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1.1. A sexualidade humana

1.1.5. Duplo padrão sexual

As esferas feminina e masculina estão, até hoje, cuidadosamente separadas: há cores diferentes para distinguir o sexo dos recém-nascidos e brinquedos para menino e para menina; as escolas são para ambos os sexos, mas no recreio os meninos e as meninas brincam separados a jogos diferentes; os interesses e os tempos livres dos jovens podem aproximar-se na adolescência, promovendo a formação de casais, mas, na idade adulta, ainda que todos tenham uma ocupação e contribuam financeiramente para a economia do lar, as tarefas domésticas continuam largamente entregues às mulheres, enquanto os homens tendem a ausentar-se, ainda que virtualmente, através da televisão ou da internet. Tradicionalmente, o espaço doméstico era do domínio feminino e o espaço público do domínio masculino. Na História da Vida Privada, Antoine Prost descreve bem esta situação:

"a partilha de papéis entre o homem e a mulher atribuía a esta última sobretudo o interior da família, reservando àquele o domínio exterior: as transacções importantes, a representação da família, a política. (...) Em muitos casos, de facto, ao entrar em casa o marido estava realmente em casa da sua mulher, aí reinava ela. Em tal espaço o homem não podia tomar iniciativas sem sujar, partir ou desarrumar." (Prost, 1991: 78).

O autor acrescenta ainda como só com ao aumento do tamanho das casas, os homens encontraram nelas um lugar: "escritório, arrecadação ou varanda, onde o homem pode sentir-se em casa, arrumar as suas ferramentas e fazer pequenos trabalhos" (Prost, 1991: 78). Paralelamente, as mulheres realizaram o movimento paralelo, ocupando o espaço público. Estas mudanças conduziram a alterações na vida pública e privada das famílias:

"Com mulheres com instrução semelhante, exercendo uma profissão ou capazes de o fazer; reivindicando igual direito de intervenção na vida pública; com casamentos devidos menos às apresentações de família do que aos encontros nos espaços de jovens

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ou nos bancos das faculdades, surgiram casais na acepção moderna do termo e, com o casal, uma redistribuição dos poderes na vida privada." (Prost, 1991: 78).

Apesar destas mudanças recentes, mulheres e homens continuam a ter experiências de vida e conhecimentos largamente divergentes. "Cada sexo é um continente negro para o outro" (Giddens, 1996: 97).

Um dos grandes equívocos da civilização ocidental, intimamente ligado ao exercício do poder de género, resulta da instituição do duplo padrão sexual. A história ocidental foi escrita por homens e estes definiram-se a si próprios como exclusivos detentores de desejo sexual, atribuindo às mulheres a total ausência de tal desejo. Ou, mais exatamente, as mulheres foram divididas em puras e impuras (Giddens, 1996: 77), sendo as puras desprovidas de desejo, e portanto virtuosas, castas e casáveis ou, se já casadas, fiéis ao seu esposo, e, quando mães, assexuadas; e as impuras promíscuas, incapazes de resistir aos seus desejos lascivos, sedutoras, frequentemente meretrizes ou mulheres vistas socialmente como pouco respeitáveis. Esta separação – o efeito senhora-prostituta (Saraiva, 2002: 105) – remonta já à Antiguidade Clássica. Michel Foucault cita a conhecida frase, atribuída a Demóstenes (s/d: 122 in Foucault, 1994b: 163): "Temos as cortesãs para o prazer; as concubinas para os cuidados de todos os dias; as esposas para ter uma descendência legítima e uma fiel guardiã do lar". Foucault (1994b: 169, 170) salienta, no entanto, que estas funções podem ser, em certa medida, sobreponíveis, ou seja, a questão não é que o prazer sexual conjugal seja impossível, mas que os filhos legítimos de um homem só poderão nascer de uma mulher que detenha o estatuto de esposa, no âmbito da instituição do casamento. Mais tarde, a moral cristã irá defender uma situação estritamente monogâmica para ambos os membros do casal e definir a procriação como o objetivo único da atividade sexual (Foucault, 1994b: 164). Antoine Prost (1991: 90) refere que "o ascetismo tradicional [católico] tolerava o acto sexual como uma concessão à fraqueza masculina e para a reprodução da espécie". Este duplo entendimento da sexualidade masculina e feminina causava uma situação altamente desigual, como refere o filósofo Gilles Lipovetsky:

"Se as sociedades democráticas assentam na ideia de igualdade civil, a moral sexual, essa, desenvolveu-se, até data recente, segundo uma lógica fundamentalmente não igualitária. Indulgência para com o homem que pode 'ir atrás de desvarios', frequentar o bordel, gozar amores passageiros; severidade para com as raparigas, nas quais a castidade é imperativa e a virgindade exigida no dia do casamento." (Lipovetsky, 1994: 46).

Na civilização humana, as linhagens definem as relações de parentesco e a transmissão de património, pelo que se torna essencial saber quem é filho de quem (Saraiva, 2002:

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108). Nas espécies com fertilização interna, como é o caso da espécie humana, e dos mamíferos em geral, não é possível aos machos ter absoluta certeza da paternidade da sua descendência, tanto mais que a ovulação é oculta nas mulheres, e o período fértil não é exibido através de sinais corporais e comportamentais inequívocos, como acontece, por exemplo, com os restantes primatas. Assim, em caso de infidelidade feminina, o macho corre o risco de investir numa descendência que não é sua. Existem várias formas de diminuir a incerteza que resulta desta paternidade obscurecida (ver, por exemplo, Platek e Shackelford, 2006 ou Buss e Schmitt, 1993), entre as quais se inclui o controlo da sexualidade feminina, que por vezes resulta em situações de violência contra as mulheres.

"As infidelidades são, normalmente, controladas. (...) Da mulher, na maior parte das sociedades, espera-se que seja fiel. Claro que o fenómeno do controlo social das infidelidades faz sentido do ponto de vista social e biológico: assegura a paz social e garante a paternidade ao macho. É a própria existência da infidelidade que é interessante" (Saraiva, 2002: 117).

Para os homens, o sexo era visto um anseio e uma necessidade, e a infidelidade uma falha aceitável; para as mulheres (as puras), o sexo não era mais do que um castigo e uma obrigação conjugal, cumprida com zelo por amor aos seus maridos, para diminuir o risco da infidelidade masculina e para satisfazer a ambição de se tornarem mães. A este propósito, diz Anthony Giddens:

"A sexualidade foi segregada ou privatizada como parte de processos nos quais a maternidade foi inventada e se tornou uma componente básica do domínio feminino. (...) Estes factos retrabalharam antiquíssimas divisões entre os sexos, particularmente a separação entre mulheres puras e impuras, mas foram recuperados num novo formato institucional. Quanto mais a sexualidade se separou da reprodução e se integrou no processo emergente do self, tanto mais este sistema institucional de repressão ficou sob tensão." (Giddens, 1996: 125).

Apesar desta tendência recente para um maior reconhecimento da liberdade sexual feminina, o controlo da sexualidade permanece mais apertado para as mulheres do que para os homens, no seio da família, do casal e da sociedade.