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1.3. O sexo, a morte e o sagrado

1.3.8. Cristianismo: vida santa, sexo pecado

As religiões monoteístas ou religiões do livro – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – estabeleceram uma separação moral entre o bem e o mal. O sagrado antigo não determinava uma cisão desta natureza, integrando o puro e o impuro. A

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moralidade judaico-cristã afastou o bem do mal, suspendendo a sua continuidade. O bem abrange o mundo da ordem: o cumprimento das regras, a obediência, o trabalho, a família, a caridade; o mal contém a desordem: a falta, a desobediência, a violência, a cedência à tentação, o pecado. Assim, quebra-se a unidade do sagrado:

"No estádio pagão da religião, a transgressão fundava o sagrado, cujos aspectos impuros não eram menos sagrados que os aspectos contrários: o conjunto da esfera sagrada compunha-se do puro e do impuro. O cristianismo rejeitou a impureza. Rejeitou a culpabilidade sem a qual o sagrado era inconcebível, uma vez que só a violação da proibição lhe dava acesso." (Bataille, 1988 [1957]: 105).

Deste modo, o mundo ortodoxo (o profano) foi santificado, divinizado, e o heterodoxo (o sagrado) foi em parte diabolizado: "o sagrado impuro foi, por conseguinte, lançado para o mundo profano" (Bataille, 1988 [1957]: 105). A Igreja pediu a todos os fiéis que se abstivessem de fazer o mal, de o dizer e mesmo de o pensar. E que, tendo cedido à tentação – porque todos são humanos e pecadores –, pedissem perdão das suas culpas, fossem elas "pensamentos, palavras, atos ou omissões".

Nesta separação entre o bem e o mal, o sexo ficou do lado do mal, tendo até um pecado mortal associado: o da luxúria. "É evidente que tratamento do erotismo em nada é exterior ao domínio da religião, mas precisamente o cristianismo, opondo-se ao erotismo, condenou a maior parte das religiões. Nesse sentido, a religião cristã é talvez a menos religiosa das religiões" (Bataille, 1988 [1957]: 28). Em determinados períodos da história do cristianismo – e ainda hoje, em certos movimentos mais fundamentalistas – o desejo, o lazer, o sexo, tudo o que se opõe ao mundo tranquilo do bem e da ordem é considerado maldito. O prazer sexual torna-se assim condenável fora do casamento e inconcebível no seio da castidade conjugal:

"No pensamento eclesial, podem ser retidas duas ideias básicas no que respeita a sexo: 1. A Igreja admite a cópula humana, mas com o único objectivo de procriar, e, está bem de ver, unicamente no quadro do casamento. Fora destes limites, o amor não é lícito; 2. A Igreja rejeita toda a procura do prazer. Mesmo o acto carnal realizado entre marido e mulher, unicamente para satisfazer um desejo, é, em certas épocas, considerado como pecado mortal. O amor só deve ser concebido na dor. O puro prazer está excluído." (Ruffié, 1987: 163).

Ao contrário de outras religiões, o cristianismo excluiu o sexo do sagrado (a não ser quando enquadrado pelo sacramento do matrimónio). Talvez como resultado desta dessacralização se tenha tornado tão estranha, para nós, a associação entre sexo e

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sagrado. Thomas Moore estabelece diferentes evidências do caráter sagrado do sexo, nomeadamente:

– a integração das dimensões do corpo e do espírito, através da experiência de êxtase (místico ou orgástico) como revelação de transcendência:

"...uma separação histórica e psicológica do corpo e espírito, da transcendência e sensualidade, e da virtude e desejo é uma neurose." (Moore, 1999: 31).

– a qualidade intrínseca do mistério (referido sobretudo como tabu, quando relativo ao sexo):

"O tabu é um aspecto da moralidade da alma, uma profunda sensação de inibição, cercada por um halo de santidade, inexplicável e, contudo, indiscutível. (...) Com o tabu, a profanação, o prazer e o sexo estamos no campo da religião, e nenhuma interpretação psicológica ou sociológica será suficiente para descrever a sua intensidade e importância." (Moore, 1999: 237, 238).

– e o sentimento de profanação que o abuso sexual inevitavelmente nos provoca, e cuja libertação exige uma purificação profunda, somente possível através de um ritual:

"O horror sentido no estupro de todos os tipos e graus torna clara essa espiritualidade sensual. A violação não é apenas pessoal, (...) o estupro é um sacrilégio, uma ofensa à esfera espiritual envolvida em todos os aspectos da nossa sexualidade." (Moore, 1999: 197).

Mesmo a experiência sexual mutuamente consentida e desejada pode transmitir esta ideia de profanação:

"Naturalmente o sexo leva à perda de um tipo de inocência, e isso pode ser perturbador. (...) Sexo de mais pode acabar com o sentimento de pureza infantil que, para muitas pessoas, é uma parte preciosa da personalidade. Na terapia, deparei com homens e mulheres que desejariam ser virgens, não se haver casado tantas vezes ou não ter tido experiências sexuais com tantas pessoas diferentes. Essas pessoas achavam que devido aos excessos sexuais tinham perdido para sempre algo precioso." (Moore, 1999: 163).

A profanação não deve ser confundida com a transgressão. A transgressão só se opõe ao interdito na medida em que o reforça. A transgressão não põe em causa o profano nem o sagrado, de que é a essência. A profanação é, como a palavra indica, a introdução, no sagrado, de um elemento profano: "o princípio da profanação é o uso profano do sagrado" (Bataille, 1988 [1957]: 105). Trata-se de uma subversão das regras que põe em causa o sistema. A religião cristã, no entanto, identificou a profanação com a

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transgressão, sob a ideia de pecado. A transgressão deixou assim de ter enquadramento sagrado: "o domínio do sagrado reduziu-se ao do Deus do Bem, cujo limite é o limite da luz: nada mais resta no domínio do sagrado que seja maldito" (Bataille, 1988 [1957]: 107). Assim, "despojado do formalismo sagrado, o impuro estava condenado a tornar- se profano" (Bataille, 1988 [1957]: 106). A sexualidade converteu-se numa manifestação profana, admissível apenas para garantir a descendência, já que o ser humano não dispunha para tal, de alternativa assexuada (ao contrário de Deus, que concebeu o seu filho sem mácula, por virtude do Espírito Santo, preservando a virgindade de Maria).

No decorrer dos séculos, o celibato foi pedido aos ministros da fé, para que, libertando- se das paixões terrenas e das angústias familiares, pudessem dedicar-se exclusivamente ao louvor a Deus e à caridade aos irmãos, ou seja, ao amor espiritual a Deus e ao próximo. É no século XI que a castidade de padres e bispos é decretada pelo Papa Leão IX (Ruffié, 1987: 165), embora a sua absoluta observância tenha sido sempre duvidosa: "a concubinagem, confessa ou clandestina, persistiu durante muito tempo, tanto mais que alguns achavam desejável que o padre tivesse uma concubina, para não perverter as mulheres dos outros" (Ruffié, 1987: 165-166). Após a Reforma, a Igreja Protestante separa-se e deixa de obedecer a Roma. Entre outras novidades, o matrimónio do clero passa a ser permitido. Mas a Igreja da Reforma fica limitada à Europa do Norte. Os países latinos permanecem conservadores e leais a Roma.

Houve sempre na Igreja defensores mais radicais, para quem o mundo ideal seria um mundo sem sexo. Diz S. Paulo, na Carta aos Coríntios: "Aos solteiros e às viúvas digo que é bom para eles ficarem como eu. Mas, se não podem guardar continência, casem- se; pois é melhor casar-se do que ficar abrasado" (1 Cor 7, 8-9). No entanto, as virtudes da temperança são também um tema recorrente na Antiguidade Clássica (Foucault, 1994b: 108 e 1994c: 140-143), num tempo anterior ao estabelecimento do cristianismo. Dos dois mandamentos que normalizam os interditos universais – "Não matarás" e "Não cometerás adultério" – é o segundo que concentra as atenções da Igreja ao longo dos séculos. A guerra santa foi exaltada pelo cristianismo, embora hoje pareça injustificável. Pode parecer estranho que tirar a vida ao próximo (responsabilidade que é, antes de mais, divina) seja menos inquietante para o clero do que cair na tentação da luxúria. No entanto, ao manter sob controlo todos os pensamentos e atos sexuais, a Igreja conquista um domínio permanente e absoluto sobre os fiéis:

"Na realidade quotidiana, poucos homens ou mulheres terão, um dia ou outro, tido o desejo de cometer um homicídio ou um roubo. Mas todos ou quase todos terão sido

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solicitados por uma ou várias aventuras extraconjugais. Ao tomar as rédeas da sexualidade e traçando a esta limites estreitos, o cristianismo faz de qualquer homem um pecador, um pecador que fica à sua mercê, visto que só a Igreja possui, pelo sacramento da penitência, a chave da Redenção. E este método é tanto mais eficaz quanto é certo que o pecador, quase inelutavelmente, reincidirá no pecado." (Ruffié, 1987: 165).

O cristianismo (como outras religiões) terá, então, identificado o interdito com o bem e a transgressão com o mal. "Mas o Mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O Mal é exactamente o pecado" (Bataille, 1988 [1957]: 111). Talvez esta inversão, esta separação de domínios, esta confusão de conceitos tenha contribuído para a perda, quer do sentido do sagrado, quer da importância do cristianismo, na vivência e na consciência humana moderna.