que a ajuda seja “passar a matéria depois”), em vez de repreendê- lo. Por outro lado, entende-se que o aluno assumiria seu papel e executaria as atividades escolares propostas pelo docente. É interessante notar que Luan distingue dois tipos de profissional habilitado a auxiliar a criança em dificuldade: o professor (responsável por dar atenção, não provocar reações negativas e transmitir os conteúdos pedagógicos) e o psicólogo ou outro especialista apto a ajudar uma pessoa em caso de “trauma”. Com essa distinção, Luan reconhece a existência, nas práticas escolares, de uma função social e política docente (o diálogo e o cuidado em sua relação com o aluno) e da funcionalidade do saber técnico especializado.

Danilo (doze anos) também põe em questão as relações entre educadores e educandos, principalmente no que se referem aos desempenhos escolares e à indisciplina. O menino era visto por seus professores como um mau aluno antes de ser diagnosticado com TDAH e iniciar seu tratamento medicamentoso. E, diante dessa experiência, ele denuncia as práticas distintivas direcionadas a alunos tidos como perturbadores, reforçando a necessidade do diálogo atentivo: “Quando eu não tomava remédio, os professores ignoravam minhas perguntas. Com o remédio eles não ignoram mais. [...] Os professores poderiam dar mais atenção”. Há que se observar, entretanto, que a atenção às particularidades dos alunos em dificuldade pode ter efeitos outros que a superação das desigualdades de aprender. Alguns professores elaboravam atividades diversificadas — e mais fáceis, segundo as crianças — para estudantes com impedimentos no processo de aprendizagem. Por um lado, essa estratégia reforçava a distinção de desempenhos. Por outro, ela era, por vezes, usada para transgredir as regras empregadas. Esse era o caso de alunos que, usando a justificativa de terem dificuldades, solicitavam a folha com exercícios diferenciados como algo justo e de direito.

Os relatos e reflexões de Luan e Danilo, alunos diagnosticados com TDAH, colocam em um mesmo plano o enfrentamento ou o questionamento da relação hierárquica escolar (e, consequentemente, da ausência de diálogo) e a validade do saber técnico pedagógico na abordagem das dificuldades dos alunos em sala de aula. Um exemplo mais

claro disso é o caso de Vitório (onze anos), um menino muito ativo e popular em sua turma de sexto ano. De acordo com uma de suas professoras, seu problema mais imediato referia-se à indisciplina, entendida, nesse caso, como enfrentamento e propensão a desorganizar a sala rapidamente. Na sala dos docentes, comentava-se que Vitório era “preguiçoso e indisciplinado e enfrentava os professores”. Era, assim, um mau aluno, ao contrário de seu irmão mais velho que “passou no vestibular”, segundo os educadores. A “falta de Ritalina®” constituía, na visão da diretora escolar, a causa de sua reprovação naquele ano.

Em seu prontuário escolar constava um formulário de solicitação de encaminhamento preenchido por um professor não identificado. As reclamações que subsidiavam a demanda concerniam à falta de concentração, indisciplina, dificuldade de aprendizagem (embora ele tenha resolvido rapidamente um desafio de lógica oferecido por uma professora durante meus trabalhos de campo) e enfrentamento. Esses são alguns dos sintomas de dois tipos correlatos de condições psiquiátricas (comorbidades): o TDAH e os transtornos disruptivos de conduta. Este grupo de condições caracteriza-se pela manifestação de problemas de autocontrole emocional e comportamental, com maior prevalência em meninos. Os quadros clínicos que o compõem são o Transtorno Opositor Desafiador, o Transtorno Explosivo Intermitente e o Transtorno de Conduta. O primeiro tem por sintomas o humor irritável, a raiva, o comportamento desafiador e argumentativo e o revanchismo, enquanto o segundo caracteriza-se pela manifestação de impulsos agressivos. O terceiro se expressa por meio da agressão a pessoas e animais, da destruição e roubo de propriedades privadas e de sérias violações das leis.

O fato de que esses transtornos — sobretudo os dois primeiros — definem-se como comorbidades do TDAH significa que se deslocam o enfrentamento (desobediência), a indisciplina (mau comportamento), a hiperatividade (manifestações de inquietude) e a aprendizagem (processo de assimilação de conteúdos escolares) do domínio pedagógico (crise escolar e de autoridade do professor) para alocá-los no campo dos conhecimentos técnico- científicos classificatórios (transtornos mentais). Assim, a psicopedagogia (“Quantas aulas de psicopedagogia você teve para trabalhar isso?”) e as neurociências, entre outros saberes (incluindo aquele do pesquisador chamado pelo professor a opinar sobre sua aula), entram em cena como conhecimentos técnicos e como práticas capazes de responder externamente aos novos dilemas da educação, sobretudo à dificuldade do docente de manter a ordem disciplinar, de estabelecer diálogo com os alunos e, assim, de possibilitar à socialização adequada das crianças.