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1.1. A sexualidade humana

1.1.6. Sexo, género e poder

A sexualidade foi, até há poucas décadas, encarada sob um ponto de vista quase exclusivamente masculino: aí residia o modelo inquestionável. A sexualidade feminina era praticamente inexistente, pelo menos enquanto desejo sexual e possibilidade de

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prazer. Só as mulheres impuras poderiam ter acesso ao gozo sexual, decalcando o modelo masculino.

"A segregação da sexualidade ocorreu amplamente como resultado mais de repressão social do que psicológica, e envolveu acima de tudo duas coisas: o confinamento ou negação da resposta sexual feminina e a aceitação generalizada da sexualidade masculina como não problemática." [ênfase acrescentada] (Giddens, 1996: 125).

Perguntar-se-á como foi possível que os homens e, sobretudo, as mulheres, acreditassem e agissem segundo estes princípios, o que é tanto mais curioso quanto as mulheres, ao contrário da generalidade das fêmeas animais, se libertaram do cio e se tornaram, potencialmente, sexualmente disponíveis em permanência (Fisher, 1994: 204; Ruffié, 1987: 44) e são, além disso, capazes de obter clímaxes contínuos, ao contrário dos homens, cujos orgasmos são intervalados por períodos refratários mais ou menos longos (Fisher, 1994: 96, 199). Poderíamos dizer que se trata de "uma mentira mil vezes repetida", apontando algumas razões que foram cimentando a sua credibilidade:

– a instituição do sexo como lugar central da definição de poder de género no casal, associada à "sexualidade violenta do homem" (Alberoni, 2007: 49). A sexualidade masculina, muitas vezes emocionalmente distante e sem criar condições de intimidade, foi entendida como modelo único e não problemático (Giddens, 1996: 125), mesmo se insatisfatório para a mulher; a sexualidade feminina, de uma forma geral mais integrada no total da vida e mais exigente em termos de contexto e envolvimento emocional (López e Fuertes, 1999: 17), era considerada inferior;

– ignorância sexual e acesso diferenciado ao conhecimento sobre a sexualidade: embora o desconhecimento fosse comum a ambos os sexos, os homens chegavam normalmente ao casamento com experiências sexuais com mulheres "impuras", sexualmente disponíveis e emocionalmente distantes; as mulheres chegavam ao casamento como noivas virgens e, tanto quanto possível, desconhecedoras dos mistérios do sexo; no caso de as experiências sexuais com o marido não serem agradáveis, isso não só seria considerado normal, como faria diminuir a tentação de procurar outras experiências sexuais, situação que, em todo o caso, seria reprimida pelo dever de fidelidade conjugal, exigido particularmente às mulheres;

– medo de gravidezes repetidas e morte: a ausência de métodos contracetivos fiáveis, e o desconhecimento da fisiologia da reprodução, tornavam cada ato

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sexual um risco enorme em termos de gestação; a mortalidade associada ao aborto provocado e ao parto teve, até épocas recentes, valores muito elevados (Giddens, 1996: 20);

– temor do castigo divino: como é bom de ver, Deus é homem, e infinitamente mais misericordioso com a luxúria masculina do que com a feminina.

Assim, o sexo para as mulheres tornou-se uma espécie de sacrifício pelas graças do casamento e da maternidade, como era confirmado por Deus e pela experiência comum: como poderia ser de outra maneira?

"A sexualidade masculina não foi problemática nas circunstâncias sociais 'distintas e desiguais' até há pouco prevalecentes, mas a sua natureza foi ocultada por um conjunto de influências sociais que foram ou estão a ser minadas. São elas: a dominação dos homens na esfera pública; a vida dupla; a divisão, associada às mulheres, em puras (casáveis) e impuras (prostitutas, meretrizes, concubinas, feiticeiras); o entendimento de que a diferença sexual foi estabelecida por Deus, pela natureza ou pela biologia; a problematização das mulheres como opacas ou irracionais nos seus desejos e acções; a divisão sexual do trabalho." (Giddens, 1996: 77).

Esta castração sexual das mulheres foi de tal forma eficiente que a investigação a confirmou até períodos recentes, por exemplo indicando limiares de excitação mais baixos para os homens que para as mulheres. Atualmente, os resultados obtidos revelam limiares de excitação semelhantes para ambos os sexos (Saraiva, 2002: 96). Não excluindo a eventualidade de que as investigações atuais possam ser mais rigorosas e isentas, é possível que estas alterações decorram das transformações que a perceção da sexualidade feminina sofreu nas últimas décadas, entre as quais:

– esforço no sentido do reequilíbrio dos papéis de género (ou, dito de outra forma, revolução sexual): o acesso das mulheres ao mundo do trabalho assalariado, a autonomia financeira, a vida nas cidades e o abandono da agricultura de subsistência levou à saída das mulheres do espaço doméstico e à colonização do espaço público, permitindo uma menor subserviência da mulher ao homem, no casamento e no sexo. Além disso, o prazer sexual feminino passou a ser legítimo, desejável, e mesmo central numa relação amorosa. Um homem sexualmente violento ou indiferente corre o sério risco de perder a sua mulher, que consegue sustentar-se, obter o divórcio legal e ser socialmente respeitada; – aparecimento e generalização do uso de métodos contracetivos fiáveis (podendo a mulher responsabilizar-se por eles, inclusivamente com o desconhecimento ou a discordância do parceiro). Esta libertação da associação entre sexo e reprodução

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(juntamente com o surgimento do tempo livre e de ideais de lazer) permitiu a legitimação da associação entre sexo e prazer;

– aumento do conhecimento e das competências sexuais de ambos os sexos e curiosidade quanto à satisfação dos desejos do sexo oposto: a generalização da sexualidade pré-conjugal para ambos os sexos levou a que a iniciação sexual dos homens deixasse de ser entregue à prostituta experiente e a das mulheres deixasse de ser feita pelo marido na noite de núpcias. Ambos os sexos aprendem e ensinam mutuamente em namoros sucessivos e, quando decidem casar ou viver juntos, levam consigo um considerável capital de conhecimento sexual. O acesso à informação é também mais fácil e democrático: livros, filmes, centros de saúde, farmácias, internet, Organizações Não Governamentais (ONG) e lojas de produtos eróticos distribuem informação que, podendo não ser completa ou exata, é abundante e, em todo o caso, mais esclarecedora do que em épocas anteriores;

– dessacralização do sexo e secularização da vida: o esbatimento da associação entre sexo e pecado e a associação a valores positivos de saúde e bem-estar contribuíram para que o sexo prazeroso passasse de proibição a obrigação, pelo menos durante a vida fértil, uma vez que as crianças e os idosos continuam a ser vistos como anjos assexuados.

E eis que, no espaço de poucas décadas – pelo menos numa parte do mundo ocidental – Deus, a ciência e o senso comum mudaram de opinião. Podemos ainda acrescentar a estas alterações, a emergência da sociedade de consumo e de informação, e as virtudes de aprendizagem e adaptabilidade a novos contextos que a humanidade é capaz de desenvolver (e as mulheres, em particular, que foram as protagonistas da revolução sexual):

"Os homens são retardatários nas transições actualmente em curso – e têm-no sido em certa medida desde o século XVIII. Pelo menos na cultura ocidental, estamos no primeiro período em que os homens se descobrem a si próprios como homens, isto é, como possuindo uma problemática 'masculinidade'. Em tempos anteriores, eles assumiram que as suas actividades constituíam 'história', enquanto as mulheres existiam quase fora do tempo, fazendo o mesmo que sempre fizeram." (Giddens, 1996: 40).

Em Portugal, o fim da ditadura, a consequente abertura ao exterior e a importação de valores e comportamentos mais liberais concentraram estas mudanças no curto espaço de tempo de uma geração. A este propósito, ver, por exemplo, Barreto (2005).

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Apesar de a História ocidental ter sido problemática na sua relação com as práticas e os prazeres sexuais, convém recordar que existem outros lugares com uma moral mais normalizadora e com um exercício de poder mais castrador, sobretudo quanto à sexualidade feminina. "Em certas partes do mundo, as mulheres continuam a ser tratadas como objecto de posse dos homens e não são autorizadas a viver em liberdade" (Morris, 1998: 203, 204). A condenação à morte por adultério, como a prática da excisão ou mutilação genital feminina "que se destina a eliminar a infidelidade conjugal, reduzindo o potencial de prazer sexual" (Morris, 1998: 207) são, ainda hoje, dominantes em algumas sociedades. Entre estas, contam-se as sociedades tradicionais africanas e os aborígenes australianos (Pacheco, 1998: 196). O acesso da mulher ao pleno uso dos seus direitos sexuais e sociais não está de todo garantido. Mas, mesmo no Ocidente, as desigualdades de género continuam presentes, ainda que condenadas pelo discurso oficial. Este duplo padrão sexual não é um universal humano, mas floresceu na civilização europeia e foi capaz de subsistir durante muitos séculos.