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CAPÍTULO 1 – DO COLAPSO DA ORDEM DE BRETTON WOODS AOS PROGRAMAS

1.1 Neoliberalismo, Crise Estrutural e Consenso de Washington:

A partir de então se evidencia de forma mais acabada – ainda que em termos absolutamente gerais – a expressão da totalidade concreta e multideterminada, histórica e

estruturalmente, do capitalismo contemporâneo em crise que conhecemos, genericamente, por neoliberalismo. A crise compreende aspectos estruturais mesmos do sistema de produção material e reprodução ideológica sociometabolizante da Ordem do Capital, relacionados às suas

autocontradições mais profundas27. Em Marx pode-se observar que existe uma implicação intrínseca à dinâmica do modo de produção capitalista que se traduz como “tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas”, a qual se realiza “independentemente das condições sociais nas quais a produção capitalista se efetua” (Marx citado por Silva, 2001). Ou seja, o desenvolvimento absoluto das forças produtivas nada mais é do que a maximização

extrema dos lucros, obtida com – desde o ponto de vista da lógica imanente da Ordem do Capital – a máxima redução dos “custos” de produção, ou seja, explorando cada vez mais

27 O debate sobre a crise estrutural do capital – competentemente problematizada por Antunes (2002), Mészáros

(2002), Brenner (1999) e Chesnais (1996) – traz à tona uma contradição fundamental do modo de produção

dominante, relacionada à composição orgânica do capital e, notoriamente, à lei da queda tendencial da taxa de lucro. Compreendida – a crise – a partir de abordagens diversas mantém-se, porém, o marco referencial de uma

ruptura ocorrida com as formas de acumulação desenvolvidas anteriormente à década de 1970, correspondente à exaustão do dito consenso keynesiano, que esgota sua possibilidade histórica de desenvolvimento das forças produtivas no sentido da expansão progressiva do processo civilizatório, de forma estrutural e numa abrangência

sistêmica, perspectivas estas que se aproximam diretamente da formulação de Karl Marx, no Livro III d’O Capital,

sobre uma crise secular intrínseca à lógica do capital e – de forma mediatizada, em torno aos seus desdobramentos e incidência teórico-política sobre as lutas de classes – à subseqüente disjuntiva histórica implicitamente anunciada pelo mesmo Marx e explicitamente enunciada por Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. Trata-se de compreender as tendências inerentes a um modo de produção determinado num estágio concreto de seu desenvolvimento contraditório, em suas dimensões lógicas e históricas. “Como, por um lado, o seu dinamismo se encontra diretamente associado à taxa de lucro derivada de sua aplicação produtiva e como, por outro, esse benefício depende da possibilidade de extrair a maior fatia possível do valor criado pelo trabalho; quanto menor é a proporção do mesmo no processo de produção (dominado cada vez mais pela importância do capital constante), maior é o grau de exploração do trabalhador necessário para obter um aumento no lucro para uma dada quantidade de capital” (Coggiola, 1998). Para além dos desdobramentos aqui contidos, remetemos o/a leitor/a interessado/a para uma interessante coletânea sobre as tendências e crises do capitalismo contemporâneo, produzida a partir do Seminário de Estudos Marxistas na Maison des Sciences de l’Homme, em Paris, a partir de 1998. A edição brasileira – promovida pelo Cemarx-UNICAMP e pela Xamã Editora – traz colaborações de François Chesnais, Immanuel Wallerstein, Michel Husson, Claude Serfati, Catherine Samary, Jean Magniadas, Gérard Duménil e Dominique Lévy sob o provocativo título de Uma nova fase do capitalismo? (Chesnais, 2003). Já sobre os “nexos profundos” entre capital e crise n’O Capital, em sua dimensão lógico-dialética, recomendamos a detida análise de Grespan em

absolutamente o sobretrabalho social daqueles e daquelas que produzem valor e reproduzem as condições materiais de existência concreta do gênero humano, qual seja, o proletariado moderno ou, conforme a noção ampliada de Antunes (2002a), a classe-que-vive-do-próprio- trabalho. Os movimentos de superfície – mormente apresentados como problemas de taxas de

juros, crise fiscal, “bolhas financeiras” etc. pelo journalisme de marché (Sangermano Valejo e Della Santa Barros, 2002) – desta maneira, são apenas mediações para compreender as determinações fundamentais da produção (e reprodução) capitalista. De forma sumária, e ainda bastante inicial, parece-nos fundamental destacar que a crise tem sua gênese no modo de

produção mesmo, em-si, e não na epiderme fenomênica de sua totalidade social. Assim, quais

elementos e particularidades compõem o neoliberalismo – em sua historicidade concreta – ao longo dos anos em que se haveria conformado?

A expressão internacional do neoliberalismo pode ser confirmada – nos países de capital periférico – pelo aumento progressivo da dependência dos países latino-americanos ao FMI e aos EUA, devido a um gigantesco aumento e crise da dívida externa, à desnacionalização e privatização do patrimônio público e à abertura ampla e irrestrita do mercado para as empresas do grande capital internacional. As políticas neoliberais e os ajustes estruturais implementados pelos governos da América Latina durante as últimas décadas – em especial 1980 e 1990, até os dias de hoje – significaram um duro golpe para a classe operária e o conjunto dos trabalhadores de seus respectivos países. Investimentos em áreas sociais como saúde, educação, previdência e infra-estrutura, foram drasticamente reduzidos – sucateando os sistemas públicos de assistência social e piorando em muito as já precárias condições de vida da maioria da população. Ainda, a desregulamentação das relações de trabalho e dos direitos sociais – conquistas históricas do

movimento operário – elevaram os já exorbitantes índices de desemprego estrutural e

radicalizaram o quadro de contradições sociais e miséria absoluta na América Latina combatendo, de forma sistemática e generalizada, os trabalhadores e o movimento sindical. “Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem- estar, e a restauração da taxa ‘natural’ de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos” (Anderson, 1995).

A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e desencadearam

processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa crise generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. (ANDERSON, idem)

O estabelecimento do neoliberalismo político foi ditado desde o Consenso de

Washington, enquanto projeto histórico-político sob o comando do grande capital financeiro internacional, consolidando-se na América Latina – e no Brasil, em específico – a partir de um bloco histórico conservador formado majoritariamente pela burguesia e setores intelectuais, técnicos e administrativos das camadas médias organicamente relacionadas ao Estado brasileiro, a centros de pesquisa, às empresas e, ao fim e ao cabo, às classes dominantes no país, atreladas que estão, visceralmente, ao imperialismo norte-americano. Consideramos

também a existência de determinado “impacto popular” da hegemonia neoliberal, como se verá a seguir, precariamente difundido – mediante artifícios complexos de alusão/ilusão perante as classes dominadas e em função da crise política, ideológica e organizativa da esquerda

revolucionária – também entre parte dos trabalhadores urbanos, direta ou indiretamente

envolvidos na produção de mais-valor (Boito, 2000 e Trotsky, s/d.a).

O famigerado Consenso de Washington, celebrado em novembro de 1989, trata-se de uma reunião na capital federal estadunidense – convocada pelo Institute for International

Economics sob a convocatória temática de Latin American Adjustment: How Much has Happened? (IIE, Washington D.C., 1989) – da qual participaram funcionários de alto escalão do

governo estadunidense, representantes de organismos multilaterais originários da Ordem de

Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial, além de economistas especializados na

América Latina. Tratava-se de avaliar e decidir que políticas econômicas seriam aplicadas –

sugeridas ou impostas – na região. “A mera enumeração dos dez pontos contidos no Consenso

de Washington [...] é suficiente para demonstrar que ele forneceu a base ideológica e programática do governo FHC e, em geral, de todos os governos que se alinharam aos Estados Unidos ao longo dos anos 90” (Arbex, 2003). O relatório integra formulações, antes esparsas e não-sistematizadas, oriundas de diversas fontes, agências e organismos multilaterais – principalmente os supracitados – que haviam orientado os ajustes estruturais durante os anos 80 em diversos países da América Latina. “Embora com formato acadêmico e sem caráter deliberativo”, tal consenso expressa de maneira inequívoca projeções concretas para a produção normativa e contra-reformas institucionais – e, portanto, jurídico-políticas – próprias da

hegemonia neoliberal, documentadas de forma cabal pelo que se tornou conhecido como Decálogo de Washington (Batista, 2001).

Segue uma sinopse – com o objetivo de melhor situar-nos em meio a este movimento histórico – do que se tornou a manifestação político-programática mais notória dos

programas de ajuste estrutural na América Latina, resultante e síntese formulada em

Washington D.C.: (i) disciplina fiscal através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação, eliminando déficit público; (ii) corte radical dos subsídios públicos e “focalização” dos gastos estatais em educação, saúde e infra-estrutura social; (iii) reforma tributária que amplie a base social contribuinte sobre a qual incide a carga tributária [taxando-se, portanto, os contingentes mais pobres], com maior peso nos impostos indiretos e menor, progressivamente, nos impostos diretos; (iv) elevação das taxas de juros e liberalização financeira, com o fim das restrições que impeçam instituições financeiras internacionais de atuar em desigualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor [para atrair “investimentos” do capital externo]; (v) taxa de câmbio competitiva com a desvalorização das moedas nacionais; (vi) liberalização do comércio exterior, com redução de alíquotas de importação, eliminação de tarifas alfandegárias e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização econômica; (vii) eliminação de restrições ao capital externo, permitindo o investimento externo direto [IED, em benefício das

multinacionais]; (viii) privatização, venda e desnacionalização de empresas estatais; (ix)

desregulação/desregulamentação das economia nacionais, com redução / abolição da legislação de controle público do processos econômicos e das relações de trabalho; e, finalmente, (x) garantias ao direito de propriedade intelectual [leis de patentes, garantia do controle privado transnacional do desenvolvimento tecnológico-industrial etc.] (Williamson citado por Arbex, idem, comentários nossos). Como ficará cada vez mais evidente, não há nada de “natural” ou “espontâneo” – já seja o Espírito Absoluto de Hegel, a Mão Invisível de Smith ou o Fim da

História de Fukoyama – a justificar as formas de existência, históricas e concretas, assumidas

pelo capitalismo em sua fase atual. Neste sentido, quais seriam seus eixos e momentos constitutivos mais importantes?