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Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo

Para seguir na via proposta e, consequentemente, alargar o trabalho de analogia, não poderá deixar de se fazer uma aproximação aos movi- mentos e correntes estéticas que dominaram as artes plásticas na primeira metade do século XX. P e MMP, os textos autobiográficos tão claramente

embricados em profícuas relações com as artes plásticas e com os ecos do que, também no campo literário, se vinha pensando e produzindo em Portugal, em Inglaterra ou França nesse mesmo período, porventura con- sentirão ainda outras inquietantes propostas interpretativas.

Parece sustentável a ideia de que a escrita de Ruben A, embora a uma distância de mais de trinta anos, pode ser colocada numa relação de grande proximidade com alguns pressupostos ou manifestações identificadas habitualmente com os movimentos dadaísta e surrea- lista. Admite-se que ela ainda se reveja em correntes mais circunscri-

tas ao primeiro quartel do século, para a qual a crítica e a história de arte aceitaram os nomes de orfismo, ou ainda o movimento mais co-

nhecido por cubismo. Algumas das suas características permitem ob-

servar ainda, concomitantemente, afinidades com o grande movimento que se designa globalmente como expressionista que, por

sua vez, também se relacionou com todos os anteriores.

A escrita de RA não se confina a uma poderosa afinidade com as concepções de espiritual na arte, de Kandinsky, alguma relação

com o expressionismo alemão, o surrealismo ou as práticas do mo- vimento dada. Tal escrita afirma-se de modo determinado também

em sintonia com as ideias defendidas nos primeiros anos do século passado pelo poeta Guillaume Apollinaire a propósito da pintura cu- bista11e, em particular, da corrente que ele veio a designar em 1912 por “cubismo órfico”. Referia-se, em Les peintres cubistes12, o poeta de

Calligrammes, a uma arte que dispensava o reconhecimento de temas

para valorizar preferencialmente formas e cores capazes de comunicar emoções e sentidos. Desenvolvida tão precocemente por um autor

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11Sobre este tema, confronte-se Apollinaire, Les peintres cubistes: Méditations Esthé-

tiques, Paris Figuières, 1913; ed. ut, Paris, Hermann, 1965. Sobre o assunto, veja-

se também Chipp, H.B, Theories of Modern Art, University of California, 1968, ed.

ut. Teorias da Arte Moderna, Editora Martins Fontes, 1988, pp.218-222.

12Sobre o assunto veja-se Stangos, Nikos (org.), Concepts of Modern Art – from Fau-

fundamental como Apollinaire, que conviveu com todas as experiên- cias do modernismo europeu no primeiro quartel do século XX, esta reflexão estética em torno da identificação do cubismo e dos cami- nhos da abstracção merece ser relacionada com o campo da literatura.

A importante corrente que veio a designar-se como orfismo teve

como principais representantes, de acordo com o agrupamento pen- sado por Guillaume Apollinaire, Robert e Sónia Delaunay, Francis Pi- cabia, Fernand Léger e Marcel Duchamp. Apenas Robert Delaunay e Francis Picabia aceitam sem reservas a classificação, o que não obsta a que se retenha a importância do conjunto de pintores e a evidente sobreposição deste orfismo a outros ‘ismos’ que posteriormente se

fazem notar, tal como aconteceu com o dadaísmo ou o surrealismo.

A aproximação aqui proposta entre a pintura dos Delaunay, re- presentantes maiores do orfismo, e a escrita de Ruben A tem razões de vária ordem. Em primeiro lugar, deve-se a características marcan- tes da pintura de Robert e Sónia Delaunay, que se desenvolve na busca constante de formas e cores capazes de comunicarem sentidos e emo- ções (cubismo órfico), sem contudo perseguir deliberadamente a abs-

tração, como veio a fazer Mondrian, pouco depois. O recurso aos famosos “círculos órficos” para representar estruturas dinâmicas não naturalistas evidencia a sua crença na geração circular da luz como princípio de toda a criação. Precisamente porque adoptam um para- digma de filiação cubista, os quadros de Robert têm títulos como, por exemplo, Janelas simultâneas ou Sol, Lua. Simultâneos. Os vestidos

criados por Sónia são também chamados Simultanées.

Uma vez pensadas estas afinidades, é importante acentuar que não se esgotam no chamado cubismo órfico os pontos de contacto pa-

tentes entre a obra de RA e os movimentos de vanguarda dos primei- ros anos do século passado. Observe-se mais de perto o que se passa com o movimento dada, talvez o decisivo eixo de aproximação à ex- cêntrica obra de RA, que viu a luz do dia quase meio século depois da eclosão do grupo dadaísta.

Coincidindo com os anos da Primeira Guerra, mantendo a principal sede num país neutral, na cidade de Zurique, autores de várias nacionalidades, usando diferentes línguas (de que sobressaem o alemão e o francês), desenvolveram actividades artísticas de carac- terísticas rebeldes, quer em relação à política dos estados beligerantes, quer em relação aos mais consensuais valores estéticos e ao pensa- mento sobre a arte então mais aceite. As apresentações no Cabaret Voltaire (fundado por Hugo Ball na mesma cidade em 1916) e sobre-

tudo o Manifeste Dada de 1918 clarificaram essa rebeldia artística à

cabeça da qual se reconhece o romeno Tristan Tzara (1896-1964). O texto inaugural de Tzara, que inclui o primeiro Manifesto Dada (Manifeste de monsieur Antipyrine), é o poema dramático La Première aventure céleste de monsieur Antipyrine (1918)13. A experi-

mentação poética, no caso de Tzara, surge marcada por uma prática de desarticulação de linguagem que assenta em rupturas de sentido e de sintaxe, sugerindo que as palavras serão agrupadas ao sabor do acaso. Ao criar efeitos de surpresa e inesperadas associações, esta es- crita vai afirmando um dos propósitos essenciais da arte dadaísta que será o de dar prioridade à palavra sobre a ideia (Fauchereau, 2001:

247).“Nous extériorisons la facilité”, diz o Manifeste, “car l’art n’est pas sérieux, je vous assure”, insistindo na paradoxal afirmação do artista

que garante seriamente que a arte não é coisa séria. Tanto os textos produzidos como a conhecida dramaturgia que os acompanha nas apresentações públicas acentuam a vertente de uma certa clownerie

agressiva, uma ideia de facilidade e de algo de pouco sério de que se

reivindicaria a arte dada.

Mais tarde, dirá o mesmo Tzara, insistindo no primado do modelo da improvisação e dos jogos fonéticos para a criação de uma arte as- sente em novos pressupostos (em Dada manifeste de l’amour faible et de l’amour amer): “Le grand secret est là. La pensée se fait dans la bouche.”

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13O texto encontra-se reproduzido em Oeuvres complètes de Tristan Tzara, tomo I, Flammarion, 1975.

Tzara, depois de se instalar em Paris, no início do ano de 1920, quando convive e trabalha com o grupo que dará início ao movi- mento surrealista em França – o mesmo grupo responsável pela pu- blicação de Littérature – insistirá numa criação poética fiel aos

princípios do dadaísmo de Zurique. Sobressai nessa criação, de mo- delo dadaísta, o jogo da improvisação, a tutela do acaso (o hasard) e

o especial gosto pelas desordens na distribuição sintáctica, provoca- das pelas associações automáticas. Este tipo de escrita é característico

dos poemas e textos dramáticos do autor romeno e a sua explicitação é feita, como seria de esperar, em outros textos de Tzara, tidos por mais programáticos, como é o caso de L’Antiphilosophe, integrado no Deuxième manifeste de Monsieur Anripyrine (1920).

Não se pretende apreciar a vasta obra de Tzara e ainda menos convirá tirar qualquer conclusão acerca das polémicas com André Breton e o posterior regresso ao debate em torno do surrealismo, após a Segunda Guerra. Mais do que os seus importantes textos teóricos e as polémicas em que se envolveu merece atenção, tendo em conta o âmbito deste trabalho, a sua prodigiosa e multiforme capacidade cria- tiva. O poeta judeu romeno, sempre o principal rosto conhecido do dadaísmo, é normalmente referido como integrando os grupos de vanguarda mesmo depois da eclosão do surrealimo (Manifeste sur- réaliste, 1928). Tzara fixou-se em Paris em 1919 e manteve-se activo

em França até ao ano da sua morte, 1964, tendo sido sempre reco- nhecidamente influente14.

Do ponto de vista cronológico, portanto, nem sequer é muito estra- nho que se aproxime o autor de Caranguejo do autor de L’Antitête, uma

vez que ainda partilham um tempo comum. Mas não serão as razões de

Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

14Tzara foi fazendo durante vários anos traduções de poetas turcos e húngaros, pre- faciou edições de François Villon e Apollinaire e apresentações de livros de arte de Picasso. Escreveu o último texto, publicado um dia depois da sua morte, a 18 de Julho de 1964, em homenagem a Louis Armstrong, dando assim sinais de uma vi- talidade que interessa reter.

época a sustentar o argumento que pretende aproximar a escrita de Ruben A da corrente dadaísta e das ideias que acabariam também por ser fundadoras do movimento surrealista. Há, de facto, uma aproximação a estabelecer entre estes movimentos e o autor de Kaos, decorrente dos

modos de conceber a arte, do carácter inovador das linguagens que usam e sobretudo da relação que estabelecem com a tradição e as vanguardas.

No que se refere a esta última questão, é evidente que a arte dada

não se quer nem antiga, nem moderna, pois compreendeu o carácter paradoxalmente transitório da modernidade, na linha do pensamento de Baudelaire. Fala-se de désespoir e de dégoût no Manifeste dada 1918

e, compreensívelmente, o núcleo de Tzara prefere recusar-se a adoptar teorias que conduzam a fórmulas que ameacem transformar-se num novo academismo. Pratica antes um lirismo torrencial, que sendo em- bora próximo da prática de escrita automática dos criadores de Champs magnétiques, tem rupturas que perturbam a ideia de fluxo in-

terior, expondo uma procura não automática de novas relações sin-

tácticas. Pertence a Tzara este verso do poema “Les écluses de la pensée”, incluído em L’Antitête : “Je me, en décomposant l’horreur, très tard”15. O verso apresenta, com evidente contenção de palavras, a mul-

tiplicidade de significações que decorre da ideia central de “decompo- sição do horror”, dada pelo predicado que sustenta equilibradamente os dois extremos da frase, “Je me” e “trés tard”, separados por vírgulas.

Parece que neste rigoroso verso se pode encontrar uma marca pro- funda da arte dada, uma escrita talvez mais rasurada e menos auto- mática do que veio a ser a pretensão surrealista de escrita automática.

O que não quer dizer que seja menos livre por isso. Tal como aconte- ceu com o dadaísmo, que terá sido menos forte em termos programá- ticos, mas cumpriu um percurso que pode pensar-se como mais rebelde ou até mais cosmopolita do que o movimento surrealista16.

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15Confronte-se Les Cahiers libres, 1933, p.46, sublinhados nossos.

16Sobre esta questão, tratada mais profundamente, pode ler-se Scarpetta, Guy,Elogio

Ruben A afirma, bem mais tarde, manifestando uma aguda cons- ciência do que terá estado sempre em questão na busca do seu idioma, da escrita de cada poeta, de qualquer poeta moderno:

A língua cansada, não evoluída, impede-se de nos dar coisa nova, falando a nossa época, com as inquietações próprias a um sentir desarticulado. (A. Ruben, 1970: 195)

Por tudo o que se vem concluindo, faz sentido retomar o que disse Maurice Blanchot em L’entretien infini, no capítulo intitulado

“Le demain joueur” (Blanchot, 1969: 597-619), a propósito da escrita automática surrealista, quando salienta o jogo desinteressado do pen- samento – “présence fortuite qui joue et permet de jouer”- como o

único elemento sério (sérieux) a designar. O jogo, o hasard, o aleatório

(“l’aléa, entre raison et déraison”), incondicionalmente procurados,

são os criadores da descontinuidade. A lacuna, a falha, a ruptura assim definidas compõem a trama textual que a linguagem dá efecti- vamente a ler. Fá-lo, tanto mais quanto se desacredita, na medida em que com esse descrédito recusa a ideia do real como uma plenitude homegénea que ela seria capaz de transportar. O texto de Blanchot obriga a pensar a experiência do surrealismo (e, neste caso também o dadaísmo) como algo muito mais alargado do que o movimento circunscrito a um tempo e lugares determinados, a uma série de ca- racterísticas mais ou menos comuns a um conjunto de autores rela- cionados em grupo. O movimento deve principalmente ser observado, tal como aqui se tentou fazer ao relacioná-lo com a obra de Ruben A, como uma libertadora experiência de déseuvrement, em

que é exposta a desordem da linguagem e se arrisca avançar para o

desconhecido, recusando o saber prévio ao acto da escrita.

Seguindo a lição de Tzara, reconhece-se que nesta experiência de escrita “la pensée se fait dans la bouche”. A leitura, descoberta de

caminhos interpretativos e mundos possíveis, é assim proposta, na

infinita deriva dessa espécie acaso, do jogo de analogias, do ar de fa- mília produtor de sentidos. A eterna questão do enunciado e da enun-

ciação, entre o dito e não dito.

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(Inter-)Identidade portuguesa na narra-