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Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

Ruben A. - La respectueuse allumeuse1

Dália Dias2

A delimitação conceptual da noção de ritmo não se afigura, de há muito, uma questão pacífica no domínio da poética. Convém lem- brar que a etimologia da palavra ritmo, como ponto de partida para uma maior dilucidação do conceito, foi já debatida e colocada nos seus termos mais rigorosos por Émile Benveniste em Problèmes de linguistique général (Benveniste, 66: 327-335). Nessa obra fundamen-

tal, o autor parte da fundamentação etimológica para expor o equí- voco que, de há muito, falsificava o tratamento linguístico do conceito, com as inevitáveis consequências nos estudos literários. A tese então refutada por Benveniste foi aquela que há mais de um sé- culo fazia escola, desde os primórdios da gramática comparada, e que consistia na satisfatória e simples noção de que ao homem bastaria imitar o movimento das ondas, o fluxo e refluxo das águas do mar, para fazer nascer no seu espírito a ideia de ritmo, por um processo de apropriação mimética de movimentos característicos da natureza. Refutando a ideia de que a linguagem fosse fruto dessa imitação da natureza, o linguista esclarece especificamente a origem da palavra ritmo. Trata-se de uma palavra que, por via latina, vem já do grego carregada semanticamente de tal modo que desmente, até na etimo- logia, a crença enraizada no fundamento, para a origem da lingua-

1“La respectueuse allumeuse” / Ruben A.. In: Revista Colóquio/Letras. Ficção, n.º 10, Nov. 1972, p. 46-48. (http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueCon- tentDisplay?n=10&p=46&o=r). Daqui em diante referidos como RA (Ruben A.) e LRA (La Respectueuse Allumeuse.

gem, do fenómeno da imitação. A palavra ritmo deverá ser relacio-

nada, na sua origem etimológica, preferencialmente, com a ideia de

curso contínuo, de fluxo ininterrupto, tal como acontece de facto com

o movimento das águas, não as do mar, mas antes as dos rios e nas- centes. Ao contrário das primeiras, as segundas não sugerem nenhum movimento cadenciado por síncopes isócronas. Portanto, será neces- sário procurar, fora da inexacta atribuição de etimologia até então aceite, a relação semântica entre a palavra ritmo e a ideia de movi- mento contínuo decomposto em tempos alternados, ainda que ela seja empregue quando se trata de dança, poesia ou música. Tal como em outras questões que envolvem grandes problemas de linguagem, se a arte for concebida como imitação da natureza, a dificuldade con- siste, como diz Benveniste, em aceitar que nada terá sido menos na- tural do que a elaboração lenta, pelo esforço de pensadores, de uma

noção como a de ritmo. Hoje essa noção compreende-se como tão necessariamente inerente às formas do movimento articulado que se torna difícil acreditar que disso não tenha havido consciência desde o início.

Quando se parte da história do conceito de ritmo e da evolução que teve, nos campos da filologia e da filosofia, tornam-se evidentes inúmeras implicações. Apreciada em função dos pressupostos para os quais Benveniste chamou a atenção, a palavra ritmo passa a conter não só a ideia de modo de viver mas até a de visão paradoxal do mundo,

uma vez que nela se foi inscrevendo semanticamente a valorização dos sentidos correspondentes quer ao eixo da fixidez quer ao eixo do mo- vimento. Se, em Arquíloco, ritmo exprime mais a paragem, a limitação trazida ao movimento, para os atomistas, como Demócrito, ele designa um movimento dos átomos, de acordo com a física materialista de que esses filósofos são precursores. Tal como nos exemplos precedentes, a mesma palavra virá a carregar sempre, em consequência da sua histó- ria etimológica e filosófica, um feixe de significações contraditórias que deverão ser compreendidas em conjunto.

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O ritmo, entendido como configuração particular do movimento

(Benveniste), participa ao mesmo tempo da ordem da forma, do que se mantém imóvel, e da ordem do fluxo, o que corre no tempo. A mesma palavra tem jogado com esta dimensão paradoxal desde a tra- dição grega e por isso tem sido usada para abordar quer o pensa- mento de Heraclito quer para designar a forma singular dos átomos em movimento, de acordo com o pensamento de Demócrito. Para Platão e Aristóteles, ritmo tomará depois o sentido musical e poético que vai permanecer no futuro.

Apesar destas profundas variações, convém reter que o conceito grego de ritmo se refere, de um modo geral, à forma ou figura na sua relação com o tempo. Pierre Sauvanet, em Le rythme grec d’Héraclite à Aristote explica claramente a relação entre ritmo e temporalidade:

Le rythme grec est en quelque sorte ‘une forme spatialle temporalisée’, c’est à dire la forme que prend quelque chose dans le temps, la forme telle qu’elle est transformée par le temps. ( Sauvanet,1999:6)

Talvez pela sua dimensão temporal, o fenómeno rítmico possa ser entendido sobretudo como a marca de uma voz que organiza sub- jectivamente o discurso. E por essa mesma razão, por ser traço da voz enunciadora, se justifica que a análise do ritmo não possa ser confi- nada a um aspecto da linguagem, não corresponda apenas a um outro nível linguístico, como seria a sintaxe ou o léxico. Diversamente, o ritmo pode ser compreendido como estruturação conjunta de todo o sentido a partir dos significantes, inscrevendo assim o sujeito na obra como sistema de valores da linguagem. É precisamente esta ideia que sustenta Meschonnic no fundamental e completo trabalho Criti- que du rythme (Meschonnic,1982), mais recentemente reiterada em Modernité modernité (Meschonnic, 1988)

Das abordagens, de algum modo herdeiras de Benveniste, e so- bretudo dos trabalhos mais recentes de Pierre Sauvanet (Sauvanet,

2000) sobressai a ideia principal de que o ritmo surge, de facto, como um fenómeno transversal e interdisciplinar, que não se fecha num campo do saber, nem se consegue delimitar na história das ideias. No entanto, e para que não se renuncie a uma abordagem racional dos fenómenos rítmicos, tal como Sauvanet sugere, podem seguir-se al- guns caminhos metodológicos capazes de colocar em debate o pro- blema estético. Essa é a proposta da abordagem que se vai seguir, sempre tentando outras diferentes e esclarecedoras travessias da es- crita de Ruben A.