• Nenhum resultado encontrado

Para uma etnografia dos públicos em acção

João Teixeira Lopes1

No momento actual de desenvolvimento da Sociologia da Cul- tura exige-se o exercitar da imaginação metodológica no estudo dos públicos. Antes de mais, porque os instrumentos estritamente quan- titativos, apesar da grande vantagem de fazerem sobressair determi- nações, regularidades e comparações, negligenciam, por generalismo, as trajectórias individuais e dos micro-grupos.

Importa, por conseguinte, na conciliação entre quantitativo e qualitativo, exigência, aliás, do próprio cariz relacional do objecto de estudo em causa, construir observatórios de públicos in situ, capazes,

numa primeira fase, de construir tipos-ideais e perfis (como de resto já acontece entre nós, particularmente nos estudos do Observatório das Actividades Culturais), para, numa segunda fase, proceder à ca- racterização etnográfica dos modos antropológicos de recepção dos públicos em formação, para além do necessário mas insuficiente co- nhecimento sociográfico, seguindo o princípio defendido por Madu- reira Pinto: “procurar conciliar, na organização global da pesquisa, isto é, em todo o ciclo que vai da problematização teórica até à fase da observação, extensividade e intensividade, por esta ordem (e su- blinho: “por esta ordem”) (...) acredito que a análise conduzida à escala

macro e meso segundo procedimentos de natureza mais extensiva, convencionalmente associados à sociologia, tem precedência lógica e teórica sobre os procedimentos observacionais ditos «etnográficos» (Pinto, 2004: 26).

Dito isto, a etnografia dos públicos em acção permitirá, assim o creio,

restituir à sociologia dos modos profanos de recepção, particularmente

no que respeita às dimensões corporais, emocionais e afectivas, tantas vezes mitigadas ou mesmo silenciadas.

Ao falarmos de apropriações e de modos de relação com a cultura

entramos, já, na rejeição do modelo behaviourista do estímulo/re- flexo, pressupondo-se a existência de um agente social implicado na (re)produção das estruturas e não um reactor sonâmbulo, um alegre robot ou uma marioneta. O receptor cultural, neste sentido, é mais um praticante cultural do que um consumidor.

Será importante, a este respeito, relembrar aos alunos a teoria da estruturação de Anthony Giddens e o próprio conceito de agência. Aliás, que fique bem claro: o receptor potencialmente apto a reinter- pretar mensagens e seleccionar sentidos não é o «novo herói da cul- tura» de que nos fala Mike Featherstone. Pelo contrário, pretendo referir-me a uma das características ideais-típicas do sujeito social contemporâneo.

Por outro lado, é fundamental partirmos do conceito de art world

para compreendermos a cadeia de implicados na produção da obra cultural, esticando tal pressuposto até ao receptor. Assim, defendo o cariz incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais, na es- teira de Umberto Eco (Eco, 1989). Mais ainda: o facto de as obras cul- turais serem virtualmente ambíguas e plurívocas (tanto na forma como no conteúdo - ou não fossem as grandes revoluções formais verdadeiras revoluções totais, em que a forma é conteúdo...) é uma das condições do próprio agir comunicacional, possibilitando um en- riquecimento do jogo de expectativas e dos próprios mapas culturais e simbólicos dos sujeitos.

Andrea Press relaciona as mudanças na estrutura social com a diversificação dos públicos e, consequentemente, dos modos e perfis de recepção. A multiplicação de exemplos que esta autora fornece será de enorme utilidade para a dinâmica pedagógica (Press, 1994). Situemo-nos no já célebre estudo de Radway, Reading the Romance

(Radway, 1991). Verdadeiro marco dos Cultural Studies, permitiu um

46

salto qualitativo no modo de entendimento de como os leitores interfe- rem na determinação dos significados textuais, opondo resistência, não raras vezes, aos sentidos dominantes. No caso das mulheres, em parti- cular, a leitura do romance permitia uma fuga às rotinas dos modelos patriarcais de família, criando espaços-tempos de maior autonomia.

De igual modo, os estudos de Long clarificaram o acto de recep- ção como terreno de luta simbólica, envolvendo complexas disputas entre as indústrias culturais, os críticos e os públicos. De facto, apesar da importância da autoridade cultural na selecção de livros, a inter- pretação funciona claramente como resistência ao discurso preten- samente soberano dos críticos. Apesar dos parâmetros pós-modernos destes últimos, os receptores (de livros, de filmes, de séries televisivas) tendem a organizar os seus universos de referência por coordenadas «pré-pós-modernas», identificando-se com certas personagens, acre- ditando, por vezes, na verosimilhança de cenários e ficções, etc.

Lichterman é outro dos mais conhecidos estudiosos da recepção cultural. Os seus estudos no âmbito da thin culture (superficial, li-

geira...), em particular no que respeita aos chamados livros de auto- suporte, revelaram que os leitores avaliam os ensinamentos e conselhos de forma ambivalente e selectiva, misturando tais sugestões com outras referências mediáticas e mesmo experiências pessoais. Aliás, este estudo permitiu questionar o muito em voga conceito de

comunidade interpretativa, já que, na mescla de experiências, mundos

da vida e papéis sociais, os receptores acabam por circular entre várias comunidades interpretativas, criando repertórios sincréticos.

Em suma, apesar de fortes constrangimentos ligados quer à ri- gidez da doxa dos campos culturais, para nos situarmos em linha com Bourdieu, quer à fixidez de determinadas instâncias, maxime agências

de consagração/legitimação arbitrária de um sentido único para as obras culturais, o ofício de receptor revela-se como um processo ac- tivo e criativo, mantendo uma relação complexa e ambivalente com as estruturas do poder.

Hans Robert Jauss, teórico da escola de Konstanz, coloca-se nos antípodas de Adorno e Horkheimer. Estes defendem claramente que a verdadeira arte é incomunicável (Adorno e Horkheimer, 1993). Ao percebê-la, perdemos o sentido crítico e emancipador, já que é ne- cessário um véu de resistência a qualquer mecanismo de empatia, projecção ou identificação, tidos como alienantes. Stefan Collini (Col- lini, 1993) fala mesmo nos «seguidores do véu», uma espécie de her- metismo ou gnosticismo contemporâneo para quem o essencial é não ter compreendido. Adorno é, a este respeito, taxativo: “ a arte só é ín- tegra quando não entra no jogo da comunicação”. Eco, ironicamente, caracteriza os novos gnósticos como aqueles que sentem que “cada camada removida ou cada segredo desvendado é sempre a antecâ- mara de uma verdade ainda mais ardilosamente oculta”. Ora, como defende Jauss (Jauss, 1978), a recepção contemporânea de uma dada obra cultural acciona um conjunto de comparações com as obras an- teriores, bem como com a evolução do género em que se enquadra e com a experiência de vida do receptor.

Defendo que esta definição permite uma dupla abertura: por um lado, assinala a necessidade de familiaridade com a estrutura da obra, o que evita abordagens ingénuas. Por outro lado, dignifica a história de vida do sujeito, o seu habitus, as suas experiências e a própria frui-

ção enquanto constitutiva da função social da arte, assente na comu- nicação e na Poiesis: “sentir-se deste mundo e em casa neste mundo”

(Jauss, 1978: 143). Não se coíbe, pois, o autor em elogiar a experiência estética, nem, tão-pouco, as categorias que mobilizam perceptiva e cognitivamente os públicos. Ela deve, na verdade, mergulhar “ao nível da identificação (...) espontânea que toca, que perturba, que causa admiração, que faz chorar ou rir por simpatia e que apenas o sno- bismo pode considerar como vulgar” (Idem: 161).

A experiência estética não renuncia, por isso, à linguagem, verbal ou não-verbal, corpo expressivo, comunicante, produtor de sentido e não apenas mera inscrição ou interiorização das marcas das estru-

48

turas. O gesto, o olhar, o riso, o choro, a ampla vastidão do sensível e da exteriorização da subjectividade socializada são, então, sinais dessa mobilização estética. As disposições afectivas – a «estrutura de senti- mento», na expressão de Williams, existem, pois, como elementos constituintes do horizonte de expectativa, conceito que Jauss utiliza

para se referir ao “sistema de referências (do receptor) objectivamente formulável”. E que lhe permite, aliás, tecer duras críticas a um certo tipo de produção cultural que apelida de arte culinária, por corres-

ponder inteira e pacificamente ao horizonte de expectativas do re- ceptor – consideração que, a meu ver, o aproxima, agora, da Escola de Frankfurt, pois tem subjacente um a priori sobre a arte, enquanto

inquietação, subversão e transcendência do que existe. Mas opõe-se, com igual veemência, como vimos, à arte que resiste à interpretação e à comunicação geradora de experiências sociais – socializadoras.

Devo acrescentar, no entanto, que qualquer abordagem sobre a recepção ficará incompleta sem uma teoria do habitus pessoal e de classe e sem uma sociologia dos públicos da cultura. O stock de aprendizagens do receptor, a sua história, pessoal e social, cruzam-se com contextos mais vastos de constrangimentos e recursos. Jacques Leenhardt coloca o dedo na ferida ao considerar: “os muitos parâme- tros de um público dependem dos caracteres fundamentais dos gru- pos ou das classes a partir dos quais se definem”. Acrescenta, ainda: “o público é uma estrutura social secundária ou dependente (...) nunca existe em si mesmo, duplica apenas um recorte sociológico de classes ou de grupos” (Leenhardt, 1982:73).

No entanto, apenas posso concordar parcialmente com o autor. Se me parece correcto afirmar que um público não existe num vazio social mas sim em estreita conexão com a estrutura social e uma ma- triz de desigual distribuição de recursos linguísticos, perceptivos e cognitivos; se, igualmente, sou contra a reificação do conceito, já que um público existe, a meu ver, virtualmente, sendo mobilizado em con-

textos e circunstâncias concretas e empiricamente observáveis; tam-

bém me parece, todavia, que a circulação reflexiva de sentido, o con- texto de recepção, nomeadamente nas suas componentes espaciais e interaccionais (indissociavelmente ligadas) e a própria estrutura se- mântica e estilística da obra constituem variáveis da maior importân- cia, sem esquecer, naturalmente, os canais e filtros institucionais intermediários (instâncias de difusão e de consagração). Jacques Lee- nhardt, uma vez mais: “é pois necessário interrogar os caracteres ge- rais do que é recebido pelo público se quisermos compreender a razão por que determinado objecto se torna assimilável como objecto de arte”. E a ênfase, clara, no poder (desigual) dos públicos: “É o público

que o «faz» quando reconhece que este último responde às exigências requeridas pelo código. Se esta consagração não chega, desaparece o livro, desprega-se a tela, esquece-se a música. O público é, assim, a instância social que decide, em último lugar, como São Pedro, se se pode ou não entrar no Paraíso! Mas os paraísos são tão numerosos como os públicos! É que o público, no domínio da arte, não ajuíza a partir de uma faculdade de juízo estético motivado, mas a partir de um gosto” (Idem: 74).

Importa, por isso, renovar a nossa abordagem metodológica no que se refere à observação dos públicos. Como captar as diferentes atitudes estéticas e distintas representações simbólicas sobre um es- pectáculo, um quadro ou um livro, de “tipo mais teatral e contextual, de tipo preferencialmente não verbal e aparentemente não conven- cional” (Goffman, 1993: 15)? Como apreender o espectáculo dentro do próprio espectáculo, no próprio corpo do receptor? Como enten- der, nas palavras de Serge Collet, que o “espectador é «actor» no seu corpo no próprio lugar do espectáculo” (Collet, 1984: 13) Como en- tender que, alguns, se movam, dentro do seu «modo habitual de per- cepção» (Francis, 1992: 117), de maneira a emitirem juízos de valor estéticos que remetem para uma concepção ampla e não pericial da estética, ignorante da história do género em causa, das especificidades estilísticas e dos códigos restritos dos iniciados? Ao invés, como com-

50

preender que estes se movam no terreno dos intermediários culturais, do interconhecimento pessoal ou mediado, académico ou autodi- dacta, dos géneros, das classificações, dos rituais propriamente artís- ticos? Como interpretar, então, o modo como os públicos fazem e desfazem as telas, os palcos, as partituras? Como explicar que, sendo infinitos os usos da língua, se reduzam, no entanto, as opções linguís- ticas dos públicos quando querem falar do que viram, ouviram, sen- tiram? E como relacionar a abertura ou fechamento desses possíveis com tendências e contratendências do processo de socialização, em particular no que se refere às aprendizagens «culturais», com dispo- sições fracas e fortes, afirmações e contradições, crenças e propensões para agir? Como se formam e quebram as «comunidades de código» ou «comunidades interpretativas»? O que explica a sintonia e a dis- sonância perceptivas? Como se expressam? Por que razão o que para uns é um prazer sofisticado, para outros é, por exemplo, uma «agres- são auditiva» (Menger, 1986)?

A resposta passa pela imperiosa necessidade de complementar as análises extensivas quer com as análises históricas e institucionais, quer com as análises intensivas, de cariz etnográfico.

Aos inquéritos e bases de dados urge acrescentar a maturação hermenêutica patente na interpretação das entrevistas, maxime as de

matiz biográfico, nos grupos de discussão, nas várias formas de ob- servação (do observador incógnito ao observador participante), nas deambulações, nas vadiagens sociológicas de que nos fala José Ma- chado Pais, na fotografia social, no vídeo documental...

A etnografia, como refere Andrea Press, é sempre uma dupla construção (ou dupla hermenêutica), a partir das construções primei- ras dos públicos, manifestas em textos, falas, posturas, gestos, risos, pausas, gritos, silêncios...António Firmino da Costa sugere os quadros de interacção como unidade de análise facilitadora do contínuo vaivém

macro-micro, especialmente adequados à análise dos “modos de re- lação entre as pessoas e os seus contextos de acção”, neste caso quer os

modos de relação “com as artes e a cultura enquanto esferas institu- cionais especializadas”, quer “os modos de relação concretos, em si- tuação, das pessoas singulares com os seus contextos imediatos de acção, no domínio das práticas culturais” (Costa, 2004: 134-135).

Neste esforço etnográfico e interpretativo importa nunca perder de vista um princípio de dupla recusa: a da sub-interpretação e a da sobre-interpretação. Ou, como diz Geertz: “no nosso caso (de antro- pólogos) o movimento é entre interpretar demais ou interpretar de menos, lendo mais coisas naquilo que observamos do que a razão re- comendaria, ou, ao contrário, menos do que a razão exigiria” (Geertz, 2003: 29). Assim, não nos poderemos limitar às abordagens e concei- tos de «experiência-próxima» (as rotinas, o anódino, o anedótico, o vernáculo da vida quotidiana...), nem, tão-pouco, à deriva para o outro extremo, o da «experiência-distante» (própria do trabalho in- telectual de abstracção, isto é de selecção e construção da realidade, de um sobreobjecto, como diria Bachelard).

Para o estudo dos públicos em acção, como, de resto, em qualquer

procedimento etnográfico, é na conexão tensa das duas abordagens que poderá resultar o resgate dos tempos e modos da recepção cultural.

Bibliografia

Adorno, Theodor e Horkheimer, Max 81993) , Dialectic of Enlightenment.

New York: Continuum.

Collet, Serge (1984), in AA. VV, Théâtre Public. Le Rôle du Spectateur, nº 55.

Collini, Stefan, dir. (1993), Interpretação e Sobreinterpretação. Lisboa: Edi-

torial Presença.

Costa, António Firmino (2004), “Dos públicos da cultura aos modos de re- lação com a cultura: algumas questões teóricas e metodológicas para uma agenda de investigação” in AA.VV, Públicos da Cultura. Lisboa: Obser-

vatório das Actividades Culturais.

52

Eco, Umberto “Entre autor e texto” (1993) in Stefan Collini (dir.) Interpre- tação e Sobreinterpretação. Lisboa: Editorial Presença.

Eco, Umberto Eco (1989) Obra Aberta. Lisboa: Difel.

Francis, Robert (1992), La Perception. Paris  : Presses Universitaires de

France.

Geertz, Clifford (2003), O Saber Local. Petrópolis: Editora Vozes.

Goffman, Erving (1993), A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias.

Lisboa: Relógio d’Água.

Jauss, Hans Robert (1978), Pour une Esthétique de la Réception. Paris : Gal-

limard.

Leenhardt, Jacques (1982), “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org), A Estética e as Ciências da Arte. Amadora: Bertrand.

Lopes, João Teixeira (2004), « Experiência estética e formação de públicos” in AA.VV., Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades

Culturais.

Menger, Pierre-Michel (1986), “L’oreille spéculative. Consommation et per- ception de la musique contemporaine » in Revue Française de Sociologie,

XXVII.

Pinto, José Madureira (2004), “Para uma análise sócio-etnográfica da relação com as obras culturais” in AA.VV., Públicos da Cultura. Lisboa: Obser-

vatório das Actividades Culturais.

Press, Andrea L. (1994), “The sociology of cultural reception: notes toward un emerging paradigm” in Diana Crane, The Sociology of Culture. Cam-

bridge: Basil Blackwell.

Radway, Janice A. (1991), Reading the Romance. The University of North

Carolina Press.

Roussel, Francoise e Kahane, Martine (2002) “Le progrès de la connaissance des publics” in AA.VV, Les Institutions au Plus Près des Publics. Paris :

Musée du Louvre/La documentation Française.1

Investigar representações sociais: