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Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

2. O Homem e a Linguagem

No prefácio de The Language Instinct (Pinker, 1994), Steven Pin-

ker afirma que nunca encontrou uma pessoa que não estivesse inte- ressada na linguagem. O interesse pela fala, “este fenómeno simultaneamente tão natural e tão estranho”, como lhe chama Her- culano de Carvalho (Carvalho, 1983:1), parece, de facto, percorrer todos os povos e todos os tempos. “Nunca encontraremos o homem separado da linguagem”, afirma Emile Benveniste, “e nunca o veremos inventando-a. [...] O que encontraremos no mundo é um homem fa- lando, um homem falando a outro homem, e é a própria linguagem que ensina a definição do homem”, acrescentando, mais adiante, que “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque

só a linguagem funda realmente na sua realidade, que é a do ser, o

conceito de ego” (Benveniste, 1976:50), um eu que só se afirma na

presença de um tu, com quem se confronta. “Quem fala” diz Óscar

Lopes nessa magnifica oração de sapiência que é As Mãos e o Espírito,

“nunca está absolutamente só, visto que pensa – e pensar, à maneira humana pelo menos, é atingir o mundo material através de um

mundo de sinais sensoriais e verbais de que os nossos semelhantes

comparticipam” (Lopes, 1958/2007:39).

2.1 Os registos escritos

Os registos escritos que até nós chegaram mostram que nenhuma das culturas conhecidas se deixou de preocupar com questões ligadas à linguagem, fosse por razões de ordem filosófica relacionadas com a sua origem e natureza, fosse por razões de ordem prática. Por outro lado, os estudos antropológicos e etnográficos mostram-nos a impor- tância da fala em sociedades ou culturas que não nos legaram registos escritos.

Dos gregos antigos, que “tinham o dom de se admirarem com coisas que outras pessoas tomam como garantidas” (Bloomfield,

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1933:4), chegaram-nos as primeiras reflexões filosóficas sobre a na- tureza e a origem da linguagem – questões que continuam a preocu- par-nos vinte e cinco séculos depois – produzidas, possivelmente, a partir do século V a.C., com Protágoras, e claramente inscritas no

Crátilo, de Platão, séculos V-IV a.C., e em algumas das obras de Aris-

tóteles, século IV a.C..

Dos gregos, sobretudo com a Lógica e a Retórica de Aristóteles, chegou-nos também a notícia de reflexão sobre a linguagem com preocupações de ordem mais prática, como são as de reconhecer e produzir raciocínios correctos, na Lógica, ou de ordenar o discurso de forma a ganhar as discussões na Ágora de Atenas, na Retórica.

Com objectivos práticos podemos, de certo modo, considerar a descrição do Sânscrito feita, dois ou três séculos antes da reflexão grega, pelo sacerdote hindu Panini, século VI ou VII a.C.. Esta des-

crição – a Gramática de Panini, como ficou conhecida –, que visava

descrever a forma de pronunciar correctamente a língua sagrada para que as orações surtissem efeito, ainda hoje é considerada como uma das mais conseguidas descrições fonológicas de uma língua.

Objectivos práticos teriam também as descrições médicas de problemas da fala provocadas por lesões cerebrais encontradas num papiro egípcio de cerca de 1700 a.C..

2.2 Os Mitos

As referências à linguagem aparecem também em livros sagra- dos, independentemente da especulação filosófica sobre a sua origem ou da sua utilização prática. Nas religiões do Livro, a linguagem apa-

rece como figura principal do princípio dos tempos. No Génesis, a

Criação é descrita quase como um acto de fala: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz. E Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite:

e foi a tarde e a manhã, o dia primeiro” (Gén. I, 3-5)4. Nesta passagem

Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

4Na tradução de João Ferreira Annes d’Almeida, de 1681, a primeira tradução da Bíblia em português.

estão patentes o poder transformador, transfigurador, da fala –“e houve luz” – e, simultaneamente, uma das primeiras funções da lin- guagem: a de modelizar, de dar forma, nomeando-o, ao mundo – “E

Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite” – Este fazer-dizendo

e dando nome às coisas feitas continua até ao fim do sexto dia da Criação.

A confirmação do papel da palavra na Criação é confirmada num dos últimos livros da Bíblia, o Evangelho de S. João, onde a pa- lavra é identificada com o próprio Criador:

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava a par de Deus, e a Palavra era Deus. Esta estava no princípio a par de Deus. Por esta foram feitas todas as coisas, e sem ela se não fez coisa nenhuma do que feito foi. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (João

I, 1-4)

A importância da linguagem, agora como elemento agregador/desagregador, aparece de novo no episódio da Torre de Babel, onde o facto de todos os homens falarem a mesma língua se torna uma ameaça.

E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. […] E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre, cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome para que não sejamos espa- lhados sobre a face de toda a terra. Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificaram; E disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer. Eia, desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua de outro. […] Por isso se chamou seu nome Babel, por- quanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os es- pargiu o Senhor sobre a face de toda a terra. (Gen. XI, 1-9)

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A restituição da língua comum acontece no Pentecostes, embora

só para os discípulos de Jesus, e é assim descrita nos Actos dos Após-

tolos: “E foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar

em outras línguas como o Espírito Santo lhes dava que falassem. [… ] E feita esta voz, ajuntou-se a multidão; e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua.” (At. II, 4-6).

Num comentário mais desenvolvido ao Génesis, Umberto Eco

(Eco, 1996:23 ss) dá conta dos esforços para encontrar ou (re)cons- truir a língua perfeita – a língua adâmica, a língua de Adão, criada por Deus no Jardim do Paraíso – e mostra como este mito é trans- versal a várias culturas.

Ao contrário do que acontece nos textos da Bíblia, em que a fala

aparece como força criadora, no Popol Vuh, o Livro do Conselho, um

dos poucos registos escritos que da civilização Maia nos chegou, a lin- guagem aparece referida como uma propriedade inata dos homens: havendo os Criadores criado todas as aves e animais ordenaram-lhes: “Falai segundo a vossa espécie e diferença; louvai o nosso nome; dizei que somos Pais e Mães. Falai, invocai-nos!”. Mas os animais e as aves não o puderam fazer “e desta sorte o ultraje lhes cobriu o corpo; e

assim são mortos e comidos todos os animais da terra.” (Popol Vuh:

7-8) Foi só ao fim de várias tentativas que conseguiram criar o homem com a faculdade da linguagem para que pudesse invocar os seus Cria- dores, como se o homem não pudesse ser criado sem linguagem. É curioso pensar na semelhança desta descrição com as concepções mo- dernas que consideram a linguagem como uma faculdade inata do Homem, ou mesmo, como Pinker (Pinker, 1994), um instinto.

2.3 O Testemunho da Antropologia

Os antropólogos que a partir do século XIX procuravam “um objecto susceptível de ser estudado e que permitisse, em princípio, o acesso à cultura de uma sociedade “primitiva”“ (Kristeva, 1969:67) descobriram que podiam melhorar o seu conhecimento acerca das

sociedades consideradas selvagens analisando a linguagem e a cons- ciência que delas têm os seus falantes e registaram informações ex- tremamente úteis para a investigação linguística e para o conhecimento da cultura dos povos estudados. Júlia Kristeva (Kris- teva, 1969: 67ss) dá conta dessas investigações. Referirei apenas al- guns casos para salientar a importância social da fala.

Em alguns povos, a ideia da importância da fala na vida social é

tão forte que frequentemente fala é sinónimo de acção ou obra, o re-

sultado da acção. Os Bambara (Sudão) consideram a fala como um elemento físico, tal como o ar, a água, a terra e o fogo. Para este povo, os órgãos da fala são a cabeça, o coração, a bexiga, os órgãos sexuais, a traqueia, a garganta, a boca – língua dentes, lábios, saliva – em que cada elemento tem um papel específico na produção da fala. Falar é fazer sair elementos do corpo, como dar à luz, por exemplo. Para eles, “o elemento linguístico é tão material como o corpo que o produz” (Kristeva, 1969:76). Para que a fala seja sensata, os órgãos que a pro- duzem são preparados de forma especial: tatuagens nos lábios e den- tes limados, por exemplo.

Também para os Dogons (Niger), os diversos elementos da fala estão difusos pelo corpo, sobretudo na forma de água. “Quando o homem fala, o verbo sai sob a forma de vapor, visto que a água da fala foi aquecida pelo coração” (Kristeva, 1969:77).

Em geral, para a grande maioria dos povos então descritos, a lin- guagem é algo que se identifica com o próprio corpo ou com as coisas nomeadas. Essa é uma das razões para as palavras tabu: o nome dos mortos, por exemplo. Este tabu permanece em fórmulas ainda usadas

entre nós como a minha falecida, o meu falecido para evitar dizer o

nome do familiar falecido ou sequer pronunciar o grau de parentesco, marido ou mulher, geralmente. Na comunidade cigana é tabu, quase insultuoso, pronunciar o nome dos mortos ou o seu grau de paren- tesco com os vivos. E não é verdade que continuamos a evitar certas palavras, ou mesmo a bater na madeira, quando as ouvimos? Por que

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teimam os órgãos de comunicação social em dizer: morreu de doença prolongada em vez de dar o nome, cancro, à doença? Será que conse-

guimos separar completamente o nome da coisa nomeada?

O que todos estes mitos sobre a linguagem nos revelam é a preo- cupação do homem em tentar explicar uma faculdade que não existe em mais nenhum animal. A importância da linguagem é tal que em

alguns povos banto uma criança só se torna muntu, pessoa, quando

aprende a falar uma língua; até aí é apenas kintu, coisa. Compare-se

com a afirmação de Benveniste, já referida: “é na e pela linguagem

que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda

realmente na sua realidade, que é a de ser, o conceito de ego” (Benve-

niste, 1976:50).

Resumirei considerando, com Óscar Lopes, que “Através dos mi- lénios, a linguagem tornar-se-á um tão importante instrumento, que, quando a criança começa hoje a falar, aprende ao mesmo tempo, sem que a gente dê por isso, toda uma maneira de conceber o mundo” (Lopes, 1958/2007: 33) e que “A análise do pensamento e da lingua- gem mostra-nos [...] que o ser humano é ainda mais profundamente social do que parece à primeira vista.” (Lopes, 1958/2007:38).

Mas sendo tão clara e tão sentida, segundo os diversos testemu- nhos que nos chegaram, a ligação da linguagem à sociedade, qual a necessidade de uma disciplina chamada sociolinguística, cujo nome, como lembrava Labov, “implies that can be a successful linguistic theory or practice which is not social.” (Labov, 1997:23)?