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CAPÍTULO 3 – SUJEITOS SOCIAIS E POLÍTICOS DOS MOVIMENTOS DE

3.1 O que há de novo sob o sol?

3.1.1 O prólogo da “rebeldia do trabalho”

De qualquer forma, estamos longe de nos encontrarmos sozinhos ao considerar o ciclo histórico pós-78 como um estágio diferenciado na história social e política do país. “... o tempo histórico foi acelerado, fragmentado, convulsionado e rompido, criando um país que dificilmente se reconheceria nas décadas precedentes, muito embora seja sua formação social

uma prioridade causal na sustentação da ordem, porque as classes estão constituídas por modos de produção, e não

o contrário” (Anderson, 1980). Compreendemos a relação dialética entre movimentos e classes sociais a partir

marcada por continuidades seculares. Tal aceleração temporal não foi apenas vivenciada nas grandes metrópoles, onde era de se esperar, mas também no meio rural, onde o lento tempo dos ciclos naturais, com suas estações, seus dias e suas noites, foi abalado pelo irromper da política com seu próprio ritmo” (Bianchi e Braga, 2003b). O que não poucos consideraram como a

rebeldia do trabalho (Antunes, 1992) é registrada sob diversos prismas – entre pesquisadores

críticos e militantes marxistas – no entorno da resistência ao regime militar: greves operárias, oposições sindicais e o novo sindicalismo combativo; levantamentos estudantis de secundaristas e universitários; intensificação da luta camponesa pela terra; recrudescimento das reivindicações de protesto das massas urbanas por melhores condições de vida; multitudinárias campanhas políticas em prol da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e das “Diretas-Já”; movimento pela

construção de um partido dos trabalhadores assim como pela formação de uma central sindical de luta e de classe. No interior deste amplo quadro de comoções sociais e deslocamentos

políticos de massas construíram-se mediações sociais, sindicais e políticas das classes trabalhadoras – como o PT, a CUT e o MST – e se fortaleceram entidades representativas dos estudantes, tais como a UNE, a UBES e as UEEs. Como compreender este processo no qual e quando, segundo Sader (1990), “novos personagens entraram em cena”? “Quando amplos setores sociais manifestam sua contraditoriedade, evidenciam interesses e necessidades não satisfeitos (...) fica claro que estão questionando o que está estabelecido e apontando em outras direções. Porém, isto pode ser de ordem apenas conjuntural, sem negação da estrutura capitalista. É dentro deste campo complexo, formado por elementos superestruturais e estruturais da sociedade, que ‘novos’ personagens – os movimentos sociais populares – entram em cena. São vários os protagonistas da história e múltiplas as forças forjadoras de mudanças que se complementam. No caso brasileiro, a crise, desde a fase de decadência do regime militar, é concreta, mas complexa e contraditória. Em geral, adquire formatos de problemas econômicos, políticos, sociais e morais” (Peruzzo, 1998).

Os antagonismos que dividem qualquer sociedade contemporânea têm como refração, portanto, uma luta de idéias pela disputa da consciência. O combate político pode favorecer ou obstaculizar uma melhor compreensão de quais são os interesses de quem trabalha, e de quem são seus inimigos. A consciência de classe é um processo vivo que oscila e flutua, avança e retrocede. Na visão de mundo que as classes populares vão construindo em cada país, em cada período histórico, de quais são seus desafios e perspectivas políticas, convivem elementos falsos e verdadeiros, estratos contraditórios que se articulam em sucessivas sínteses. A esfera dos humores ou mentalidades coletivas e dos sentimentos de classe é sempre variável. (ARCARY, 2004a)

A caracterização da crise aberta concomitantemente à “auto-reforma” (“lenta, segura e gradual”) do regime militar e à estagnação política e econômica do chamado “milagre

brasileiro” remete a polêmicas teórico-práticas no interior das esquerdas políticas e acadêmicas no Brasil sobre, especialmente, a profundidade e o caráter da mesma. Vejamos pelo menos três pontos de partida fulcrais – em Marx, Lenin e Gramsci –, para pensar estas diferentes caracterizações, para além de sua incidência mais imediata nas práticas políticas de antanho, do período “pré-transição”. Gramsci nos traz uma apreciação interessante sobre a coincidência temporal entre crises econômicas agudas e crises políticas “de hegemonia”, que o levou à noção de crise orgânica – qual seja – “uma crise que afeta o conjunto das relações sociais e é a condensação das contradições inerentes à estrutura social”, eclodindo mediante a coincidência entre crise de acumulação e o “acirramento dos choques entre as classes e, no interior delas próprias, entre suas frações” (Bianchi, 2002a). Para Lenin, por sua vez, sintomas como “(i) a impossibilidade para as classes dominantes, para manterem imutável sua dominação; tal ou qual crise ‘das alturas’, uma crise na política das classes dominantes que abre uma brecha pela qual irrompem o descontentamento e a indignação das classes oprimidas [...], (ii) um agravamento, fora do comum, da miséria e do sofrimento das classes oprimidas [...], (iii) uma intensificação considerável, devido a estas causas, da atividade das massas, que em tempos de ‘paz’ se deixam espoliar tranqüilamente, mas que em épocas turbulentas são empurradas, tanto pela situação de crise quanto pelos próprios ‘de cima’, a uma ação histórica independente” (Lenin, s/d) configurariam as condições objetivas – independentes da vontade dos distintos grupos e partidos – necessárias ao estopim de um processo social revolucionário de massas. Mais além da obtenção da consciência da impossibilidade de viver como antes e da necessidade de transformações pelas classes subalternas, contudo e ainda segundo Lenin, é preciso que aos dominantes já não seja possível manter, sustentar e legitimar o espólio e a opressão para que se abra uma situação revolucionária; a qual ocorreria, em poucas palavras, somente “quando os ‘de baixo’ não querem o que é velho e os ‘de cima’ não podem como dantes” (Lenin, idem). Ambas as argüições assentam-se sobre determinada concepção do processo histórico, que pode ser verificada abaixo:

Do mesmo modo que não se julga um indivíduo pela idéia que faz de si mesmo, não se pode julgar uma época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. Ao contrário, é preciso explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social jamais desaparece sem que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que ela tem a capacidade de conter; jamais as relações de produção novas e superiores substituem as antigas, antes de as condições de existência material de estas relações terem-se esgotados no próprio seio da velha sociedade. Esta a razão porque a humanidade não propõe senão os problemas que pode resolver, pois, ao se fazer uma análise mais de perto, verifica-se sempre, que o próprio problema surgiu exatamente onde já existiam condições materiais para a sua resolução ou, pelo menos, estavam em vias de existir. (MARX, 1978a)