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O passado e o futuro do presente do presente de Eça de Queirós

(Inter-)Identidade portuguesa na narra tiva queirosiana sobre o colonialismo

2. O passado e o futuro do presente do presente de Eça de Queirós

Dado o objectivo do estudo – a compreensão dos sistemas de re- presentação inter-identitários através da exegese textual –, decidimos apoiar-nos nas reflexões de Eduardo Lourenço.

Durante séculos, Portugal era «um país que tinha um império» (Lourenço, 2001: 16). Não obstante, nos meados do século XVI, aban- donam-se os pontos fortes em Marrocos; no século XVII, holandeses e ingleses vão conquistando o monopólio comercial do Oriente; com a Restauração, «cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora Inglaterra» (ibid.: 23). Dá- se então uma «translação do sonho imperial português do Oriente para o Brasil» (ibid.: 22). Em 1785 corre o manuscrito de Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, poema satírico («A mole Es- tupidez cantar pretendo/Que distante da Europa desterrada/Na Lusi- tânia vem fundar seu reino»8) que valerá o encarceramento ao seu autor. A Inquisição, embora enfraqueça gradualmente ao longo do século XVIII, só em 1821 é extinta formalmente numa sessão das Cortes Gerais. No século das Luzes, o esforço do rei João V, que con- vida Luís António Verney, autor do famoso Método de Estudar, para

colaborar no processo de Reforma Pedagógica, não é suficiente para

(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

7Dada a leitura atenta das várias obras de Eça de Queirós, e com o apoio de várias fontes documentais, julgamos poder afirmar que este levantamento é exaustivo. Contudo, não afastamos a possibilidade de sermos surpreendidos por especialistas queirosianos com a revelação de outros textos/narrativas que evoquem, de forma objectiva ou simbólica, a temática do colonialismo.

aproximar Portugal dos ventos do progresso cultural que anima a Eu- ropa. «Nós adaptámos o romantismo a uma cultura e a um país que não tivera Luzes», afirma Eduardo Lourenço (ibid.: 26). Mas, pela pri- meira vez, com o romantismo, «Portugal discute-se» (ibid.) e «de certa

maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram de se discutir» (ibid.). Almeida Garrett e Alexandre Herculano refundam, remitifi- cam Portugal. Cinco anos depois da Revolução Liberal, Garrett es- creve o poema Camões. Garrett recria Camões, «é ele o verdadeiro

rei Sebastião» (ibid.: 32), foi ele que «salvaguardou» (ibid.) a memória de Portugal. Também Herculano se reapropria do passado e inventa uma nova História de Portugal. Entre 1851 e 1890, Camilo Castelo

Branco escreve mais de duzentas obras: sentimentaliza a vida portu- guesa e naturaliza a ficção entre nós. Na década de 60, «Paris, então

capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. (…) Portugal acede um pouco ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua escassa classe financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, parado- xalmente, a sua classe intelectual. É nesse momento exacto que uma nova geração (…) descobre que não é europeia» (ibid.: 37). Antero de Quental é a figura de proa da plêiade de jovens que se tornou co- nhecida por Geração de 70. Eça de Queirós acompanha-o e cria a sua própria aura. Conhece Antero em Coimbra, em 1864, onde ambos estudam Direito. O movimento de renovação ideológica que prota- gonizam tem início com a Questão Coimbrã (1865), desenvolve-se entre membros do Cenáculo e afirma-se nas Conferências do Casino Lisbonense (1871). Não está só em causa uma nova estética literária. O carácter revolucionário da mensagem é mais abrangente. Ricoeur9 diria que se enraíza o acto de imputação nas Causas da Decadência

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Maria do Rosário Girardier

9«A acção é a posse daquele que a pratica, que é sua, que lhe pertence propriamente. Sobre

este acto ainda neutro do ponto de vista moral enraíza se o acto de imputação que reveste uma significação explicitamente moral, no sentido em que ela implica acusação, desculpa ou absolvição, censura ou louvor, em suma, estimação segundo o “bom” ou o “justo”.» in

dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos. Para Eduardo Lou-

renço, «essa visão do passado nacional, evocado e condenado sem apelo, (…) era uma espécie de sacrilégio cultural sem precedentes e, de um certo modo, um parricídio» (ibid.: 39). Uma nova mitologia é proposta, desprovida de justificações de ordem transcendente: «Pela primeira vez entre nós, a ideologia – sob a roupagem do socialismo proudhoniano – ocupava e reclamava para si o estatuto de legitimação cultural, até então desempenhado pela religião» (ibid.: 40).

Eça de Queirós é o autor da 4ª Conferência, intitulada «A Lite- ratura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte», proferida a 12 de Junho de 1871. Depois do ministério do Duque de Ávila o exonerar das suas funções de Administrador do concelho de Leiria10, durante uma conversa com Ramalho Ortigão, lança a ideia de escre- verem uns opúsculos semelhantes aos de Alphonse Karr («Les Guê- pes»). As Farpas são escritas e, logo no primeiro fascículo, Eça revela

o seu imaginário sobre a posição de Portugal na Europa:

Portugueses – pequenos, obscuros, sem nenhuma espécie de signi- ficação ou de influência no movimento das ideias ou no movi- mento dos factos universais (…). Pouca importa o nosso voto, o nosso juízo ou a nossa vontade! A nossa única missão, improrro- gável e fatal, é submeter-nos, e aceitá-la. (Queirós, 2004: 52)

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10Maria Filomena Mónica estabelece uma relação de causa-efeito entre a participação de Eça nas Conferências do Casino e a sua exoneração da Administração do concelho de Leiria. A investigadora justifica ainda a proposta de Eça a Ramalho Ortigão - de escrita de As Farpas – pelo facto do escritor se encontrar sem emprego (Queirós, 2004,

«Introdução»: 4). Existe contudo uma falta de coerência nas datas. Na verdade, as Conferências têm início em Maio de 1871 e o primeiro número de As Farpas é datado

do mesmo mês/ano – apesar de o fascículo só ter sido posto à venda a 17 de Junho. O que o próprio Eça escreve no fascículo 7 (Novembro de 1871) é que, apesar de ter fi- cado classificado em primeiro lugar nas provas para cônsul que prestou a 1 de Outubro de 1870, mais tarde teria sido preterido para um lugar vago na Baía porque «o sr. Mi- nistro dos estrangeiros declarara que eu não poderia nunca entrar na carreira consular, porque eu era… O Chefe do Partido Republicano em Portugal!» (Op. Cit.: 250).

Boaventura de Sousa Santos bem poderia intitular esta passagem de Portugal, «um Caliban na Europa» (Santos, 2002: 46).

3. Entre Prospero e Caliban – a tese de Boaventura de Sousa