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CAPÍTULO 3 – SUJEITOS SOCIAIS E POLÍTICOS DOS MOVIMENTOS DE

3.1 O que há de novo sob o sol?

3.1.2 Crise, transição e democracia na perspectiva do trabalho

Consideramos as análises acima como importantes arcabouços político- epistemológicas para discernir “o que poderia ter sido, mas não foi”, em meio à concreticidade histórica dos fatos tal qual ocorreram no período citado. Enfim, em resumo: nem situação

revolucionária, nem crise orgânica e – em última instância – nem se tratava da iminência de uma revolução. Mas o fato mesmo de recorrermos aos referenciais supracitados, deve dar a

medida da crise “de hegemonia” vivida durante o período pré-transicional. “É discutível se nos últimos anos do autoritarismo a tensão vivida chegou, ou não, a configurar-se em conflito orgânico entre estrutura e superestrutura, muito embora o descolamento entre governantes e governados tenha sido momentaneamente explícito. Uma coisa é certa: a classe burguesa, com a ‘abertura gradual’, do ‘governo transitório’, foi hábil o suficiente para reorganizar o bloco histórico, mudando apenas algumas regras do jogo e os atores políticos para continuar no poder” (Peruzzo, 1998). Contudo, a revolta social das classes trabalhadoras no Brasil, entre o final dos anos 70 e início dos 80, foi despertada pela super-exploração capitalista106, expressão própria do capitalismo dependente-periférico que o imperialismo contemporâneo trataria de generalizar107

106

A menção ao termo super-exploração, corrente nos movimentos sociais e partidos de esquerda no Brasil, refere- se a uma condição operária dos países de capitalismo periférico e dependente generalizada pelo estágio imperialista da Ordem do Capital, merecendo atenção no que se refere à reflexão e à problematização sobre a centralidade e o protagonismo das lutas sindicais desenvolvidas pelos trabalhadores brasileiros durante os anos 80. A onda grevista e suas diversas singularidades – parciais ou gerais, defensivas ou ofensivas, mais ou menos politizadas – centraram-se contra a super-exploração do trabalho, submetido este à degradação salarial constante, à intensividade taylor- fordista do trabalho / produção fabril e pelo sistemático despotismo do chão-de-fábrica e à ditadura do grande

capital (Antunes, 1992). A super-exploração expressa a intensividade quotidiana e extenuante do trabalho, o

incremento do processo produtivo às expensas daqueles que geram valor e o prolongamento das horas de trabalho não-pagas que – ao fim e ao cabo – são a síntese multideterminada das formas relativa e absoluta de extração de sobretrabalho social geradas historicamente na formação econômico-social brasileira. “Das greves pebliscitárias do ABC paulista em 1979-80 ao confronto de Volta Redonda em 1988; da greve geral dos bancários em 1985 à greve geral nacional em março de 1989, todas tiveram como motivação primeira a reposição salarial, a luta contra a subtração e a degradação dos salários ou, no caso das greves gerais, dos decretos que arrochavam ainda mais os salários” (Antunes, idem). O limite estrutural da ação sindical, sabe-se desde Marx, encontra-se em que – por mais radicalizada que seja – se encerra na luta contra os efeitos, mas não contra as causas do sistema de salários. De qualquer forma, na concretude das formações econômico-sociais periférico-dependentes submetidas pelo imperialismo moderno, a essencialidade do ativismo sindical insta o movimento operário a obstar o processo de

arrocho salarial (forma pela qual se enunciava o espólio brutal e palavra-de-ordem articulada contra a opressão

político-econômica nos anos 80) – em defesa da reprodução de sua própria existência enquanto ser-que-vive-do-

trabalho – dotando uma centralidade essencial à ação grevista de cunho – e ainda que radicalizada em sua

metodologia combativa –, prioritariamente defensiva.

107 Neste trabalho pode-se dizer que objetivamos responder a pelo menos três desafios propostos pelo marxismo

contemporâneo em suas formulações político-epistemológicas, cujas premissas exponenciais podem ser buscadas em, dentre outras, obras de Borón (2000): (i) transcender o tecnocratismo neoliberal e o niilismo pós-modernista através do método e da práxis propostos pelo arsenal teórico-político marxista no sentido de compreender, transformar e superar dialeticamente a configuração histórico-contemporânea do Capital; (ii) reabilitar e desenvolver a teoria Leniniana sobre as múltiplas dimensões econômicas, políticas e militares que compõe o fenômeno do

imperialismo moderno, como a mundialização capitalista e a supremacia do capital financeiro; e (iii) considerar as contradições estruturais presentes nas democracias burguesas da América Latina e suas especificidades concretas

nas útimas três décadas, assim como pela opressão político-ditatorial sofrida sob o regime militar – relação social de dominação classista à qual correspondia determinada forma histórica de

acumulação capitalista – e gerou, já se sabe, uma ascensão inaudita das lutas sociais e uma

escalada grevista que iria durar pelo menos uma década a mais. Mediante tal processo histórico ocorreu a reorganização sindical e política dos trabalhadores brasileiros, a qual resultou na criação do PT, em 1980, e da CUT, em 1983 – seguidas pela fundação do MST –, expressões superestruturais e organizativas do acúmulo de consciência de classe construído nas já massivas lutas sociais diretas que vinham se desenvolvendo, na cidade e no campo.

Ao aludirmos à relação que se estabelece entre os movimentos sociais populares em ascensão durante as décadas de 1970 e 1980, envolvidos em diversas lutas sociais que questionam e negam os estreitos limites impostos pela “institucionalidade política” aos trabalhadores e à imensa maioria da população explorada e socialmente oprimida, imposição efetuada através dos aparelhos do Estado capitalista brasileiro e pela “farsa da Nova República” (como a consideravam, a seu tempo, os movimentos sociais de assalariados operários, setores populares e intelectuais críticos – como Florestan, 1986 – que deram origem ao movimento pró- PT e à CUT) – o que remete à organização de movimentos reivindicativos de massas (contra o custo de vida, o desemprego massivo, etc.) – “movimentos de urgência, pelo fato de serem movimentos sociais que lutam por condições mínimas e urgentes para assegurar a simples sobrevivência física de seus membros” (Boito Jr., 2002, grifos) – e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, a experiência acumulada em núcleos de base de operários e trabalhadores urbanos, as ocupações de terras e manifestações protagonizadas por trabalhadores rurais e camponeses junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), o novo sindicalismo combativo do operariado brasileiro, as mobilizações levadas a cabo pelo movimento estudantil secundarista e universitário através de suas entidades representativas nacionais e estaduais (UBES, UNE, UEEs, etc.)... –, estamo-nos referindo ao início de um ciclo histórico de curta duração, de aproximadamente vinte e cinco anos, que compreende tanto o ascenso das massas trabalhadoras do qual tratamos, quanto um posterior refluxo desta correlação de forças e lutas sociais, relacionada principalmente à ofensiva burguesa representada pela hegemonia neoliberal, a partir do final dos anos 80 e sobretudo durante os 90, a qual se apresenta até hoje.

Assim, neste contexto, o PT representava uma alternativa operária-popular de ruptura e crítica à institucionalidade burguesa e ao sistema político-econômico vigente – ainda

em relação aos centros nervosos de acumulação capitalista do sistema mundial inter-Estados. De forma

esquemática, diríamos que este programa investigativo encerra aspectos de reorganização do que poder-se-ia chamar “marxismo à defensiva”. Em formulação mais totalizante e articulada, tratar-se-ia de reabilitar a unidade dialética

entre teoria marxista e prática revolucionária, considerando-se as mediações necessárias, no sentido crítico

que com todas as vacilações e contradições internas apresentadas desde sua gênese –, o “partido sem patrões” contava em suas trincheiras com amplos setores do movimento de massas, os quais viriam a formar o MST e a CUT, movimentos sociais populares, intelectuais social- democratas e socialistas, trabalhadores da cidade e do campo, Pastorais Sociais da Igreja Católica e diversas correntes / tendências da esquerda marxista brasileira. Em seu programa fundacional – em muito influenciado pelas concepções defendidas pelos setores que

reivindicavam a estratégia revolucionária – defendia a tese marxista de que “a emancipação

dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” e se organizou em torno a uma ampla crítica às alianças políticas da “oposição democrática” com a burguesia brasileira, ao sindicalismo oficial amarelo / “pelego” e à burocratização dos partidos comunistas do Brasil. O ascenso de massas acima descrito atinge seu cume na onda de greves operárias dos metalúrgicos do ABCD e capital paulistas, onde se dá – em 78 e 79 – a gestação e desenvolvimento de um Movimento pela Construção de um Partido dos Trabalhadores, do qual o sindicalista “Lula”, transforma-se em expressão fundamental.

O discurso que se construiu hegemonicamente sobre a transição política

conservadora – ou “transação”, como ironizava Florestan Fernandes à época108 – e sobre a oposição à ditadura militar, contudo, partiu de uma vitória de setores liberais-burgueses concentrados no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), do qual também participaram (legitimando-o) organizações políticas de esquerda tais como o PCB, o PCdoB, o MR-8 e parcelas da intelectualidade brasileira que apoiaram a Nova República na construção social de sentido sobre suas diversas dimensões. Por outro lado, o movimento operário-popular e correntes de esquerda situadas e referenciadas politicamente através do Partido dos Trabalhadores (PT) negaram-se a legitimar a institucionalização política através do Colégio Eleitoral, taxados de “divisionistas e sectários” pelos setores que pactaram a “transição lenta, segura e gradual” com o antigo regime (que depois originaram o PMDB, de Sarney, e o PSDB, de FHC). O sentido social que se constrói sobre o processo de oposição à ditadura militar – nestes termos – é o que fundamenta as bases, já desde os anos 70, para que a hegemonia do projeto histórico neoliberal seja possível na década de 1990 na formação social brasileira, configurando e determinando o processo da transição política conservadora através da elaboração das principais tendências estruturais que a caracterizam enquanto fenômeno histórico-social. A transição política conservadora que transformou o regime militar – de 1964

108 Para melhor compreender os processos através dos quais determinada visão-social-de-mundo configurou-se

como forma alternativa historicamente hegemônica sobre a transição política conservadora e a oposição / resistência política e ideológica à ditadura civil-militar, recomendamos vigorosamente a leitura de Silva (1995 e 2003), que os analisa com riqueza de mediações histórico-concretas, rigor teórico e amplo arcabouço intelectual.

a 1985 – numa democracia capitalista-dependente – de 85 até os dias atuais –, segundo Silva, “deixou na sociedade brasileira uma enorme contradição entre os mecanismos institucionais de representação política e a contínua e crescente miséria social, agravada ainda mais através das políticas neoliberais da última década”. O processo de “redemocratização”, como o chamavam à época intelectuais como Francisco Weffort e Fernando Henrique Cardoso – ex-Ministro da Cultura e ex-presidente da república, respectivamente – foi “eminentemente institucional e voltado para a disputa eleitoral” (Silva, 2000). Institucionalidade esta que, como diz Caroni Filho (2002), “surgiu de uma transição negociada com o regime ditatorial que se auto- reformava; não houve ruptura efetiva que consolidasse uma autêntica ordenação democrática”.